O Dicionário Biográfico de Cinema#41: Martin Scorsese

Em 'O Irlandês' e na sala de casa, Martin Scorsese reflete sobre a ...
Martin Scorsese n. Nova York, 1942

1964: It's Not Just You, Murray (c); 1968: I Call First/Who's That Knocking at My Door? [Quem Bate à Minha Porta?]. 1972: Boxcar Bertha [Sexy e Marginal]. 1973: Mean Streets [Caminhos Perigosos]. 1974: Alice Doesn´t Live Here Anymore [Alice Não Mora Mais Aqui]; Italian-American (d). 1976: Taxi Driver [Taxi Driver - Motorista de Táxi]. 1977: New York, New York. 1978: The Last Waltz [O Último Concerto de Rock] (d); American Boy (d). 1980: Ragging Bull [O Touro Indomável]. 1983: The King of Comedy [O Rei da Comédia]. 1985: After Hours [Depois de Horas]. 1986: The Color of Money [A Cor do Dinheiro]. 1988: The Last Temptation of Christ [A Última Tentação de Cristo]. 1989: um episódio de New York Stories [Contos de Nova York]. 1990: Godfellas [Os Bons Companheiros]. 1991: Cape Fear [Cabo do Medo]. 1993: The Age of Innocence [A Época da Inocência]. 1995: Casino [Cassino]; A Personal Journey with Martin Scorsese Through American Movies [Uma Viagem com Martin Scorsese pelo Cinema Americano] (d); 1997: Kundun. 1999: Il Mio Viaggio in Italia [Minha Viagem à Itália] (d); Bringing Out the Dead [Vivendo no Limite]. 2002: Gangs of New York [Gangues de Nova York]. 2004: The Aviator [O Aviador]. 2006: The Departed [Os Infiltrados]. 2008: Shine a Light (d). 

Já faz muitos anos que aqueles que louvam à tradição e a perspectiva do cinema americano tem falado de Scorsese como "nosso melhor". Ele é um auto-declarado fanático do cinema, um colecionador, um homem devotado a preservação de filmes e a celebração de carreiras como a de Michael Powell. Gosta de fazer pequenas pontas em filmes, tão grande é seu apetite e tem sido um facilitador amigável ou produtor executivo recentemente para uma série de filmes - notavelmente The Gifters [Os Imorais], de Stephen Frears.

Porém nem tudo está bem. Poderíamos começar com O Touro Indomável, que é frequentemente aclamado como seu melhor filme, e um dos maiores já feitos. Ele é belo nos modos que faz a beleza ser a primeira coisa a ser notada - por isso compreendo não apenas sua lealdade ao preto&branco, mas sua insistência na forma e desenho emocional ser mais importante que os fatos do boxe. Não penso que Scorsese conheça ou se preocupe muito com o boxe. Isso significa que ele utiliza seu ritual para uma jornada algo pessoal no coração da selvageria. E não estou certo que realmente conheça de selvageria tampouco, exceto enquanto contexto literário ou cinematográfico. Em outras palavras, entre o espetáculo e poder de O Touro Indomável, senti o desejo artístico indo muito além da experiência. E o mesmo pode ser dito de Taxi Driver. Este me deixa com suspeitas sobre do que se trata. O Touro Indomável é repleto de subtextos - o não menos importante deles o temor por mulheres e uma fascinação pela homossexualidade. Não há espaço aqui para examinar tais coisas minuciosamente. Mas Scorsese não encontra suficiente escrutínio próprio para suas ideias. E se ele é o nosso melhor, então seus filmes precisam de ideias e temas mais duradouros que as fantasias românticas que pode ter adquirido em uma vida a assistir filmes. 

O Rei da Comédia possui ideias - mais que as digere. No entanto, penso que apresenta Scorsese se movendo em novas direções. Mas a tentativa murcha. Depois de Horas  foi um desapontamento. A Cor do Dinheiro é habilidoso, oportunista e nem próximo de tão duro quanto The Hustler [Desafio à Corrupção]. A Última Tentação de Cristo parece-me respeitador - como se Scorsese,  tivesse ficado preso a um empreendimento que dissesse a todos o que teve de fazer. Os Bons Companheiros possui passagens de extraordinário perigo e medo e certamente chegou mais perto da escória que a maior parte dos filmes de Máfia. Mas Scorsese suspira por esses homens que se fizeram, e ainda é mais difícil saber o porquê dele ter realizado o filme, exceto pela emoção de todos estes riffs e diálogos. Cabo do Medo foi horrível, desnecessário, e adolescente, não importando que Scorsese estivesse próximo dos 50. Foi Brian De Palma em um bom dia, ainda que um De Palma sem o humor de Scarface. E isso não é bom o suficiente para ser o melhor. 

Scorsese é uma versão adulta de uma criança delicada e hipersensível que cresceu em uma vizinhança grosseira e, mesmo depois disso, sentiu-se obrigado a fingir que era assassino, assim como um violinista. Deseja ambas as formas - como todos fantasistas - ainda quando estrague um pouco sua ponta como assassino em potencial em Taxi Driver falando poesia profana, como forma de postergar a vingança real. Ele é um diretor de assento traseiro que gerencia a sugestão de ser o rapaz da frente (De Niro) seu próprio substituto. Sua vitalidade nervosa de quebrar os dentes é perigosamente estudada e superficial. Scorsese seria mais exigente e duradouro se não fosse tão cronicamente consciente que seus filmes são problemas de sexo e violência de católicos pecadores, ou que New York, New York se tornou crescentemente sombrio com o fim de seu próprio casamento. Isto é a pathétique des auteurs

Isso soa zombeteiro, mas somente espero ver Scorsese reconhecendo uma divertida e cinematográfica veia nele próprio. Torna-se mal qualquer diretor de cinema chorar a música selvagem das ruas, muito menos alguém tão bem sucedido quanto o jovem Scorsese. É um devoto da inteligência, beleza visual e estilo verbal; mas raramente há um grão de naturalismo compromissado nele. Quando usa o Festival de  São Gennaro, é intoxicado pelos cenários sternbergianos. Linguagem, cor e desenho de produção são auto-suficientemente ricos em seus filmes. Os assassinatos de Taxi Driver são a elevação de uma cadência de espaço, composição e montagem, na qual a câmera finalmente emerge com uma vantagem brilhante sobre o cenário e sua mistura. Quando Travis atira contra Sport, derruba o castelo de cartas criado por sua conversa indigna. O táxi é amarelo não porque os de Nova York assim o são, nem tampouco para adicionar fogo e enxofre, mas para harmonizar com os suspiros de vapor branco e a mancha de carbono das ruas comuns. 

Taxi Driver pode ser histérico e holocáustico, mas ainda é um filme na tradição de Vincente Minnelli, o reconhecido estilista por trás de New York, New York. Esta influência é demonstrada de várias formas: a virtuosidade da câmera, a bravura da cor, o recurso de movimento, música e cenário como impressão de sentimentos, mais um herói tão torturado quanto o Van Gogh de Lust for Life/Sede de Viver. Mas o vínculo mais forte com Minnelli é na confiança nos sonhos. Taxi Driver não é uma acusação da cidade de Nova York, não importa quão fielmente tenha sido lá filmado, não importa o quão devotamente Scorsese relembre o seu crescimento em Little Italy, lutando por ar e oportunidade. Taxi Driver é a obra de um homem feliz com a claustrofobia pulsante do cinema noir, e talvez inexperiência de tantas horas gastas nos filmes.

É um filme paranoico: Travis Bickle acredita que todos na metrópole se voltaram contra ele. Ele é tão furtivo quanto alguém que suspeita que pode se encontrar em um filme e não na vida. "Você está falando comigo?" ´poderia ser "porque eu sou o único aqui." E é também a paranoia de um homem delicado como um santo renascentista, alarmado com a crueldade das ruas e arrebatado por uma imaginação febril. Taxi Driver vai além disso: investe em seu próprio assassino com toda a sensibilidade avariada de seu autor paranoico, ao ponto do filme tornar-se uma projeção distorcida dos defuntos códigos de censura de seu avassalador triunfo, senso comum e a base inicial de uma humanidade redimível. Filme e sonho não possuem momento mais ameaçador ou transcendente do que quando Travis sobrevive sua batalha de tiro, retorna como herói, mas ainda apresenta uma face assustada em seu próprio espelho retrovisor. Scorsese acalenta seu herói demasiado para ser ou perecer: o homem na frente do carro terá que conviver com sua terrível ansiedade. Doutra forma, todos os ocupantes do veículo podem ter que reavaliar o inferno com o qual estão enchendo a cabeça. 

Crescer parece uma ofensa a Scorsese: ele prefere morrer jovem, delirante mas "imaculado". Nesse caso, Caminhos Perigosos , Taxi Driver e New York, New York somam um extraordinário e juvenil tributo aos modos da Hollywood dos anos 40. Nenhum estudante ou professor de cinema de Nova York, ou quiçá do mundo, tem sido tão eloquente em exaltar seu amor. Nesse sentido, no entanto, os filmes são acadêmicos e auto-indulgentes, abrasivos com maneirismos e uma suposição godardiana de mundanismo. Reexploram a alucinação do cinema noir, recuperam uma sensibilidade ameaçada de Nicholas Ray, e são uma prova compreensiva que um filme nunca está todo no roteiro. Scorsese aspira em direção ao delírio e ao calor da febre. Ele poderia se tornar um artista mais profundo se pudesse ver a artificialidade disso e provocar o fardo pesado do tormento que não está determinado a perder. Tão dedicado designer quanto Minenelli, embora não possua a humildade de deixá-lo correr livremente. O sonho solitário pode facilitar o terror do sono e torná-lo gracioso. 

O pacto de Scorsese com Robert De Niro tem sido vital; pode ser que o diretor necessite mais dele que o ator. Ainda que, evidentemente os heróis cultuados de De Niro para Scorsese permitem o ator obscurecer a natureza dos personagens que interpreta. Ele precisa trabalhar com outras pessoas, especialmente com atrizes em situação que resistam à melancolia masculina. Alice não foi tal filme, e Liza Minnelli foi incrivelmente ofuscada em New York, New York - embora voluntariamente. 

A Época da Inocência teve muitos admiradores, mas me parecia uma história abafada pelos cenários e prestígio. Scorsese não é bom sendo respeitável, ou literário. A tentativa ressoou muito  mais que a conquista. Sua busca por novos temas é absorvente e importante - ainda faz de Scorsese ser um grande diretor. Mas ele parece cansado e desconfortável de não obter grande sucesso de público. Apenas porque é "o melhor", sua carreira dramatiza a questão de como um diretor americano se desenvolve quando a juventude passou. 

O caso de Scorsese se demonstrou crescentemente delicado. Cassino foi brilhante, arrebatador para os olhos; ninguém mais poderia tê-lo feito -  ou teria pensado em fazê-lo. E se ninguém houvesse visto sua trupe unida antes, teria sido fascinante. Mas o que parece mais impressionante hoje foi a busca de Scorsese de repetir estes movimentos uma vez mais, sem aparentemente compreendê-los. Nada hoje parece abalar o sentido que estava hipnotizado pelas falas e atitudes tumultuosas de De Niro e Pesci. O melhor a ser dito sobre o filme foi a verdadeira ambiguidade sobre se essa Las Vegas era paradisíaca ou infernal. Mas essa é uma questão que a América (assim como Scorsese) necessita explorar. 

Kundun me parece uma tentativa desesperada de acreditar em algo e não foi além do raso. E quase todos parecem concordar que Vivendo no Limite  foi uma obra menor,  um passo em falso ou apenas  preencher o tempo. Nesse caso, isso põe mais pressão que nunca sobre Gangues de Nova York, que foi cheio de vida, cinemático, mas incoerente. Os documentários que fez posteriormente são tão acadêmicos quanto apaixonados, contribuições modelares de nosso melhor diretor. Mas, novamente, a grandeza na América é um privilégio cruel que pode se voltar contra o seu recipiente e arruiná-lo. Scorsese pode ser a maior biografia do cinema norte-americano desde Welles. E a mais dolorosa. 

Finalmente com Os Infiltrados ele ganhou seus Oscars - e todos concordaram em fingir que este não era um de seus filmes menos pessoais. 

Texto: Thomson, David. The Biographical Dictionary of Film. Londres: Knopf, 2010, pp. 8862-8881.

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