O Dicionário Biográfico de Cinema#199: Jack Nicholson

 


Jack Nicholson, n. Neptune, Nova Jersey, 1937

Em 1975 e 1980, escrevi: 

Houve uma vez um livro de referência que reivindicou Nicholson como o filho de James H. Nicholson, executivo-chefe da American International Pictures. Pesquisas futuras revelaram que era filho de um alcóolatra da província, de descendência irlandesa. E é uma prova da sugestiva flexibilidade de Nicholson que ambas as versões pudessem ser plausíveis; de fato ambas podem ser admissões - meio arrastadas, meio choramingas - de um sonolento, impassível à provocação. A fonte do charme de Nicholson reside em sua doce evasão. Isto caminha com a magistral sutileza de sua própria aparição, portanto ele nunca apresenta a mesma aparência de um filme ao próximo, ainda que seja sempre o mesmo divertido e tristemente alegre enigmático Nicholson. Lembrem o truculento cabelo ondulado de Five Easy Pieces [Cada Um Vive Como Quer], mais desbastado em um homem de meia-idade em The King of Marvin Gardens [O Rei da Ilusão], o corte à escovinha do marinheiro de The Last Detail [A Última Missão], e o partido ao meio de Chinatown, onde aparenta o suave e mais próspero Elisha Cook, seus olhos fendidos por algum fatalismo narcótico. 

E é uma face atraente, bem humorada, mas cética, satisfeita em fazer as pessoas rirem, mas disposto para aquelas manhãs frias, quando largará sua garota grávida em um posto de gasolina e pegará uma carona, impotente, ao Alasca. Em Cada Um Vive Como Quer (70, Bob Rafelson), um filme cativante feito em torno da vida de Nicholson em dois mundos, existindo momentos maravilhosos que expressam esta contraditoriedade: surpreendido em um engarrafamento no Texas, sai de seu carro e pula em um caminhão e toca no piano que se encontra amarrado lá; o veículo sai da rodovia, com Nicholson absorto em seu concerto maluco. Mas quando o petroleiro vai ao norte, encontrar sua família, imersa em música, grosseiramente repreende os elogios por sua execução de Chopin e desperdiça a mais promissora relação de sua vida. O persistente chamado da estrada - para o personagem de Nicholson, Robert Eroica (ou Bobby) Dupea, que abandonará aqueles que dele necessitam -  é também uma expressão de uma implacável insatisfação americana com a situação presente e uma ânsia por algo mais convincente: Huckleberry Finn a possui, assim como Jay Gatsby (certamente um papel que necessitava de Nicholson), o Vag de Dos Passos, e os heróis de Mailer. Em termos cinematográficos, Nicholson é o desenvolvimento contemporâneo mais intrigante do Bogart de High Sierra [Seu Último Refúgio] e Casablanca.

Sua carreira é ela própria uma demonstração de inconformidade, relutante em se acomodar a um padrão, quixotesca e desencantada ao mesmo tempo, mas sempre retornando ao mistério clássico da sensibilidade e do instinto - o solitário tentando ser parte de um grupo, o detetive com um quebra-cabeças quebrado em suas mãos. Também se assemelha ao ébano ao redor dos quais talentos excêntricos tem se agrupado, um empresário gentil que já trabalhou como ator, roteirista e diretor.

De início atuou em filmes ligeiros, de baixo orçamento, e ambiciosos filmes-B: Cry-Baby Killer (58, Jus Addis); Too Soon to Love [Cedo Demais para Amar] (60, Richard Rush); The Little Shop of Horrors [A Pequena Loja de Horrores] (60, Roger Corman); Studs Lonigan [Uma Vida em Pecado] (60, Irving Lerner); The Raven [O Corvo] (62, Corman); The Terror [Sombras do Terror] (62, Corman); e The Broken Land (62, John Bruselman). Em 1963 escreveu o roteiro para Thunder Island (63, Jack Laewood). E então em 1964 atuou em Back Door to Hell [Guerrilheiros do Pacífico] e Flight to Fury, de Monte Hellman. Os dois haviam previamente escrito um roteiro que foram incapazes de utilizar. Esta associação os levou a momentos de expedição ao deserto do Nevada em 1965 para realizar, simultaneamente, The Shooting [Disparo para Matar] (Hellman) e Ride the Whirlwind  [A Vingança de um Pistoleiro] (Hellman). Nicholson esteve mais próximo de Hellman nesta incursão irregular, mas produtiva. Escreveu e atuou em A Vingança de um Pistoleiro e interpretou o pistoleiro, Billy Spear, de Disparo. Após isto, escreveu roteiros para The Trip [Viagem ao Mundo da Alucinação] (67, Corman) e Head [Os Monkees Estão Soltos] (68, Rafelson).

Mas como ator se tornou crescentemente popular, sentindo-se atraído pelas bordas do estrelato: Hell's Angels on Wheels [Os Demônios do Volante] (67, Rush); Psych-Out [Busca Alucinada] (68, Rush); então como advogado, pegou a estrada em Easy Rider [Sem Destino] (69, Dennis Hopper); Cada Um Vive Como Quer;  grandemente cortado em On a Clear Day You Can See Forever [Num Dia Claro de Verão] (70, Vincente Minnelli); Carnal Knowledge [Ânsia de Amar] (71, Mike Nichols); A Safe Place [Refúgio Seguro] (71, Henry Jaglom); como o irmão reservado e sóbrio, que só se expande em fantasias em seu programa de rádio tarde da noite em The King of Marvin Gardens [O Rei da Ilusão] (72, Rafelson); The Last Detail [A Última Missão] (74, Hal Ashby); Chinatown (74, Roman Polanski); e Professione: Reporter [Profissão: Repórter] (75, Michelangelo Antonioni).

Também dirigiu seu primeiro filme - Drive, He Said [O Amanhã Chega Cedo Demais] (70) - um estudo fracassado, porém pessoal, de fugas do ambiente rígido de um universitário direcionado aos esportes. E é parte do charme irônico de Nicholson, que ele possa ter admirado o único boxeador de Yale.

A canonização do homme moyen sensuel de Nicholson ocorreu com One Flew Over the Cuckoo's Nest [Um Estranho no Ninho] (75, Milos Forman), uma destas raras, mas felizes ocasiões de entretenimento serio, agônico e soberbo, e dinheiro e glória para todos os envolvidos. Sem Nicholson, o filme poderia não ter sido feito. Seu glamour tornou fácil um tema difícil, e sua vontade de atuar em conjunto explica a surpreendente atmosfera "institucional". Porém reside no perigoso libertarismo de Nicholson que o filme vá da comédia à tragédia, e é seu crédito que milhões tenham sentido a descuidada dignidade e vitalidade subversiva de MacMurphy. Com um indisputável Oscar para seu nome, foi um rival apropriado, embora um pouco admirado, por Brando em The Missouri Breaks [Duelo de Gigantes] (76, Arthur Penn); então preencheu o esboço de Bremmer em The Last Tycoon [O Último Magnata] (76, Elia Kazan).

Sua ausência de quase dois anos das telas foi explicada pelos problemas na montagem de um filme que ele desejou dirigir, um western picaresco intitulado Goin' South [Com a Corda no Pescoço] (78).

A história segue adiante: por volta da época que a última edição deste livro apareceu, foi revelado que a mulher que Nicholson cresceu pensando ser sua irmã era, na verdade, sua mãe. Até o momento, a verdade completa permanece obscura. Mas Nicholson é uma celebridade de Hollywood que mais aparenta uma personagem de algum romance em progresso de nossos tempos. Ele é também a mais amada das estrelas - nem mesmo sua imensa fortuna, sua idade temerária, e os desastres públicos de sua vida privada podem deprecia-lo. Nicholson apareceu atualmente na capa de Vanity Fair segurando dois bebês, supostamente seus. Ainda que em seu interior, uma discreta menção admita que os bebês sejam modelos! Atores! E ele não perdeu a menor fatia da afeição pública. Quando chegou o momento da apresentação de melhor filme dos Oscars de 1993, Billy Crystal somente teve que dizer "Jack", e todo mundo sabia quem viria. Deve ser uma enorme tensão ser "Jack", e há sinais de desânimo, falta de direcionamento e dúvida, assim como a idade. Sua interpretação flutua, como se estivesse algumas vezes entediado, ou simplesmente desejasse observar o que ele poderia fazer. O grande impacto de Batman torna mais fácil de ver os modos pelos quais Nicholson tem se tornado mais próximo de um desenho animado.

The Shining [O Iluminado] (80, Stanley Kubrick) foi um de seus grandes filmes - o menino perverso e travesso, o gênio frustrado, o monstro de sua própria solidão. Ninguém poderia ter sido tão audaz, e ao mesmo tempo tão delicado. Em  The Postman Always Rings Twice [O Destino Bate à sua Porta] (81, Rafelson), ele foi menos testado, mas possui uma aparência de anos 30 e uma aposta crônica na fatalidade, embora nunca perdendo o contato com a fera comum, cujos olhos podem se alargar com pensamentos por dinheiro, assassinato e muito sexo.

Foi indicado para o Oscar de ator coadjuvante por seu remoto, mas romântico, Eugene O'Neill em Reds (81, Warren Beatty). Desleixado e buscando seu caminho de um lado para o outro em The Border [Fronteira da Violência] (82, Tony Richardson). Sem esforço ganhou o Oscar de coadjvante por Terms of Endearment [Laços de Ternura] (83, James L. Brooks). Esteve adequadamente pesado, obstinado e sem humor como o respeitável assassino de Prizzi's Honor [A Honra do Poderoso Prizzi] (85, John Huston), ainda que haja razão para se pensar que não captou exatamente o tom ou a deriva daquela estranha e lenta comédia. Heartburn [A Difícil Arte de Amar] (86, Nichols) foi um tiro em falso.

Em The Witches of Eastwick [As Bruxas de Eastwick] (87, George Miller), foi autoindulgente com seu próprio diabinho excitado, mas bastante divertido e ricamente agradável. Em retrospecto, aparenta ser uma significativa excursão à fantasia. Apareceu brevemente em Broadcast News [Nos Bastidores da Notícia] (87, Brooks) e não pôde deixar de parecer acima do peso como o vagabundo de rua em Ironweed (87, Hector Babenco). Atuou bastante bem no filme, mas foi mal escalado. 

Quanto a Batman (89, Tim Burton) somente pode ser dito que seu chamativo Coringa lhe rendeu por baixo 50 milhões de dólares em pagamento, lucros e acordos de comercialização. Jack Torrance teria uivado na lua. 

Em 1985, esteve prestes a reprisar Jake Gittes para o roteirista-diretor Robert Towne em The Two Jakes [A Chave do Enigma], a longamente aguardada sequencia de Chinatown. O projeto colapsou. Então, em 1990 foi realizado, com Nicholson dirigindo-o. O filme foi um desastre. A velha amizade com Towne parecia finda. Décadas de esperança desapontadas.

Man Trouble [O Cão de Guarda] (91) reuniu Nicholson com Rafelson e a roteirista Carole Eastman (que havia roteirizado Cada Um Vive Como Quer]. Foi um filme estúpido e arrastado, que parecia demonstrar o quanto o tempo havia passado, deixando algumas pessoas encalhadas. Foi um ponto baixo em sua carreira, somado as regulares e difíceis aparições de Nicholson em colunas de fofocas. 

Mas, ele saltou de volta. Seu coronel da Marinha em A Few Good Men [Questão de Honra] (92, Reiner), foi dificilmente plausível - de fato, foi manipulado para explodir segundo os propósitos do melodrama, mas Nicholson brilhou e rugiu, e parecia em grande forma. Ganharia até mesmo uma indicação para ator coadjuvante. De longe melhor foi o terrivelmente negligenciado Hoffa (92, Danny DeVito), uma de suas melhores coisas - rosnador, burro, inteligente, nobre, malandro - todas as partes de "Jack".

Em 1994 apareceu em Wolf [Lobo] (Nichols) e atuou belamente até que lhe pedissem para crescer os cabelos e as presas.

Com o passar do tempo, Nicholson trabalhou para velhos amigos, ou pessoas que confiava. Os resultados foram mistos, e Nicholson tem expressado seu desânimo com o estado do cinema moderno. E sua própria alegria inata, parece encoberta. Parece mais triste com a vida e isto nos fere a todos, penso. Pois ele ainda é um marco, alguém que valorizamos pelo modo como nos ajuda a nos vermos: The Crossing Guard [Acerto Final] (95, Sean Penn); Blood and Wine [Sangue & Vinho] (97, Rafelson); Mars Attack! [Marte Ataca] (96, Burton); brevemente em The Evening Star [O Entardecer de uma Estrela] (96, Robert Harling); ganhando outro Oscar, seu terceiro, em As Good as It Gets [Melhor é Impossível] (97, Brooks); The Pledge [A Promessa] (00, Penn); About Schmidt [As Confissões de Schmidt] (02, Alexander Payne); com Adam Sandler em Anger Management [Tratamento de Choque] (03, Peter Segal); então adorável, indomável e apaixonado por Diane Keaton em Something's Gotta Give [Alguém tem de Ceder] (03, Nancy Meyers), um grande prazer para o público em uma temporada sombria.

Para The Departed [Os Infiltrados] (06), mudou-se para Boston e para o universo de Martin Scorsese, e entregou um monstro exultante - marinado em sexo e drogas - mas não absolutamente certo de ser malvado ou cômico. The Bucket List [Antes de Partir] (07, Reiner), com Morgan Freeman, foi um exercício indisfarçável de cinema de velhos. Foi necessário um diretor cruel para trazer Jack novamente ao solo - How Do You Know [Como Você Sabe] (10, Brooks) não o fez, e Nicholson tem estado em taciturno retiro desde então. No entanto, com os Lakers jogando tão mal, ele pode precisar se distrair.

Texto: Thomson, David. The New Biographical Dictionary of Film. N. York: Alfred A. Knopf, 2014, pp. 1923-28.

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