Cacá Diegues traz a 'Favela Gay'

RIO - “Nada é mais diferente que um homossexual do que outro homossexual”. A frase, proferida pelo deputado Jean Wyllys, resume o espírito de “Favela gay”, um documentário que mostra o cotidiano dos homossexuais nas favelas do Rio de Janeiro, e tem lançamento previsto para o fim do ano, no Canal Brasil.
Filmado nas comunidades Cidade de Deus, Rio das Pedras, Rocinha, Vidigal, Complexo do Alemão, Complexo da Maré e Andaraí, o filme aborda temas como homofobia, preconceito, aceitação da família e trabalho. Jean Wyllis é um dos entrevistados. Longe de promover um simples desfile exótico de personagens, o documentário mostra, com a crueza da linguagem das favelas, e com a poesia das imagens do cinema, os múltiplos seres que se abrigam sob as letras do arco-íris LGBT, descortinando, ainda que apenas pela duração do filme, o que realmente significa ser gay num espaço dominado pelo preconceito, pela violência e pela pobreza.
O filme tem concepção e direção de Rodrigo Felha, morador da Cidade de Deus, e produção de Cacá Diegues e Renata de Almeida Magalhães. A ideia surgiu em 2008, a partir de um já tradicional jogo de queimado organizado na Cidade de Deus pela MC Tati Quebra-Barraco. Ao filmar a partida, Felha notou que o ápice do evento acontecia na hora em que os gays tomavam conta da quadra.
— A comunidade toda parava para vê-los. A partida era movida a funk, e eles dançavam no meio do jogo, se enfrentavam, batiam cabelo. No filme, as imagens estão romanceadas, em câmera lenta, para captar esse espírito desafiador deles, que é fascinante — explica.
A partir da experiência no jogo, rebatizado de “gaymado” pelo sucesso dos jogadores, o diretor buscou mais informações sobre a vida do homossexual na favela, mas descobriu que o que tinha nas mãos era inédito. Sem estrutura para filmar, Felha começou pela própria comunidade. Seu primeiro personagem foi o cabeleireiro Flávio Ruivo, gay assumido e um de seus melhores amigos.
— Conheço o projeto desde que era uma semente. A primeira gravação foi na casa de uma amiga minha, com uma câmera bem simples. Filmamos os gays daqui e o material ficou guardado — relembra Ruivo.
Logo depois, Felha se envolveu em outro projeto, “5x Pacificação”, uma das muitas continuações do documentário “5x Favela”, de Cacá Diegues, lançado em 1962. Ao término das filmagens, o diretor mostrou o material do projeto sobre os homossexuais a Cacá, que abraçou a ideia.
— É um tema original, que aborda duas questões muito pertinentes à sociedade hoje em dia: o gay e a favela. Eu não sabia nada sobre esse mundo; fui descobrindo conforme as filmagens foram acontecendo. O filme é todo do Felha, eu apenas dei a ele a oportunidade de realizá-lo da melhor maneira — reconhece o produtor.
Foram três meses de pesquisa até chegarem aos 11 protagonistas da película: alMarthinha, Flávio, Rafaella, Gilmar, Jean Wyllis, Carlinhos, Jeckie, Dejanete, Guinha, Pandora e Michelli. A tônica do filme foi dada pelos próprios personagens, à medida que revelavam suas histórias.
Sou um hétero que se meteu a estudar o mundo gay sem escrúpulos. A proposta não é levantar bandeira, e sim mostrar que os gays não são todos iguais, assim como as favelas são diferentes. O que essas pessoas têm em comum são as dificuldades — resume Felha.
Drogas, prostituição e violência
Flávio Ruivo foi quem ajudou Felha a captar o que havia de mais significativo no universo gay das favelas. Ele, que já sentiu o preconceito na pele diversas vezes, acredita que a melhor saída é enfrentar os opressores, mesmo que isso represente um risco à própria vida.
— Já levei pedrada na rua, já levei chuva de ovos, já tive amigos assassinados. Isso é comum na favela. Uma vez, encurralaram uma amiga minha, travesti, em um beco porque ela esbarrou na mulher de um traficante. Tive que implorar para deixarem ela viver. Quando é comigo, enfrento também — relata.
Em outra ocasião, Flávio conseguiu impedir o que seria uma verdadeira chacina.
— Antes de a UPP chegar, fui avisado de que um traficante queria matar todas as minhas amigas (travestis) que se prostituíam na Estrada dos Bandeirantes, porque elas estavam roubando dentro da favela. Saí correndo até a casa dele e implorei que poupasse a vida delas — relembra Flávio. — Não sou contra a prostituição, o corpo é delas. Mas elas não precisam se envolver em conflitos.
Por essas e outras, o cabeleireiro é retratado no filme como uma “cafetina do bem”, como ele mesmo se classifica. No entanto, Flávio afirma que só interfere quando acha que há injustiça.
— Do mesmo jeito que tem hétero abusado, tem gay abusado. Se eu vir que ele está errado, lavo minhas mãos. Não vou queimar meus cartuchos de defesa à toa. A nossa vida já é uma luta constante contra o preconceito — comenta.
O preconceito, aliás, também parte de dentro da própria comunidade LGBT. Por causa das diferenças, alguns grupos não se entendem, e as brigas são constantes.
— As pessoas acham que somos iguais e não é verdade. A transsexual tem alma feminina, mesmo sem ter fisionomia de mulher. O travesti é completamente diferente, tem uma alma que vai além do gay; é exagerado, mais pesado. Só quem convive sabe a diferença — esclarece Flávio.
Guinha, do Complexo do Alemão, é um exemplo claro de como há diversidade de gêneros em um mesmo rótulo. Sua orientação sexual se manifestou cedo e, aos 12 anos, já sentia atração por meninos. Isto não o impediu de ser goleiro no Fluminense e servir ao Exército.
— Foi o melhor período da minha vida. Fiquei como cozinheiro e me diverti horrores lá. Nunca sofri preconceito por ser gay — conta.
Pouco depois de ser dispensado, Guinha começou a se prostituir, deslumbrado com o mundo dos travestis.
— Uma bicha disse que ia ser minha madrinha: me deu um salto e uma saia e foi assim que comecei — relata.
Agora, aos 40 anos, o líder comunitário garante ter abandonado a prostituição e pretende iniciar uma nova etapa:
— Quero cursar Psicologia ou Serviço Social. Meu sonho é ser vereador. Acredito que vou conseguir, porque tenho apoio da comunidade.
Orgulho, preconceito e diversidade
Cabeleireira há 14 anos, Marthinha é travesti e representante do movimento LGBT na Rocinha, onde mora. Foi responsável, junto com uma das associações de moradores, pela primeira parada gay da comunidade, em 2010. Ela acredita que sua luta abriu caminho para as gerações que vieram depois, mas não foi nada fácil. Na época em que decidiu contar sobre sua orientação sexual à família, Marthinha, que ainda se chamava Marco Aurélio, teve que enfrentar outro desafio: ser aceita na panelinha de travestis da comunidade. Para isso, teve que passar por uma cerimônia de iniciação.
— Para entrar no grupo, as bichas mais novas tinham que ser batizadas pelas mais velhas. Elas me pegaram e me jogaram num valão. Entrei Marco Aurélio e saí Martha Júlia Shymytds — revela.
Segundo Marthinha, a situação na comunidade está pior hoje do que jamais esteve. O problema, diz ela, é da falta de união entre os grupos.
— Infelizmente, o povo da Rocinha é desunido. Existe uma concorrência medíocre entre gays, lésbicas e “travas”, que têm pavio curto — diz, referindo-se aos travestis.
Apesar dos estereótipos, Martinha acredita ser um travesti diferente dos outros. Namorando há dois anos Bruno, um rapaz de 26 anos, a cabeleireira foge de brigas e não disputa território:
— Sou hiperfechada, não dou conversa. Estou com 34 anos e já passei por muita coisa. Me assumi aos 14 anos, e minha mãe ficou sem falar comigo seis meses. Hoje, ela até compra vestidos para mim.
A transexual Rafaella Lívia, moradora de Rio das Pedras, também foge dos rótulos. A estudante de Biblioteconomia, nascida William Soares, conta que seus pais sempre notaram que havia algo diferente, mas nem ela entendia o que era.
— Tive uma adolescência confusa, não gostava do meu corpo, mas não sabia o que era. Só aos 18 anos me assumi, e minha família não aceitou. Me levaram para a igreja evangélica, mas não adiantou. Não queria ser uma pecadora pregando a Palavra — diz Rafaella.
Sua história começou a mudar há quatro meses, quando passou a tomar hormônios. Hoje, aos 25 anos e prestes a se formar, Rafaella acha que sua condição não a faz diferente:
— Diferentemente de muitos gays, não virei prostituta. Fiquei em casa, estudando, graças a Deus. Sou um exemplo de que o gay pode ter família e emprego, como qualquer pessoa. Não somos sujos, e o “Favela gay” vai mostrar isso.
Cacá Diegues concorda.
— Nenhum filme é feito para ensinar, e sim para despertar curiosidade. No caso do “Favela gay”, isso é feito de maneira muito honesta. É um filme estimulante, que vai provocar muita discussão e marcar um ponto importante no cinema brasileiro.

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