Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#96: CINEMA EXPERIMENTAL

 


CINEMA EXPERIMENTAL. Estritamente falando, qualquer filme no qual qualquer experimentação estilística-formal ocorra, ainda que seja com tema único ou divisor de águas, pode ser denominado como "cinema experimental" ou de avant garde, mas a tendência na América do Sul é fazer uso do termo no modo como é aplicado na América do Norte, em relação aos filmes abstratos ou grandemente poéticos, geralmente curtos em duração, sendo formalmente não narrativos. De fato, existem poucos movimentos obviamente experimentais na América do Sul, à parte do movimento do Cinema Marginal brasileiro, também conhecido como udigrudi (underground), do final dos anos 60, onde uma série de jovens diretores, inicialmente associados com o Cinema Novo, e rompendo com o mesmo e realizando filmes narrativos de orçamento extremamente baixo, agressivamente rudes e algumas vezes sem sentido, incluindo o paulista O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla (1968) e o baseado no Rio de Janeiro Matou a Família e Foi ao Cinema (1969), de Julio Bressane. Também, ainda que a maior parte dos filmes do Cinema Novo fossem, de algum modo, convencionais em termos de suas estruturas narrativas, algumas de suas obras-chaves, incluindo alguns dirigidos por Ruy Guerra e todos os estranhos, angustiados e complexos filmes de ficção de Gláuber Rocha, podem ser considerados como obras "experimentais".

O realizador  nascido no Brasil Alberto Cavalcanti foi talvez o primeiro realizador sul-americano a fazer filmes experimentais, na França, nos anos 20, mas nunca voltou a estas práticas quando finalmente realizou filmes em seu país natal. O primeiro filme sul-americano a ser reconhecido como experimental, no entanto, foi o longa brasileiro Limite (1930), o único filme completado pelo brilhante jovem Mário Peixoto, votado pelos críticos de cinema brasileiros, como o mais significativo filme brasileiro de todos os tempos nos anos 80. Nesta década, quando o Brasil vivenciou um sério declínio na produção de filems de longa-metragem, houve um boom na produção de curtas, em vários centros, tal como Porto Alegre, enquanto um realizador brasileiro em particular, Arthur Omar, trabalhou consistentemente no modo experimental, tanto no cinema quanto em vídeo, principalmente na desconstrução da forma documental, realizando "mockumentaries". Também nos anos 1970, um líder do movimento tropicália, Hélio Oiticica (1937-1980), havia montado instalações de cinema expandido e de slides no Rio de Janeiro. As obras de arte vinculadas ao cinema de Oiticica foram finalmente reconhecidas internacionalmente em 2013, quando o fórum do Festival Internacional de Cinema de Berlim, devotou uma série de programas ao artista. 

O lendário curta colombiano La Langosta Azul (A Lagosta Azul, 1954), que ficou fora de circulação por décadas,  também tem sido considerado uma obra experimental, parcialmente porque foi co-dirigido pelo grande escritor sul-americano do "realismo mágico", Gabriel García Márquez. Apesar de claramente possuir uma história, La Langosta Azul é silencioso e não possui entretítulos, derivando sua poética de seu poder de visualidade surrealista e montagem. Existem outros exemplos isolados de filmes "poéticos" realizados na América do Sul, incluindo o documentário  Araya, da venezuelana Margot Benacerraf, sobre trabalhadores de sal na costa caribenha. Em meados ao final dos anos 60 um movimento de dimensões continentais do nuevo cine latinoamericano se desenvolveu, invariavelmente produzindo obras da esquerda política, inspirados pela forma documental, particularmente a obra do argentino Fernando Birri. Alguns dos filmes mais esteticamente radicais foram realizados no Chile, por Miguel Littín e Raúl Ruiz e na Bolívia, por Jorge Sanjinés e o grupo Ukamau (argumentando energicamente pelos direitos dos povos indígenas). O pique da inovação retórica e formal foi conseguido por Fernando Solanas, Octavio Getino e o monumental documentário em três partes do Grupo Cine Liberación, La Hora de Los Hornos (1968), que foi "experimental" no modo que foi filmado e montado, clandestinamente, e então exibido e distribuído com a perspectiva de ser um "work in progress"; os realizadores estavam abertos as sugestões do público por mudanças.

Talvez a Argentina seja o país sul-americano com a mais rica história experimental do cinema e consciência sul-americana. Um fotógrafo, Horace Coppola, realizou filmes experimentais em 16 mm nos anos 20 e 30, e os animadores Victor Iturralde e Luis Bras realizaram experiências com pintura e ranhuras na película nos anos 50 e 60. Mas a cena do cinema experimental decolou nos anos 60, parcialmetne através do apoio do Instituto Torcuata di Tella de Buenos Aires. Esta organização de solidez financeira encorajou a vanguarda em vários meios, e a artista conceitual Marta Minuj, começou a realizar "happenings" nas ruas, ganhando o primeiro prêmio nacional do instituto em 1964. Em 1966 e 1967 Narcisa Hirsch realizou seus primeiros filmes em 16 mm, que recordavam seus próprios happenings, envolvendo distribuição de comida aos espectadores. Seus operadores de câmera eram figuras políticas de esquerda como Raymundo Gleyzer e Gerardo Vallejo. Com uma bolsa, Hirsch visitou Nova York e trouxe uma série de filmes experimentais em 16 mm quando retornou a Buenos Aires, que exibiu para amigos cinéfilos e artistas. Curiosamente, durante a ditadura militar, no final dos anos 70, com as forças governamentais mobilizadas a suprimir as vozes dissidentes no cinema comercial e documental, a comunidade formalmente experimental foi capaz de florescer, e uma série de realizadores, incluindo Horacio Vallergio, Juan Villola, e Gabriel Romano, assim como Claudio Caldini, Jorge Honik e Laura Abel, que trabalharam com super-8, emergiu em cena. Em anos recentes, o Festival Internacional de Cinema de Buenos Aires (BAFICI), tem apoiado consistentemente o cinema experimental, trabalhando em formatos video e digitais, assim como cópias originais em 16 mm. Em 2012 o programador Diego Trerotola trouxe o grande crítico de cinema J. Hoberman de Nova York para apresentar e exibir Flaming Creatures (1963), de Jack Smith, obra chave do cinema estadunidense experimental, do cinema "underground", em 16 mm, e organizou uma retrospectiva ampla da obra de Hirsch.

Não somente o BAFICI tornou-se o mais reconhecido festival internacionalmente na América Latina, mas também provavelmente o mais proeminente mostruário do cinema experimental. Mas a Argentina e a Brasil não são certamente os únicos países sul-americanos com a tradição continuada do cinema "experimental" e na Colômbia correntemente há pelo menos dois realizadores experimentais que recentemente realizaram produções em longa-metragem com recursos bastante limitados. Eles são Carlos Santa, com seu inquérito filosófico sobre "se perder a cabeça", Los Extraños Presagios de León Prozak (2010), utilizando toda forma imaginável de animação; e Felipe Guerrero com seu documentário minimalista (meramente 23 planos estáticos)  observacional, mas belo e revelador, sobre cortadores de cana e máquinas monstruosas que limpam densos e aparentemente antigos crescimentos, Corta (2012), que conseguiu apoio do Hubert Bals Fund na Holanda, e foi exibido na mostra "Stranger than Cinema" no Festival de Cinema de Jeonju.

Trabalhando com apoio financeiro limitado nos seus países natais, outros cinemas nacionais sul-americanos no modo "experimental", incluem o peruano Juan Alejandro Ramirez, que ainda não fez um filme de longa-metragem, mas que recebeu grande apreço e numeros prêmios  por seus sete curtas e poéticos filmes de 16 mm, que invariavelmente mesclam documentário e ficção e analisam as vidas de pessoas marginalizadas; um exemplo é Solo un Cargador (2004), uma encenção ficcionalizada das viagens de um porteiro indígena andino, vistos e ouvidos, a partir de sua perspectiva, ganhando prêmios em mais de dez festivais nos Estados Unidos, Canadá, Brasil, França e alhures. ver também ALONSO, LISANDRO; ANDRADE, JOAQUIM PEDRO DE; BIANCHI, SÉRGIO; BORGES, JORGE LUÍS; CARRI, ALBERTINA; CENTRO DE CINE EXPERIMENTAL; PÂNTANO, O; LA COLONIA PENAL; CORTÁZAR, JULIO; COZARISNKY, EDGARDO; HAMACA PARAGUAYA; HISTORIAS DE LAGARTOS; HISTORIAS EXTRAORDINARIAS; INVASIÓN; LA LIBERTAD; MARTEL, LUCRECIA; POLIAK, ANA; MULHERES. 

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