Filme do Dia: Cabra Marcado para Morrer (1984), Eduardo Coutinho
Cabra Marcado para Morrer (Brasil,
1984). Direção: Eduardo Coutinho. Fotografia: Fernando Duarte & Edgar
Moura. Música: Rogério Rossini. Montagem: Eduardo Escorel.
Esse documentário de Coutinho é não só
um dos melhores do gênero, como um dos melhores filmes do cinema nacional em
todos os tempos. Partindo em 1981, para reencontrar os membros do elenco do
filme homônimo que reconstituía em ficção o assassinato do líder das Ligas
Camponesas de Sapê, município da Paraíba, João Pedro Teixeira, morto a mando de
latifundiários locais, em 1962, o cineasta consegue um pungente painel da
realidade brasileira, sobretudo a dos camponeses nordestinos, em que política,
memória, subjetividade e cinema se entremeiam com efeito ímpar. Iniciado em
1964, no Engenho Galileia, em Pernambuco, contando com a participação de
Elizabeth Teixeira, viúva de João, a produção do filme foi interrompida com o
golpe militar de alguns meses depois. Através do retorno da produção ao local,
no entanto, não só alguns participantes da produção interrompida se reveem 17
anos antes, como Coutinho consegue encontrar a viúva Elizabeth, que abandonou
quase todos os filhos com o avô e foi morar em São Rafael, cidade ainda sem
iluminação elétrica, no Rio Grande do Norte, onde passou a se chamar Marta e
divide seu tempo entre serviços domésticos e a alfabetização básica para
crianças do local. Tendo como destaque inicial a contextualização em que se dá
a morte de João Pedro, onde tornam-se figuras de destaque não só a viúva como
os depoimentos de João Virgíneo e Manoel Serafim. Na sua segunda metade, o
filme se deterá, sobretudo, em uma tentativa de reagrupar, em imagens, a
família que se esfacelou com a repressão, indo atrás de depoimentos de todos os
filhos de Dona Elizabeth, assim como de seu pai, que sempre fora contra o
marido e com quem rompera desde então. Nesse segundo momento, fica patente como
tornou-se problemático para todos, em maior ou menor grau, a construção de uma
identidade para si, assim como familiar, alguns deles passando a reconhecer
como pais os tios ou o avô que os adotaram, embora de forma ambígua – já que
não sabiam ao certo se a mãe se encontrava ou não viva. De forma mais
emblemática no suicídio da filha mais velha de Elizabeth, pouco tempo depois da
morte do pai. Entre seus melhores momentos, encontra-se o depoimento em que um dos moradores de
Galileia apresenta ao documentarista dois dos livros deixados pela produção à
época, guardados como relíquias – um de sociologia e outro de teoria do cinema
– e que os militares teimavam em ser de propriedade de agentes comunistas
provenientes de Cuba. Ao mesclar elementos da história da nação com a memória
particular de um grupo familiar, tendo como principais elementos de suporte o
próprio cinema – não se possui nenhuma imagem de João Pedro vivo – e as
fotografias que restaram da produção de quase vinte anos antes, o cineasta
interfere diretamente na identidade dos próprios envolvidos, seja revelando aos
filhos que a mãe não se encontra morta, seja (num dos momentos mais belos do
filme) forçando que Elizabeth afirme sua própria identidade frente aos
vizinhos, de quem a maioria não sabia de seu passado. Mesmo que interfira
diretamente na vida dos que retrata, ao retornar ao passado, o filme se escusa em convidar diretamente os
filhos de Elizabeth para encontrar a mãe e
cair no chavão da cena final do reencontro de Elizabeth com os filhos,
típica das reportagens de televisão, limitando-se a afirmar em seu final que
até o momento ela só havia voltado a reencontrar-se com dois deles. Elizabeth,
que havia permanecido, de certa forma, lacônica ao longo da produção e mais de
uma vez elogiado o governo Figueiredo pela proposta de redemocratização que possibilitara
a anistia e o reencontro entre membros de várias famílias, somente ao final,
quando o cineasta abandona o local, é que resolve fazer um discurso crítico de
forma mais enfática. Prêmio FIPRESCI no Festival de Berlim. Mapa/Eduardo
Coutinho Produções. 119 minutos.
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