Filme do Dia: Nomadland (2020), Chloé Zhao

 


Nomadland (EUA, 2020). Direção Chloé Zhao. Rot. Adaptado Chloé Zhao, a partir do livro de Jessica Bruder. Fotografia Joshua James Richards. Música Ludovico Einaudi. Montagem Chloé Zhao. Dir. de arte Joshua James Richards & Elizabeth Godar. Figurinos Hannah Peterson. Com Frances McDormand, David Strathairn, Gay DeForest, Patricia Grier, Linda May, Angela Reyes, Carl R. Hughes, Dogulas G. Soul, Ryan Aquino.

Depois de perder sua casa em período de economia em crise, Fern (McDormand) passa a viver se deslocando de trabalho e local continuamente em sua van, saindo do seu estado de Nevada rumo ao Oeste.

Talvez seja mais feliz na atualização temática, servindo como um panorama da classe trabalhadora norte-americana do seu tempo, em que a fragmentação e desregulamentação das atividades provoca um grupo de nômades trabalhando por temporadas, como Norma Rae fora a seu tempo do sindicato no trabalho industrial, ou Vinhas da Ira dos agrupamentos de deserdados do capital, que propriamente nas opções formais-dramatúrgicas. De fato, observamos que tal “flexibilização” das atividades pagas atinge alguns pontos nodais do processo identitário e da experiência humana (moradia, efemeridade dos contatos) e o filme já deixa isso claro, inclusive, em termos de “mensagem” contemporânea quando o primeiro emprego temporário que Fern é observada é justamente como empacotadora da Amazon. E o faz com relativa moderação no sentimentalismo, embora dentro de um “combo”, no qual a música, de não muito bom gosto, faz por vezes esse papel. Sim, há certa novidade nas pessoas que circundam Fern na primeira metade do filme vivenciarem a si mesmas. Novidade essa para uma produção que teve o relativo destaque que teve no circuito hollywoodiano, porque praticada, com variantes, por alguns realizadores neorrealistas em meados do século passado, inclusive com mais radicalidade – a dupla  principal de Ladrões de Bicicleta não era profissional, embora tampouco representasse a si mesmos e o elenco inteiro de A Terra Treme era amadora e embora assumissem personagens de uma adaptação literária, estavam bem próximos de sua realidade em vários aspectos. E, em termos de interação com o real, a abertura para esse é bem mais controlada, menos infensa aos riscos que esse potencialmente poderia apresentar, quando comparado com a mescla entre encenação dramática pensada e situações de muito mais forte teor documental do brasileiro Iracema, umaTransa Amazônica. Além de ser bem mais controlada, sobre certa “estufa”, essa participação de não profissionais também desaparece quando o núcleo do interesse dramático passa a ser o de dois profissionais, McDormand e Strathairn, armando-se algo que vai além das confissões compartilhadas pelos atores naturais. Pode soar desleal com o filme de Zhao tais comparações, mas se elas são feitas é porque também trazem implicações, ao menos enquanto possibilidade, éticas, como é o caso do forte abraço de despedida de Fern da simpática Linda May. Ela provavelmente está vivenciando ou representando algo que vivenciou recentemente enquanto tal e McDormand é uma estrela internacionalmente reconhecida. Não chega a ser a proposta original dos produtores de Ladrões de Bicicleta de Gary Cooper com amadores italianos, mas se percebe a disparidade como nunca, e no caso de McDormand o seu peso de profissional emerge forte, contra a vulnerabilidade muito mais espontânea de May. E, por  incrível que seja, isso vale para os dois lados, comprometendo igualmente o competente trabalho de McDormand, incapaz, não por culpa sua, de sequer se aproximar da densidade real que figuras como Linda May exalam. E é quase desnecessário comentar que algo mais se soma ao combo sentimental – o inevitável psicologismo que faz Fern, a determinado momento (momento esse que se pretende um dos clímax emocionais do filme), afirmar que ela permanece na sua luta nômade pelo marido falecido, honrando sua memória. Parece mais honesta e direta a explicação de uma mãe que perdeu o filho assassinado para o tráfico, lembrando uma amiga, de que apesar da dor intensa, teria que preparar o café da manhã no dia seguinte, no documentário não mais que mediano The Hottest August. Enfim, a vida segue, contas precisam ser pagas. Ao menos, ela tivesse replicado uma vez mais a justificativa que havia dado à irmã. Ao se jogar no campo das emoções e da psicologia, para não falar de alusões à própria história americana – a irmã afirma que ela vive como os pioneiros americanos – se secundariza os mecanismos sociais mais amplos, e até o ativista-guru vem a demonstrar que sua militância surgiu como reação ao suicídio do filho, na contracorrente – nem sempre destituída de problemas igualmente – de um realizador como o britânico Ken Loach. Embora se saiba que a atriz imergiu no ambiente dos modernos trabalhadores nômades e seus acampamentos, como uma espécie de asilo não para aposentadoria, mas para uma reunião de condições precárias de vida e trabalho em idade avançada (no caso de muitos), sua pintura vai se tornando grandemente secundária.  Leão de Ouro em Veneza.| Cor Cordium Prod./Hear-Say Prod./Highway Man Films para Searchlightpictures. 101 minutos.

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