O Dicionário Biográfico de Cinema#128: Kirk Douglas

 

Kirk Douglas (Issur Danielovich Demsky), n. Amsterdam, Nova York, 1916*


Demsky ainda sorri através dele, com certeza Douglas foi feito para Dostoievski. Ele é o maníaco-depressivo entre as estrelas de Hollywood, num minuto caindo na trama, diálogo e atrizes com um apetite alegre de alguém recém-liberto da Sibéria, e noutros contorcendo-se não apenas em agonia, mas mutilação e uma morte horrorosamente convincente. Portanto, deixou um dedo em The Big Sky [O Rio da Aventura] (52, Hawks), uma orelha em Lust for Life [Sede de Viver] (56, Vincente Minnelli), e um olho em The Vikings [Vikings, os Conquistadores] (58, Richard Fleischer), foi espancado em Champion [O Invencível] (49, Mark Robson), ferido na barriga com uma tesoura em Ace in the Hole [A Montanha dos 7 Abutres] (51), de Billy Wilder, rolou no arame farpado em Man Without a Star [Homem sem Rumo] (55), de King Vidor, crucificado em Spartacus (60), açoitado por seu próprio criado (às suas ordens) em The Way West [Desbravando o Oeste] (67, Andrew V. Mclaglen), e geralmente assediado em diversos outros filmes.

E isso não quer dizer que Douglas não pudesse tornar tal agonia crível e comovente. Pelo contrário, em Detective Story [Chaga de Fogo] (51), de Wyler, Along the Great Divide [Embrutecidos pela Violência] (51), de Walsh, Paths of Glory [Glória Feita de Sangue] (57), de Kubrick e, sobretudo, como Van Gogh em  Sede de Viver sua às vezes fácil intensidade é maravilhosamente atrelada ao tema do filme e o senso de tragédia é perfeitamente julgado. O equilíbrio entre criatividade apaixonada e aleijante inadequação pessoal em Sede de Viver é ainda mais louvável, já que fora do território habitual de Minnelli. Outras vezes, no entanto, Douglas parece no limite de ridicularizar sua própria impetuosidade ultrajante: portanto Viking, os Conquistadores, The Devil's Disciple [O Discípulo do Diabo] (59, Guy Hamilton), muito de Spartacus, e a maioria de seus filmes posteriores podem ser o anverso bruto do que seria uma linha altamente individual em extravagantes vilões cômicos. Isto é provavelmente Douglas mais à vontade, e novamente possui um original russo: Rasputin. No entanto, seu primeiro sucesso nas telas foi como o gangster risível de Out of the Past [Fuga do Passado] (47, Jacques Tourneur); e o mesmo prazer intrigante pode ser visto como o repórter de A Montanha dos 7 Abutres; como Jonathan Shields, o produtor de cinema, em The Bad and the Beautiful [Assim Estava Escrito] (52), de Minnelli; como Doc Holliday em Gunfight at the OK Corral [Sem Lei e Sem Alma] (57, John Sturges); como o fora-da-lei em The War Wagon [Gigantes em Luta] (67), de Burt Kennedy; e como o assaltante em There Was a Crooked Man [Ninho de Cobras] (70), de Mankiewicz

A carreira de Douglas começou propriamente após a guerra, ainda que ele tenha trabalhado no teatro antes de servir à guerra na Marinha. Em 1946, Hal Walllis o contratou e Douglas fez sua estreia em The Strange Love of Martha Ivers [O Tempo Não Apaga] (46), de Milestone. Fez seu caminho em I Walk Alone [Estranha Fascinação] (47, Byron Haskin), The Walls of Jericho [Muralhas Humanas] (48), de John Stahl, e A Letter to Three Wives [Quem é o Infiel?] (49), de Mankiewicz, antes de atingir o estrelato como o boxeador em O Invencível. Após isto, nunca mais perderia sua popularidade, nem a habilidade de se divertir. Ele é cativante porque raramente se envolveu em solenidade ou pretensão. Estes vícios parecem ter sidos deixados de lado cedo com Mourning Becomes Electra [Conflito de Paixões] (47, Dudley Nichols) e The Glass Menagerie [Algemas de Cristal] (50, Irving Rapper) e somente reapareceriam  em Act of Love [Mais Forte que a Morte] (53), de Anatole Litvak, o rídiculo Town Without a Pity [Cidade sem Compaixão] (61), de Reinhardt, em Seven Days in May [Sete Dias de Maio] (64, John Frankenheimer) e, infelizmente, em The Arrangement [Movidos pelo Ódio] (69), de Kazan

Douglas, mais habitualmente, foi ao extremo do lúdico - como no bastante divertido 20, 000 Leagues Under the Sea [20.000 Léguas Submarinas] (54, Fleischer) e The Indian Fighter [A Um Passo da Morte] (55), de de Toth. Como acréscimo, fez uns poucos filmes fora da linha: o excelente Strangers When We Met [O Nono Mandamento] (60), de Quine - no qual Kim Novak explora a fenda em seu queixo, como se indagasse em qual filme havia ganho aquela lesão; Lonely Are the Brave [Sua Última Façanha] (62), de David Miller; e recuperando-se de um colapso e dos tremores em Two Weeks in Another Town [A Cidade dos Desiludidos], um companheiro querido de Assim Estava Escrito.

Por volta do final dos anos 60 Douglas tinha caído em preguiçosos filmes de ação, comédias fracas e filmes de "convidados", tais como Patton em Is Paris Burning? [Paris Está em Chamas?] (66, René Clement). Frequentemente realizou filmes através de sua própria companhia produtora, Bryna e, em 1968, produziu The Brotherhood [Sangue de Irmãos], de Martin Ritt, no qual intrepretava um mafioso à antiga, desgostoso com uma nova geração de executivos vestindo ternos cinzas. Esteve em A Gunfight [Duelo de Bravos] (71, Lamont Johnson); torturado por Yul Brinner em The Light at the Edge of the World [O Farol do Fim do Mundo] (71, Kevin Billington); escalado contra seu tipo, como um tímido professor de biologia em Cat and Mouse [Um Assassino na Cidade] (74, Daniel Petrie).

Em 1973 dirigiu seu primeiro filme, Scalawag [As Aventuras de um Velhaco], infelizmente sem o toque de Shields. Mas Posse [Ambição Acima da Lei], em 1975, foi um talentoso western, no qual Kirk teve Bruce Dern como seu rival rico. Parece menos interessado em interpretar sozinho, a se julgar por Once Is Not Enough [Uma Vez só não Basta] (74, Guy Green), de Jacqueline Susan - no qual afirma que suas bolas foram cortadas; Victory at Entebbe [Vitória em Entebbe] (76, Marvin J. Chomsky); e Holocaust 2000 [Exterminação 2000] (77, Alberto de Martino), porém foi seu velho eu urgente, como um pai em busca do filho desaparecido, em The Fury [A Fúria] (78, Brian De Palma), e traído terrivelmente pelo filme. 

Douglas provavelmente reservou mais atenção para escrever sua autobiografia e um romance - para não dizer em observar o novo poder competidor de seu filho Michael. Porém interpretou muito bem, guardando seu trabalho mais intenso para a televisão: The Villain [Cactus Jack, o Vilão] (79, Hal Needham); Home Movies [Terapia de Doidos (79, De Palma); Saturn 3 [Saturno 3] (80, Stanley Donen); The Final Countdown [O Nimitz Volta ao Inferno] (80, Don Taylor); The Man from Snowy River [Herança de um Valente] (82, George Miller); Remembrance of Love [Lembranças de um Amor] (82, Jack Smight), para a TV; Eddie Macon's Run [Caçada Impiedosa] (83, Jeff Kanew); Draw! [Duelo de Amigos] (84, Steven Hilliard Stern); como um homem em um asilo de idosos em Amos (85, Michael Tuchner), que se assemelha a One Flew Over the Cuckoo's Nest [Um Estranho no Ninho]; com Burt Lancaster em Tough Guys [Os Últimos Durões] (86, Kanew); Queenie (87, Larry Pearce), para a TV, interpretando a figura de Alexander Korda; como William Jeninings Bryan no Inherit the Wind [O Vento Será Tua Herança] (88, David Greene), da TV; Oscar [Minha Filha Quer Casar] (91, Landis) e Greedy [Os Puxa-Sacos] (94, Jonathan Lynn).

Sobreviveu a um derrame sério, esforçou-se à sua especial maneira para se rehabilitar, e retornou no óbvio, mas empolgante Diamonds [Em Busca dos Diamantes] (99, John Asher). Ele ainda é Jonathan Shields - alguém que não podemos desligar. Enquanto It Runs in the Family [Acontece nas Melhores Famílias] (03, Fred Schepisi) estava estritamente esperando, The Illusion (04, Michael A. Goorjian) aguardava lançamento.

Texto: Thomson, David. The New Biographical Dictionary of Film. Nova York: Alfred A. Knopf, pp. 754-56. 

(*) N. do E: o ator faleceu em 2020. 

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