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Mostrando postagens com o rótulo Carlos de Oliveira
D. Lucia, D. Lucia, que te hei-de  eu  fazer ? Não compreendes que no relento da cama uma mulher de certa idade, com as miudezas muito gastas, o fluxo menstrual a estiar, exala um odor enjoativo capaz de retrair o maior garanhão ? Bem sei que te lavas, escarolas, perfumas, escovas os cabelos, mas isso é por fora e a velhice está lá dentro, onde não chegam os teus cremes nem os teus sabonetes. Queres que te diga tudo cara a cara, te explique timtim por timtim a náusea insidiosa, o pântano da nossa cama, s obretudo desde que dormi com Rosário a primeira vez ? E a minha ternura, D. Lucia, que farei eu dela para te falar assim, que farei do nó na garganta quando te vejo às voltas com os frisadores, as loções, as cintas, os papelotes ? É verdade, fui eu que te fumei até ao fim como fumo este cigarro. Com mais exactidão, nunca se fuma um cigarro ate´ao fim. Aí está o que tu és, a pirisca a apagar-se, abandonada no cinzeiro. Por muito que me custe pensá-lo. Carlos de Oliveira, Pequ...
Um frio indefinível. O cunhado, outro sonho. Fixou as chamas quase mortas e por um instante viu-o, sentado ao pé do lume, a desfiar as trapalhadas fabulosas, os canibais, as minas para o lado das de Salomão. Perdoou-lhe as negras, as aguardentes levedas, e chegou a sorrir, mas ao erguer os olhos deu com o marido, quase informe, na cadeira de verga. A imagem de Leopoldino dissipou-se, o sorriso também. A braços com a saciedade das próprias ilusões, baixou a cabeça outra vez; o cabelo negro cintilou. Carlos de Oliveira, Uma Abelha na Chuva , p. 72.
O reflexo trêmulo das chamas batia-lhes no rosto e desfigurava-os: os olhos do padre muito mais encovados, a cana do nariz mais torta e luzidia; as bochechas da D. Violante inchadas como se tivesse a boca cheia de ar; uma recôndita sensualidade nos lábios de D. Maria dos Prazeres; a palidez de Álvaro Silvestre a resvalar num amarelo de cidra e idiotia. A D. Cláudia, não: incorruptível, pura, a mesma; não lhe toca o lume (nem a sombra) que os deforma e se ela, alma de mel translúcido, escapa ao sortilégio é que a alma dos outros não tem a mesma transparência. Carlos de Oliveira, Uma Abelha na Chuva , p. 72.
Uma sombra quase indistinta não é bem um homem. Falta-lhe a luz dos olhos, o sorriso, as feições, a alma à flor da pele. É uma coisa anônima e sem rosto, mesmo quando tem voz e passa a cantar pelas azinhagas. Custa menos a ferir que um homem verdadeiro, à luz do dia. A cajadada apanhou o ruivo pela cabeça (...) Carlos de Oliveira, Uma Abelha na Chuva , p 57.
Pela aldeia floria o rumor humano, de mistura com o fumo dos lares e o cheiro dos currais abertos. O dia chegava por fim. Olhando para tudo, entrevia apenas no palpitar da terra a intimidade decomposta, os sinais da destruição. Carlos de Oliveira, Uma Abelha na Chuva , p. 49.
Tinha a consciência de que ia ficando cada vez mais bêbado; a azia, no entanto, pareceu acalmar-se e ele prosseguiu na leitura: ... compradas pela cunhada. E que tal vai ela, mano? O que me valeu a mim foi a saúde de ferro nos pântanos que atravessamos. O Soba deu-me trinta pretos, dois elefantes, bagagens e duas das suas mulheres para meu uso próprio. Não leias esta passagem à cunhada, mas fica sabendo que uma preta, bem espremida, deita mais sumo do que uma laranja. A questão é enchê-las dumas aguardentes levedas que por aqui há e eu quero ver onde é que está a branca que dá um rendimento destes. Lá fomos para o sul em busca de minas. As febres atiraram metade da caravana às malvas, até um elefante as apanhou e foi-se. Ao fim de anos de trabalho, dei com minas num recanto de rochas à entrada do deserto. Metade é para o Soba, era o contrato, mas a outra parte, a minha, dá para comprar todas essas casas, palacetes, terras, quintas e armazéns, o que houver por aí, sem esquecer o belo fe...
Lá falar, falavam. Mas ele sabia que nenhum dos dois estava a ser varado pelo pavor. Vida e morte o que são? A morte é perder as terras, a loja, o dinheiro, para sempre; e apodrecer, devorado pelos vermes; ali estava a explicação da sua repugnância por bichos miúdos, aranhas, minhocas, carochas, centopeias, larvas, essa infinidade pululante de pequenas monstruosidades. Esmagou as mãos uma na outra, porque a morte existe, pode chamar à porta quando lhe apetecer, e imaginou-se demoradamente no caixão aberto, ainda em casa, ainda acompanhado do murmúrio humano que o velava, daí a nada atirado à garganta da cova com cal por cima e terra, depois a lousa, o abandono: os outros regressam à casa e eu para ali fico, sufocado, sozinho, a morrer outra vez, porque via tudo isso como se as coisas se passassem e ele com consciência, como se ouvisse o rumor da noite em que o velavam, o latim do padre Abel no cemitério, as pazadas de terra a cair no caixão, o fervilhar irreparável dos vermes. Carlos...
Largar do concreto para o ideal era o seu lema, assentar a evolução de uma ideia em coisas palpáveis como sementes, flores, abelhas, cortiços, mel, e tanto assim que quando partia para o seu platonismo amoroso recusava-se a considerar que fosse a timidez a empurrá-lo, aduzia razões de ordem absolutamente material, científica: sou um heredo-sifilítico; a D. Cláudia, uma constituição linfática, fragilíssima; pois bem, casamo-nos e depois que filhos deitaremos ao 34 mundo? Saltava daqui para as implicações morais: não me parece justo chamar à vida um ser doentio, deformado ou louco; punha mesmo em dúvida se era lícito a alguém fazê-lo, um rei que fosse, com o problema da sucessão às voltas; e a verdade é que tudo isso está dentro das possibilidades do nosso casamento; etc, etc; até se ver claramente que não tinha o direito de insistir com a D. Cláudia. Neste ponto encontravam-se os dois. Por caminhos diversos chegavam ao acordo tácito de que aquele puro amor lhes ia bastando po...

Lágrima, Carlos de Oliveira

A cada hora o frio que o sangue leva ao coração nos gela como o rio do tempo aos derradeiros glaciares quando a espuma dos mares se transformar em pedra. Ah no deserto do próprio céu gelado pudesses tu suster ao menos na descida uma estrela qualquer e ao seu calor fundir a neve que bastasse à lágrima pedida pela nossa morte.
Os meus romances são como tragédias. Os protagonistas caminham para a sua perda, sem remédio... Carlos de Oliveira

O Mapa, Carlos de Oliveira

O poeta [O cartógrafo] Observa As suas Ilhas caligráficas Cercadas por um mar Sem mares, o arquipélago a que falta o vento, fauna, flora, e o hálito húmido da espuma, Pensando Que Talvez alguma Ave errante Traga À solidão Do mapa, Aos recifes desertos Um frêmito, Um voo, Se for possível voar Sobre tanta Aridez.