Filme do Dia: Manderlay (2005), Lars Von Trier


Manderlay (Dinamarca/Suécia/Holanda/França/Alemanha/EUA, 2005). Direção e Rot. Original: Lars Von Trier. Fotografia: Anthony Dodd Mantle. Música: Joachim Holbek. Montagem: Bodil Kjæhauge & Molly Marlene Stensgård. Dir. de arte: Peter Grant. Cenografia: Simone Grau. Figurinos: Manon Rasmussen. Com: Bryce Dallas Howard, Isaach De Bankolé, Danny Glover, Willem Dafoe, Jeremy Davies, Lauren Bacall, Chloë Sevigny, Jean-Marc Barr, Udo Kier.

Com a posse sobre Manderlay, antiga propriedade escravista que pertencia a Senhora (Bacall), Grace (Howard) provoca uma reviravolta nos costumes, tentando aplacar o que ela considerava como sendo um sistema arcaico, desumano e desprovido de sentido. Porém, suas mudanças provocam reações das mais inesperadas, como quando utiliza a tomada de decisões em maioria para exemplificar o que seria a democracia, e o grupo decide matar a velha, pois ela roubara a sacrificada comida reunida pela comunidade para alimentar uma criança. E mesmo as que aparentemente foram benéficas a curto prazo como a melhoria das casas proporcionada pelo intocado Jardim da Senhora logo demonstraram ser desacertadas, pois era o Jardim que continha as eventuais tempestades de areia que ameaçavam cobrir toda Manderlay, como acontece. Em meio a uma situação de penúria extrema, em que todos passam a devorar areia e os gangsters herdados pelo pai de Grace (Dafoe) ameaçam se amotinar contra ela, a liderança do orgulhoso Timothy (Bankolé) faz com que a situação volte a normalidade, com o cultivo do algodão sob condições especiais que acaba proporcionando ricos lucros que são divididos pela comunidade. Com a fartura, Grace decide liberar os gângsteres e acredita que agora se torna possível uma vida livre para todos, consumando seu novo desejo ao fazer sexo com Timothy ao modo dele. A felicidade terá vida curta, pois o dinheiro conquistado pelo algodão é roubado. Para a completa surpresa de Grace, ela descobrirá que não foram os gângsteres mas Timothy o autor do roubo. Numa última reunião com a comunidade, tornar-se-á prisioneira da comunidade sob a ordem do patriarca Wihelm (Glover), que lhe revela que foi ele o autor do Livro da Senhora.

Segundo filme da trilogia EUA – Terra das Oportunidades, que se ressente da estrutura bastante similar ao anterior Dogville sem a mesma vitalidade, prejudicada tanto pela utilização dos mesmos recursos dramatúrgicos do anterior quanto por uma narrativa menos inspirada e por uma atuação do elenco talvez menos brilhante – principalmente no que diz respeito a protagonista. Para além dos cenários modestíssimos sobre fundo negro, o filme faz uso como seu antecessor de uma divisão em capítulos, de uma irônica e grave narração off, de trilha sonora (ainda que aqui também original, enquanto em Dogville era utilizada somente peça de Vivaldi, numa utilização de trilha clássica algo reminiscente, enquanto potencializadora da ironia, do Kubrick de Barry Lyndon) e de uma postura distanciada diante do que é narrado. Menos importa enveredar pelo habitual psicologismo e mimetismo do mundo como no anterior, que fazer uma leitura crítica dos fundamentos do Sonho Americano. Nessa sua interpretação, pode-se ir além da reflexão sobre particularmente os Estados Unidos e alargar sua profunda desconfiança quanto ao fato da sociedade liberal ser mais “humana” ou “iluminada” que a sociedade tradicional escravista. Nesse sentido, a Senhora vista em princípio apenas como uma megera ou os negros como meras vítimas  de um sistema infame podem ser apreciados sem o verniz do trivial maniqueísmo com que habitualmente foram interpretados pelo cinema em retrospecto, já que os últimos acabam demonstrando serem plenamente dignos e portadores de suas próprias estratégias de sobrevivência ao massacre humano ao qual foram submetidos e a primeira organizadora de um complexo sistema de codificação de seus trabalhadores e de estruturação do espaço físico em Manderley completamente estranhos ao idealismo pretensioso de sua nova proprietária. Tampouco foge ao olhar irônico de Von Trier o fato de que a crueldade d’o sistema escravista ser visualizado apenas diante de um Outro arcaico e ultrapassado, sem perceber que tal sistema se reproduz tal e qual com os próprios gângsteres que trabalham para Grace e seu pai. Ao final, a mesma música-tema e utilização de fotos fixas de cenas do cotidiano miserável e de violência nos Estados Unidos presentes no filme anterior. Zentropa Ent./Edith Film Ou/Film i Väst/Isabella Films B.V./Manderley Ltd./Memfis Films & Television/Ognon Pictures/Pain Unlimited GmbH Filmproduktion/Sigmall Films. 139 minutos.




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