Filme do Dia: O Enigma de Kaspar Hauser (1974), Werner Herzog
O Enigma de Kaspar Hauser (Jeder für sich und Gott gegen alle,
Alemanha, 1974). Direção e Rot. Original: Werner
Herzog. Fotografia: Jörg Schmidt-Reitwein &
Klaus Wyborny. Montagem: Martha Lederer & Beate Mainka-Jellinghaus.
Dir. de arte: Henning von Gierke. Figurinos: Ann Poppel & Gisela Storch.
Com: Bruno S., Walter Ladengast, Brigitte Miral, Herbert Achternbusch, Helmut
Döring, Gloria Doer, Alfred Edel, Florian Fricke, Andi Gottwald, Michael
Kroecher, Hans Musaeus, Enno Patalas, Clemens Scheitz, Willy Semmelrogge,
Kidlat Tahimik, Henry van Lyck.
Kaspar
Hauser (Bruno S.) passou toda sua infância e adolescência acorrentado em um
porão. Certo dia, no entanto, seu algoz o leva até uma vila próxima, e o deixa
no centro de uma praça. É então levado à polícia. Após ser inspecionado pelo
capitão (Lyck), passa a viver em uma torre, na qual se alojam vagabundos e
delinquentes. Um fazendeiro (Achternbusch) e sua esposa passam a adotá-lo e
lhes ensinam algumas noções de comportamento social, como se portar à mesa ou
banhar-se, enquanto seus filhos lhe visitam regularmente na prisão e lhes
ensinam algumas palavras. Kaspar demonstra sentimentos pelo bebê do casal. Na
prisão é vítima do escárnio de um grupo. Como desperta a curiosidade de muitas
pessoas dos arredores, o capitão afirma que é melhor que ele ajude no seu
próprio sustento, que sai caro para os cofres públicos. Kaspar passa então a
integrar uma trupe mambembe, sendo apresentado pelo mestre de cerimônias
(Semmelrogge), na pose em que foi encontrado,
como um dos maiores enigmas do universo, ao lado de outras atrações
excêntricas como o Pequeno Rei (Döring), Hombrecito (Tahimik) e o Jovem Mozart
(Gottwald). Porém, aproveitando um descuido do dono do circo, fogem. O
professor Daumer (Ladengast), um homem culto e de espírito humanista que o
observara no espetáculo adota-o. Juntamente com a criada Kathe (Mira), zela
pela educação de Kaspar. Esse recebe visitas tanto de pastores, que lhes querem
incutir a fé cristã como de um professor de matemática (Edel) que lhe deseja
incutir a lógica. Porém, mesmo com todos os avanços que conseguiu nos dois anos
de sua educação, Hauser ainda sente-se infeliz por não poder tocar música como
se respira, tal e qual o pianista cego Florian (Fricke), também adotado por
Daumer. A reputação do jovem Kaspar logo se espalha e, certo dia, quando
escreve sua autobiografia, Daumer lhe avisa que ele recebera um convite para
ser apresentado ao círculo de Lorde Stanhope (Kroecher), nobre londrino que
diz-se interessado em adotá-lo. Porém a noite se torna um fiasco, com Kaspar
apresentando-se hostil ao ambiente aristocrático. De volta à residência de
Daumer, revolta-se contra os modos refinados que ultimamente adotara,
vestindo-se de forma mais simples e sofrendo um atentado por um desconhecido
(Musaeus). Embora plenamente recuperado, pouco tempo depois sofre um novo
atentado ao qual não escapa. Em seu leito de morte, cercado de amigos e dos
pastores, conta uma de suas histórias sobre o deserto que não sabe o final. Seu
cérebro é examinado, quando da autópsia, e dado como anormal. O escriba
(Scheitz), feliz com o desfecho do caso, dispensa o cocheiro e volta a pé para
casa.
Da
atmosfera enevoada e azulada das sequências iniciais às imagens do deserto
filmadas em super-8, passando pelos tipos humanos utilizados, todo o filme
recende a uma atmosfera onírica e visionária como as da uma narrativa
tradicional (o que, de certa forma, não deixa de ser verdade, já que a história
faz parte da tradição popular alemã). Não falta um humor sutil, que subliminarmente
acompanha toda a narrativa, presente seja no desejo de precisão do notário ou
no tom de voz que Daumer pronuncia o nome do protagonista. Kasper ganha na
representação de Bruno S., ele próprio vítima de continuadas internações
psiquiátricas ao longo da vida, a encarnação perfeita para o papel de “bom
selvagem” que Herzog almeja. Com sua razão intuitiva ele consegue confundir
tanto a ordem teológica quanto científica de seu tempo, representada nos
encontros que ele tem com os pastores e com o professor de lógica. O carisma
que nos desperta Kaspar se encontra na sua própria postura pueril, seja
tentando fazer com que um gato ande apenas com duas patas, ninando o bebê,
alimentando um pássaro ou descobrindo que as maçãs possuem uma lógica que, à
semelhança da sua, procura não se dobrar aos imperativos da razão positiva e que
acabará por lhe explicar seu comportamento diferenciado, através da via
biológica. Nesse sentido, o capitão e seus assistentes, que anotam todas as
atitudes de Kaspar em um protocolo também representam um poder cada vez mais
persecutório. Alheio as convenções sociais da época, Kaspar chega a indagar
inocentemente sobre qual a função das mulheres. Seu próprio sentido de
estranhamento com o mundo lhe levará a uma autoconsciência de ser rejeitado e
tido como não mais que uma excentricidade para diversão alheia, como quando
replica para a jovem da nobreza que sentia-se melhor no porão onde fora
encontrado que no salão aristocrático onde conversam. As cenas que apresentam
Kaspar em contato com a sociedade são de um ascetismo formal, com a câmera
geralmente fixa, como que demonstrando o seu sentimento de deslocamento. O
oposto pode-se dizer das sequências que apresentam belezas naturais, onde o
movimento da câmera e a bela utilização das composições de Albinoni e Pachebel,
como que identifica o mundo natural como a única possibilidade de lirismo
frente ao mundo frio da razão humana. Prêmio Especial do Júri em Cannes, o
filme sedimentou o nome de Herzog como um dos cineastas mais representativos do
século XX. Outra versão foi produzida pelo cinema alemão na década de 90. Uma abordagem semelhante sobre um personagem
moralmente virtuoso que se transforma em alvo de uma impiedosa curiosidade da
sociedade foi tema de O Homem Elefante
(1980), de David Lynch. Seu título original em alemão, que se tornou bem menos conhecido que o título internacional é "Cada Um Por Si e Deus Contra Todos", extraído do Macunaíma, de Mário de Andrade.
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