Lá falar, falavam. Mas ele sabia que nenhum dos dois estava a ser varado pelo pavor. Vida
e morte o que são? A morte é perder as terras, a loja, o dinheiro, para sempre; e apodrecer,
devorado pelos vermes; ali estava a explicação da sua repugnância por bichos miúdos, aranhas,
minhocas, carochas, centopeias, larvas, essa infinidade pululante de pequenas monstruosidades.
Esmagou as mãos uma na outra, porque a morte existe, pode chamar à porta quando lhe
apetecer, e imaginou-se demoradamente no caixão aberto, ainda em casa, ainda acompanhado
do murmúrio humano que o velava, daí a nada atirado à garganta da cova com cal por cima e
terra, depois a lousa, o abandono: os outros regressam à casa e eu para ali fico, sufocado,
sozinho, a morrer outra vez, porque via tudo isso como se as coisas se passassem e ele com
consciência, como se ouvisse o rumor da noite em que o velavam, o latim do padre Abel no
cemitério, as pazadas de terra a cair no caixão, o fervilhar irreparável dos vermes.

Carlos de Oliveira, Uma Abelha na Chuva, p. 35.

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