Largar do concreto para o ideal era o seu lema, assentar a evolução de uma ideia em coisas
palpáveis como sementes, flores, abelhas, cortiços, mel, e tanto assim que quando partia para o
seu platonismo amoroso recusava-se a considerar que fosse a timidez a empurrá-lo, aduzia
razões de ordem absolutamente material, científica: sou um heredo-sifilítico; a D. Cláudia, uma
constituição linfática, fragilíssima; pois bem, casamo-nos e depois que filhos deitaremos ao
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mundo? Saltava daqui para as implicações morais: não me parece justo chamar à vida um ser
doentio, deformado ou louco; punha mesmo em dúvida se era lícito a alguém fazê-lo, um rei
que fosse, com o problema da sucessão às voltas; e a verdade é que tudo isso está dentro das
possibilidades do nosso casamento; etc, etc; até se ver claramente que não tinha o direito de
insistir com a D. Cláudia. Neste ponto encontravam-se os dois. Por caminhos diversos
chegavam ao acordo tácito de que aquele puro amor lhes ia bastando por agora, e um dia que a
ciência possa garantir-me uma sã descendência, dizia o Dr. Neto, um dia em que eu me atreva a
fitar a crueza da vida, pensava a D. Cláudia, nesse dia, talvez acabassem por casar.

Carlos de Oliveira, Uma Abelha na Chuva, p.33-4

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