Filme do Dia: Eu, Um Negro (1958), Jean Rouch
Eu, um Negro (Moi, un Noir, França, 1958). Direção e Rot. Original: Jean Rouch. Música:
Joseph Yapi Degré. Montagem: Catherine Dourgnan & Marie-Josèph Yoyotte.
Com: Amadou Demba, Karydio Faoudou, Gambi, Oumarou Ganda, Seydou Guede,
Alassane Maiga, Petit Touré.
Em Treichville,
Costa do Marfim, o filme acompanha a trajetória de Edouard G. Robinson (Ganda)
pelo trabalho de estivador no porto, por sua admiração por Eddie Constantine
(Touré), que possui todas as mulheres que quer e pelo taxista Tarzan (Maiga),
que possui seu próprio carro. No trabalho, conta histórias fabulosas que viveu
pelo mundo, na Indochina ou na França, para o companheiro Elite (Demba). No
final de semana, diverte-se com os amigos tomando banho de mar, e sonhando com
o boxe, assistindo fascinado as apresentações de Eddie Constantine. E, à noite,
vai aos bares sonhar com o dia que terá Dorothy Lamour (Gambi), a prostituta
por quem é apaixonado, em seus braços. Porém, logo seu sonho é interrompido
pela presença de um italiano que a convence a mais um programa. Sem dinheiro e
bêbado, Robinson é expulso dos bares. No dia seguinte, apanha do italiano,
quando vai até o quarto de Dorothy. Segunda-feira marca o retorno ao trabalho
explorador, somado a triste notícia de
que Constantine foi preso por agredir um policial e que ficará ao menos três
meses na cadeia.
Nesse semi-documentário, Rouch consegue uma dimensão de
forte lirismo, sem abdicar de retratar existências conscientes do nível de
exploração social que sofrem, procurando representar uma semana na vida de um
personagem que, embora fictício, funciona como catalisador dos próprios desejos
e frustrações daquele que o encarna. Nesse sentido e inovadoramente, o cineasta
pediu que os próprios sujeitos do filme, que não eram atores profissionais,
criassem personagens de si próprios e ensaiassem uma pequena ficção a respeito
de sua realidade cotidiana. O resultado, que demonstra o nível de
interiorização do colonialismo cultural (todos os personagens que invocam são
referências ao cinema francês ou americano, como Robinson, Eddie Constantine e
sua encarnação popular como o detetive Lemmy Caution, posteriormente reciclado
para outros propósitos, por Jean-Luc Godard, em Alphaville, com Constantine
voltando a viver o personagem célebre) é somado a própria exploração econômica
interna e a questão racial. Seu protagonista, é um jovem negro, desempregado e
emigrado da Nigéria para a Costa do Marfim, complexado por não possuir os seus
três maiores objetos de desejo, que acredita que todo “cidadão normal” deveria
ter: mulher, automóvel e residência. Apóia-se fortemente no som
pós-sincronizado (embora Rouch já fizesse uso das câmeras de 16 mm tanto em
termos de barateamento de custos, quanto de expressividade visual, por sua
leveza, ainda não havia incorporado o uso do som direto), colando um discurso
posterior in off às imagens. Nesse
sentido, seus filmes proporcionaram uma revolução tanto tecnológica quanto
estética para o cinema mundial apresentando a possibilidade de, através de
recursos semi-amadorísticos, criar uma ficção que não desse às costas para o
real. Portanto, embora faça uso consciente de recursos da dramaturgia ficcional
(os flashbacks de Robinson
rememorando uma infância de prazeres se
encontram entre os mais belos momentos do filme) jamais deixa de fazer
referência direta a realidade sócio-econômica retratada. Entre seus momentos
mais tocantes também podem ser incluídos o sonho do protagonista de ser
boxista, quando se vê combatendo no ringue, para logo depois comprovar que
aquilo tudo era ilusão, as apresentações de dança, seu tributo a Dorothy Lamour
e sua constatação, irônica, de “que cinema não é coisa para pobre”. Em termos
formais, foi o primeiro filme a fazer uso do corte abrupto (jump cut), no momento em que Robinson e
Elite caminham na praia. Sua influência, na cinematografia mundial, é
inquestionável, antecipando tanto a estética da fuga dos estúdios e da
“proximidade da vida” presentes na Nouvelle
Vague, quanto características do cinema documental brasileiro da década de
1960 ou a incorporação da estética documental em filmes abertamente ficcionais,
como no caso de Cassavetes. Les Films de La Plêiade. 70 minutos.
Fascinante!
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