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Mostrando postagens com o rótulo Poesia Portuguesa
Vergo a cabeça sobre o peito Concentro os olhos sobre o umbigo E um coração que me hão desfeito Chora de achar-se só comigo
Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais porque vivo maior. (Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego )

Cantiga Sua, Sá de Miranda

Comigo me desavim, Sou posto em todo perigo, Não posso viver comigo Nem posso fugir de mim. Com dor da gente fugia Antes que esta assim crescesse, Agora já fugiria De mim, se de mim pudesse. Que meio espero ou que fim  Do vão trabalho que sigo, Pois que trago a mim comigo Tamanho inimigo de mim?

Lágrima, Carlos de Oliveira

A cada hora o frio que o sangue leva ao coração nos gela como o rio do tempo aos derradeiros glaciares quando a espuma dos mares se transformar em pedra. Ah no deserto do próprio céu gelado pudesses tu suster ao menos na descida uma estrela qualquer e ao seu calor fundir a neve que bastasse à lágrima pedida pela nossa morte.

Soneto Já Antigo

Olha, Daisy: quando eu morrer tu hás de dizer aos meus amigos aí de Londres, embora não o sintas, que tu escondes a grande dor da minha morte. Irás de Londres p'ra Iorque, onde nasceste (dizes... que eu nada que tu digas acredito), contar àquele pobre rapazito que me deu tantas horas tão felizes, Embora não o saibas, que morri... mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar, nada se importará... Depois vai dar a notícia a essa estranha Cecily que acreditava que eu seria grande... Raios partam a vida e quem lá ande! (como Álvaro de Campos)

Caminho da Manhã

Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco da cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por

Ah, um Soneto

Meu coração é um almirante louco que abandonou a profissão do mar e que a vai relembrando pouco a pouco em casa a passear, a passear ... No movimento (eu mesmo me desloco nesta cadeira, só de o imaginar) o mar abandonado fica em foco nos músculos cansados de parar. Há saudades nas pernas e nos braços. Há saudades no cérebro por fora. Há grandes raivas feitas de cansaços. Mas — esta é boa! — era do coração que eu falava... e onde diabo estou eu agora com almirante em vez de sensação? ... (como Álvaro de Campos)
olho à volta em flecha sobre as coisas à procura desse ladrão excepcional que me roubou o livro inventado pra me poupares o coração à mágoa dos vivos mas sei que é inútil trago em alvo apenas alfaias domésticas com que trabalho a terra aquela que escolhi e sei que é inútil porque o mal tem asas e só o vento nos salva e nos transporta ao lugar da árvore junto ao rio onde me banharei três vezes até que o galo cante e me lembre do pai a quem devo ceia e roupa branca I look around with darting eyes in search of that exceptional thief who stole from me the book you invented to spare my heart the sorrow of the living but i know it’s useless i have within range only my usual tools for working the land the land i’ve chosen and i know it’s useless because evil has wings and only the wind saves us and transports us to the place of the tree next to the river where i’ll bathe three times until the cock crows and i remember m
nenhuma outra flor tem a dura beleza desta rocha vermelha que a si mesma sobe como uma maré por todos os lados subin do-nos fogo que por si mesmo sobe como em ondas nós

Na Casa Defronte

Na casa defronte de mim e dos meus sonhos, Que felicidade há sempre! Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi. São felizes, porque não sou eu. As crianças, que brincam às sacadas altas, Vivem entre vasos de flores, Sem dúvida, eternamente. As vozes, que sobem do interior do doméstico, Cantam sempre, sem dúvida. Sim, devem cantar. Quando há festa cá fora, há festa lá dentro. Assim tem que ser onde tudo se ajusta — O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza. Que grande felicidade não ser eu! Mas os outros não sentirão assim também? Quais outros? Não há outros. O que os outros sentem é uma casa com a janela fechada, Ou, quando se abre, É para as crianças brincarem na varanda de grades, Entre os vasos de flores que nunca vi quais eram. Os outros nunca sentem. Quem sente somos nós, Sim, todos nós, Até eu, que neste momento já não estou sentindo

O Mapa, Carlos de Oliveira

O poeta [O cartógrafo] Observa As suas Ilhas caligráficas Cercadas por um mar Sem mares, o arquipélago a que falta o vento, fauna, flora, e o hálito húmido da espuma, Pensando Que Talvez alguma Ave errante Traga À solidão Do mapa, Aos recifes desertos Um frêmito, Um voo, Se for possível voar Sobre tanta Aridez.