(...) Só há marinheiros no convés. Ficamos eu e um colega; enrolados em mantas azuis e deitados na madeira do convés, recebemos o borrifo das ondas, à espera do escuro. Poucas vezes fui tão feliz em minha vida . Tão fundo no encantamento de uma realidade que dura. Demasiado verdadeira; com algo a mais que não me deixa pensar que terminará. Essas chegadas, essas ancoragens de noites inteiras ao largo, essas chatas que vêm abarrotadas de mercadorias, rebocadas por cabos, e a grua que range alongando as antenas furiosas! Realmente acredito que nada disso vai terminar, que vamos até o infinito nesta lentidão, nesta calma verdade de vida, beirando todos os portos e ilhas da Terra. Elio Vittorini, "Sardenha como uma Infância", p. 86.
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cid vasconcelos
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Paira no ar uma desolação excitante. O amarelo imenso das areias. A canícula. A borrasca cinzenta dos vagalhões. As barracas vermelhas, que do barco pareciam novas e muitas, são apenas cinco, e de madeira carcomida. Pareciam barracas de praias e, no entanto, são moradias. De uma delas sai um fio de fumaça. Penduradas numa cordinha entre uma e outra, roupas femininas estão a secar. E um aduaneiro vestido de verde lê na santa paz um livro muito velho, algum livro de viagem, espichando-se sobre uma pilha de sacas. - Está imerso na verdade de seu ócio e não dá a mínima para o vapor, para a coisa nova que é um vapor nesta praia, para a chegada dos carregadores, gozando sua maravilhosa eternidade. Elio Vittorini, Sardenha como uma Infância , p. 84 (grifo meu)
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cid vasconcelos
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(...) o sol desceu atrás de uma nuvem e não surgirá de novo, porque a nuvem pesa sobre as montanhas. Mas o céu permaneceu límpido, ou melhor, tornou-se úmido, como em certos dias que chove ao longe. Neste momento, tenho a impressão de estar só em todo o Castelo. Da cidade baixa sobem as ladainhas dos carros e o vozerio do povo, e mais do que nunca me parece que estou sozinho nesta necrópole, tão distante do mundo. (Elio Vittorini, Sardenha como uma Infância , p. 72)
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cid vasconcelos
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Em largas passadas calco o terreno úmido da rua e por baixo sinto a rocha, metálica, que desponta aqui e ali formando caprichosas calçadas e pequenos degraus nas soleiras. As portas estão escancaradas, é possível espiar cada casa e ver que já tem uma cama refeita, com a colcha vermelha por cima, uma mesa e oleografias nas paredes; das traves do teto pendem réstias de cebolas; não se nota a presença de alma viva, mas, se paro para observar mais atentamente, rápida e sem o mínimo rangido a porta se fecha em minha cara. Elio Vittorini, Sardenha como uma Infância
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cid vasconcelos
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TODO APAGADO O VAPOR NAVEGA, FEITO COISA INERTE DA NATUreza. No entanto, por dentro, ele começa a despertar com o rumor de passos e vozes e daqui a pouco também será um novo mundo. Dentro dele há gente que dormiu, que sonhou e que agora se agita com os afazeres miúdos da manhã, para estar pronta quando o desembarque vier antes do nascer do sol, meio como a pressa dos meninos que querem correr em horas proibidas na escola. Elio Vittorini, Sardenha como uma Infância
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EU SEI O QUE É SER FELIZ NA VIDA - E A DÁDIVA DA EXISTÊNCIA, o gosto da hora que passa e das coisas que estão em torno, ainda que imóveis, a dádiva de amá-las, as coisas, fumando, e uma mulher dentro delas. Conheço a alegria de uma tarde de verão, lendo um livro de aventuras canibalescas, seminu em uma chaise longue , na frente de uma casa de colina com vista para o mar. E muitas outras alegrias juntas: de estar num jardim à espreita e escutar o vento que mal move as folhas (as mais altas) de um árvore; ou sentir trincar e desmoronar num areal a infinita existência da areia; ou, num mundo povoado de galos, despertar antes da alvorada e nadar sozinho em toda a água do mundo, à beira de uma praia rosada. E não sei o que se passa em meu rosto nessas minhas felicidades, quando sinto que se está tão bem na vida: não sei se uma doçura sonolenta ou quem sabe um sorriso. Mas quanto desejo de ter as coisas! Não somente o mar ou somente o sol e não somente uma mulher e o coração dela sob os lábi