Filme do Dia: Nomadland (2020), Chloé Zhao
Depois de
perder sua casa em período de economia em crise, Fern (McDormand) passa a viver
se deslocando de trabalho e local continuamente em sua van, saindo do seu
estado de Nevada rumo ao Oeste.
Talvez
seja mais feliz na atualização temática, servindo como um panorama da classe
trabalhadora norte-americana do seu tempo, em que a fragmentação e
desregulamentação das atividades provoca um grupo de nômades trabalhando por
temporadas, como Norma Rae fora a seu tempo do sindicato no trabalho
industrial, ou Vinhas da Ira dos agrupamentos de deserdados do capital,
que propriamente nas opções formais-dramatúrgicas. De fato, observamos que tal
“flexibilização” das atividades pagas atinge alguns pontos nodais do processo
identitário e da experiência humana (moradia, efemeridade dos contatos) e o
filme já deixa isso claro, inclusive, em termos de “mensagem” contemporânea
quando o primeiro emprego temporário que Fern é observada é justamente como
empacotadora da Amazon. E o faz com relativa moderação no sentimentalismo,
embora dentro de um “combo”, no qual a música, de não muito bom gosto, faz por
vezes esse papel. Sim, há certa novidade nas pessoas que circundam Fern na
primeira metade do filme vivenciarem a si mesmas. Novidade essa para uma
produção que teve o relativo destaque que teve no circuito hollywoodiano,
porque praticada, com variantes, por alguns realizadores neorrealistas em
meados do século passado, inclusive com mais radicalidade – a dupla principal de Ladrões de Bicicleta não
era profissional, embora tampouco representasse a si mesmos e o elenco inteiro
de A Terra Treme era amadora e embora assumissem personagens de uma
adaptação literária, estavam bem próximos de sua realidade em vários aspectos.
E, em termos de interação com o real, a abertura para esse é bem mais
controlada, menos infensa aos riscos que esse potencialmente poderia
apresentar, quando comparado com a mescla entre encenação dramática pensada e
situações de muito mais forte teor documental do brasileiro Iracema, umaTransa Amazônica. Além de ser bem mais controlada, sobre certa “estufa”,
essa participação de não profissionais também desaparece quando o núcleo do
interesse dramático passa a ser o de dois profissionais, McDormand e Strathairn,
armando-se algo que vai além das confissões compartilhadas pelos atores
naturais. Pode soar desleal com o filme de Zhao tais comparações, mas se elas
são feitas é porque também trazem implicações, ao menos enquanto possibilidade,
éticas, como é o caso do forte abraço de despedida de Fern da simpática Linda May. Ela provavelmente está vivenciando ou representando algo que vivenciou
recentemente enquanto tal e McDormand é uma estrela internacionalmente
reconhecida. Não chega a ser a proposta original dos produtores de Ladrões
de Bicicleta de Gary Cooper com amadores italianos, mas se percebe a
disparidade como nunca, e no caso de McDormand o seu peso de profissional
emerge forte, contra a vulnerabilidade muito mais espontânea de May. E, por incrível que seja, isso vale para os dois lados, comprometendo igualmente o
competente trabalho de McDormand, incapaz, não por culpa sua, de sequer se
aproximar da densidade real que figuras como Linda May exalam. E é quase
desnecessário comentar que algo mais se soma ao combo sentimental – o
inevitável psicologismo que faz Fern, a determinado momento (momento esse
que se pretende um dos clímax emocionais do filme), afirmar que ela permanece na
sua luta nômade pelo marido falecido, honrando sua memória. Parece mais honesta
e direta a explicação de uma mãe que perdeu o filho assassinado para o tráfico,
lembrando uma amiga, de que apesar da dor intensa, teria que preparar o café da
manhã no dia seguinte, no documentário não mais que mediano The Hottest
August. Enfim, a vida segue, contas precisam ser pagas. Ao menos, ela
tivesse replicado uma vez mais a justificativa que havia dado à irmã. Ao se
jogar no campo das emoções e da psicologia, para não falar de alusões à própria
história americana – a irmã afirma que ela vive como os pioneiros americanos –
se secundariza os mecanismos sociais mais amplos, e até o ativista-guru vem a
demonstrar que sua militância surgiu como reação ao suicídio do filho, na
contracorrente – nem sempre destituída de problemas igualmente – de um
realizador como o britânico Ken Loach. Embora se saiba que a atriz imergiu no
ambiente dos modernos trabalhadores nômades e seus acampamentos, como uma espécie de asilo não para aposentadoria,
mas para uma reunião de condições precárias de vida e trabalho em idade avançada (no
caso de muitos), sua pintura vai se tornando grandemente secundária. Leão de Ouro em Veneza.| Cor
Cordium Prod./Hear-Say Prod./Highway Man Films para Searchlightpictures. 101 minutos.
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