Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#68: Raúl Ruiz
RUIZ, Raúl (Chile, 1941-2011). Provavelmente o mais prolífico e ativo diretor de cinema no mundo até sua morte por câncer, Raúl Ruiz realizou bem mais de 110 filmes e séries de TV em menos de 50 anos, incluindo 80 longas (e longas curtos). De fato, é impossível produzir uma completa filmografia, porque ele também trabalhou, mas não finalizou, numerosos outros projetos. Nascido em Puerto Montt, no sul do Chile. Com a idade de 15 anos, após receber uma bolsa da Rockefeller, designou-se a tarefa de escrever 100 peças, e em 1962 já havia atingido este objetivo (ainda que fossem somente de poucas páginas). Estudou religião e direito, e uma de suas peças de teatro foi a base para seu primeiro filme (incompleto), realizado quando tinha 19, La Maleta.
Em 1962, abandonou o curso de cinema na Universidade Católica de Santa Fé na Argentina, sob a direção de Fernando Birri. Após trabalhar cinco anos montando noticiários de televisão, iniciou seu primeiro longa ficcional, El Tango del Viudo (1967). Mas a sorte de Ruiz mudou quando foi capaz de ter em mãos uma câmera compartilhada, antes de Aldo Francia e Miguel Littín, e terminar de filmar seu projeto seguinte, Tres Tristes Tigres, em 1968. Portanto, foi o primeiro dos realizadores do nuevo cine chileno a ter um longa de ficção lançado. Tres Tristes Tigres, (expressão trava-língua em espanhol), adaptado de uma peça melodramática de Alejandro Sieveking, em um filme narrativo experimental, dedicado ao sardônico anti-poeta chileno Nicanor Parra. Ele proporciona uma crítica da burguesia chilena (os "três tristes tigres" do título), que são incapazes de se mover com as mudanças do clima político de seu país, mas Ruiz também tentou criticar a forma burguesa, pondo os personagens e a câmera em locais estranhos e pouco familiares. Ainda mais radicalmente, experimentou com a forma narrativa contra a "ideologia" hollywoodiana da "teoria do conflito central", não construindo conflitos que direcionassem a trama adiante.
Seguiu-se outro longa inconcluso, produzido pelo instituto de cinema católico da Universidade do Chile, Militarismo y Tortura, que findou sendo uma colagem de 40 minutos de sequências autonomas e tinha como intenção ser uma paródia de uma leitura/demonstração de como se torturar, e trabalhou em uma co-produção chilena-norte-americana, co-dirigida por Saul Landau, dentre outros, Que Hacer? (1970), que posteriormente renegaria. Por então, no entanto, podia-se já apreciar que Ruiz era um profundo ironista, deliciado pelas contradições. Com seu segundo longa completado, La Colonia Penal (1970), baseado em Kafka, ficou claro que estava lidando com o jugo militarista e colonização, justo estranhamente durante um curto período de democracia! Para seu projeto seguinte, Nadie Dijo Nada, Ruiz recebeu apoio da televisão italiana (RAI). Compreendendo que sua própria proposta socialista era diferente do governo do Partido da Unidade Popular, deliberadamente obscurece-os em uma história de escritores que "vivem em sua própria realidade e acreditam que é, de fato, a do Chile." (Afterimage, 10: 118) Ao conseguir realizar Nadie Dijo Nada abaixo do orçamento, Ruiz foi capaz de bancar dois outros projetos de longas documentais, La Expropriaciónm (1971-72) e El Realismo Socialista (1973), ambos os quais tentavam explicar a Unidad Popular de uma forma mais séria, embora ficcional. Nenhum dos dois foi completamente finalizado quando Ruiz foi forçado a fugir para o exílio, em 1973, ainda que tenha feito três curtas para a televisão chilena e dois longas pouco antes do golpe, Palomita Blanca, uma crítica socialista do romance que lhe serviu como fonte, que relata de forma acrítica, a exploração dos jovens chilenos, e Palomilla Brava, um documentário de 60 minutos sobre o processo de escolha da atriz principal.
O primeiro filme que Ruiz realizou no exíliio, Dialogo de Exilados (1974), foi imediatamente recebido negativamente, mesmo pelos próprios chilenos exilados. Interessado em apresentar uma experiência política ficcionalizada do exílio em geral, de uma forma brechtiana, Ruiz focou nos chilenos exilados em Paris, dentre os quais há um intruso fascista. Nos dois anos seguintes somente foi capaz de realizar dois filmes, porém em 1977 um curta de vinte minutos, Colloque de Chiens (Colóquio de Cães), apresentava o rumo que sua obra estava indo. É criado um pastiche hilariante das telenovelas ao se combinar fotomontagem, filmagens da realidade das externas referidas nesta história e imagens dos cães conversando! Talvez desencorajado pela ausência de compreensão de suas tentativas de lidar com a história e a política chilenas, a obra de Ruiz no exílio se tornou crescentemente abstratra e fabulista em suas relações com a cultura latino-americana.
De 1977 em diante, recebeu apoio da televisão francesa e do Institut National de L'Audiovisuel (INA) para realizar numeros curtas e longas-metragens, tanto documentários quanto ficções. Signficante dentre os 25 que realizou nos seis anos seguintes são Des Grands Evenements et des Gens Ordinaires (1978), uma espécie de anti-documentário sobre as eleições francesas; La Vocation Suspendue (1977), um longa de ficção baseado no estranho conto de Pierre Klossowski de intrigas religiosas, que ridiculariza as estruturas de poder político da Igreja Católica; e um ainda mais estranho longa multilinguístico (holandês, francês, espanhol, inglês, alemão e uma língua indígena fictícia) que zomba tanto da antropologia quanto do cinema etnográfico, Het dak van de Walvis (O Teto da Baleia, 1981). Ambientado na Patagônia, Argentina, mas filmado na Holanda, o último filme foca na residência de uma antropólogo e sua esposa, que encontraram os últimos sobreviventes de uma tribo desconhecida de um povo indígena e tenta decodificar sua linguagem. Nativos e colonizadores igualmente são apresentados como estereótipos negativos, e dado que foi rotulado como uma "comédia de horror antropológica do Terceiro Mundo", não é surpreendente que não tenha sido um sucesso (mesmo tendo sido lançada em videotape na América do Norte).
O filme de Ruiz mais bem sucedido do período foi Les Trois Couronnes du Matelot (As Três Coroas do Marinheiro, 1983), que combina um estilo visual extraordinariamente lúgubre, mesclando preto & branco, imagens monocromáticas, e cores saturadas de histórias em quadrinhos, com Orson Welles, composições em profundidade de foco e uma narrativa complicada - todos desejam contar suas próprias histórias dos altos mares. Ganha um forte aroma latino através de todos estes elementos e sua ambientação imaginária no porto de Valparaíso, Chile.
Nos dez anos seguintes Ruiz continuou a realizar filmes com alusões a sua terra natal sem, na verdade, retornar a ela. Mémoire des Apparences, 1986), um de seus mais interessantes longas de ficção experimentais, busca pela "arte da memória" em relação ao que aconteceu no Chile, sem fazer uso de elementos chilenos. Retornou ao Chile em 1990 e passou a fazer filmes como La Novella Errante (também conhecido como La Telenovella Errante). Em 1992 realizou episódios de vinte minutos para o Channel Four (Reino Unido) e pars a série de tv australiana South, intitulado "Las Soledades" (As Solidões), na qual a narração em voz over de Ruiz começa a recontar um sonho; uma garota na tela começa a contar histórias de fadas, fantasmas e navios-fantasmas; vemos um bocado de água e paisagens chuvosas e esverdeadas; e como muitas outras obras de Ruiz, é bastante difícil manter o ritmo com as mudanças em tempo, local e modo (com momentos de documentário).
Ao longo dos anos 90, Ruiz até mesmo realizou alguns projetos relativamente comerciais, tais como o último filme de Marcello Mastroianni, Trois Vies et une Seule Mort (Três Vidas e uma Só Morte, 1996), no qual interpreta quatro papéis; Généalogies d'un Crime (Genealogias de um Crime, 1997), espécie de pequenos atos hitchcockianos, estrelando Catherine Deneauve como uma advogada que nunca ganhou um caso e Michel Piccoli como o chefe da Sociedade Psicanalítica Franco-Belga, que aparenta ser "louco"; e o filmado em língua inglesa Shattered Image (A Imagem de um Pesadelo, EUA/Canadá/Jamaica, 1998). Todos estes filmes contém divertidos artifícios narrativos, mas sua mais impressionante, longa e cara produção veio ao final da década, Le Temps Retrouvé (O Tempo Redescoberto, França/Itália/Portugal, 1999), uma adaptação do último volume de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Repleto de estrelas (Catherine Deneauve, Emanuelle Béart, John Malkovich), este filme é um devaneio reflexivo sobre a memória e a mágica do cinema, e nos traz uma compreensão de que todos os filmes de Ruiz são como adaptações literárias, e se sua obra é frequentemente comparada a de Jorge Luis Borges, e ao identicamente experimental realizador Jean-Luc Godard, é talvez Marcel Proust quem mais desejou emular.
Nos últimos onze anos de sua vida, Ruiz voltou a realizar uma série de obras em sua terra e/ou obteve verbas de co-produção chilenas. Combat d'Amour en Songe (2000), uma impossível de seguir mais divertida narrativa borgeana, de sabor latino-americano, mesclando o erótico com o religioso, realizado em francês e português, adequa-se à última categoria, enquanto Cofralandes, Rapsodia Chilena (2002), um estranho travelogue envolvendo visitantes da França, Alemanha e Inglattera, adequa-se à primeira. Esta estranha mistura de documentário (voz e imagem) e sequencias encenadas inicialmente parecem recontar o retorno à casa do diretor, mas transmuta-se em um retorno ao país ficcional de Cofralandes, uma espécie de Chile onírico. Inicialmente exibido em digital e com 81 minutos em competição no Festival do Mundo de Montreal (onde surpreendentemente ganhou o prêmio FIPRESCI), emergiu como uma série de TV em sete partes, em 2003. Ruiz dirigiu uma série de TV no Chile em 2007, La Recta Provincia, e uma minisérie em 2008, Litoral, assim como dirigiu mais quatro longas em sua terra natal, incluindo La Maison Nucingen (2008), baseado em um conto de Honoré de Balzac, e seu derradeiro filme, La Noche de Enfrente (2012), que foi lançado na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes.
Seu penúltimo filme, Mistérios de Lisboa (França/Portugal, 2010), também aparecendo como uma minisérie de TV e baseado no romance escrito de Camilo Castelo Branco, foi tanto um de seus grandes sucessos - ganhando o Prêmio Louis Delluc, dado pelos críticos franceses de Melhor Filme Francês do Ano - quanto uma típica obra do diretor. A narrativa possui várias viradas em andamento, para explorar a teatralidade e, em última instância, o próprio cinema. Seu filme final, La Noche de Enfrente, é uma marvilhosa eulogia a sua carreira, inspirados nos escritos do companheiro chileno Hernán del Solar. Um dos filmes mais surreais de Ruiz, com cenários complexos, cheios de bric-a-bac, frequentemente incluindo três cômodos ou três níveis de ação, La Noche de Enfrente revisita a vida de um homem idoso, Don Celso (Sergio Hernández),misturando épocas e personagens e adoravelmente sugerindo que quando rapaz (Santiago Figueroa) conversava com Long John Silver (Pedro Villagra), de A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson, uma refereência ao próprio pai do diretor, capitão de um navio. Ruiz morreu em Paris, em agosto de 2011, com complicações que seguiram a uma infecção pulmonar. No Chile foi declarado um dia de luto pelo Ministro da Cultura, e após o serviço de um velório na igreja francesa de Saint George-Paul, ao qual compareceram inúmeros amigos famosos, incluindo Catherine Deneauve e Michel Piccoli, foi enterrado no Chile.
Texto: Peter H. Rist. Historical Dictionary of South American Film. Plymouth: Rowman & Littlefield, 2014, pp. 497-501.
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