Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#18: Bolívia
Bolivia. O país sul-americano com a maior população indígena (55%) e mestiça (30%) combinada (85%), a Bolívia - oficialmente chamada Estado Plurinacional da Bolívia - é também a primeira nação no continente a ter um presidente indígena, Evo Morales, um socialista e o primeiro líder boliviano a vencer com maioria absoluta em quatro décadas, em 2005. Repetiria o feito em 2009. O país possui fronteiras com o Peru ao noroeste, com o Chile ao sudoeste, com a Argentina ao sul, com o Paraguai ao sudeste, e o Brasil ao leste e norte. Possui grande diversidade geográfica, variando em altitude de próximo ao nível do mar ao longo do Rio Paraguai na região noroeste de Llanos ao pico andino de Nevado Sajama, a 6.542 metros, e varia no clima da floresta úmida tropical ao leste, passando pelas terras agrícolas relativamente temperadas, aos climas polares do oeste andino. Antes da conquista hispânica, no século XVI, a Bolívia era parte do império Inca, com Tiwanaku no oeste sendo o centro da cultura Aymara que remonta a 2 mil anos. De forma um tanto incomum, existe 36 línguas ameríndias oficiais, que se somam ao espanhol, falado por 60% da população. O quíchua é falado por 21% e o Aymara por quase 15% dos bolivianos. A população da Bolívia era de 9.9 milhões em 2009, com aproximadamente 2 milhões e meio de quíchuas, 2 milhões de aymaras, 180 mil chiquitanos e 125 mil guaranis. Para um país cuja aréa é a vigésima oitava em extensão no mundo, a Bolívia possui uma densidade demográfica bastante baixa (a décima oitava mais baixa do mundo), com somente as Guianas sendo menor no continente.
Como parte do Vice-Reinado de Lima, a Bolívia era então conhecida como "Alto Peru". Após a descoberta da prata de Potosí, tornou-se um centro extremamente rico de mineração de prata, com uma população que superava os 200 mil. Milhões de incas morreram nas minas, e apesar dos veios de prata se esgotarem, após 1800, a Bolívia ainda é a sexta produtora mundial. A última rebelião inca, liderada pelo aymara Túpac Katari, contra as forças coloniais, em La Paz, ocorreu em 1781. A luta pela independência durou de 1809 a 1825, quando o tenente de Simón Bolívar, General José Antonio de Sucre, libertou o "Alto Peru" dos espanhóis, nomeando a nova república em tributo a Bolívar. Após a independência, na Guerra do Pacífico (1879-83), a Bolívia perdeu seu território que margeava o Pacífico, tornando-se destituída de litoral, e também perdendo sua indústria de nitrato ("salitre"). Nos idos do século XX, o estanho superou o ouro como a maior fonte de riqueza do país - a Bolívia ainda é o quarto produtor mundial do minério - mas, após a Guerra do Chaco (1932-1935) com o Paraguai, perdeu a maior parte do Chaco Boreal ao Paraguai, em um armistício em 1938. Ambos os lados sofreram perdas devastadoras - 100 mil mortos, incluindo 57 mil bolivianos - e ambas as nações ficaram em ruína econômica (um tratado final sobre as fronteiras não seria assinado até 2009). A população indígena foi desprovida de educação, oportunidades econômicas e participação política até a formação do Movimiento Nacionalista Revolucionario, em 1941, partido que levou a uma genuína revolução, em 1952, estabelecendo o sufrágio universal, a nacionalização das minas de estanho e a reforma agrária. Após um golpe militar, em 1964, presidentes eleitos tem se alternado com governos militares até 1982, quando a democracia finalmente fincou raízes. O General Hugo Banzer Suaréz foi o ditador que governou por maior tempo (1971-1978), banindo os partidos políticos de tendências à esquerda, prendendo adversários políticos, e alegadamente matando 200 deles. Surpreendentemente, aos 71 anos, seria eleito presidente (1997-2001), com uma agenda conservadora, incluindo a erradicação da coca, que Morales tem revertido.
O cinema chegou a Bolívia em 1897, quando uma exibição do kinematográfo de Thomas Edison foi anunciada em La Paz, e o primeiro filme que se pensa ter sido feito no país foi Retratos de Personajes Históricos y de Actualidad (1904), por "Marini e Monterrey". Alguns argumentam que os primeiros filmes locais não foram exibidos até 1906, enquanto outros acreditam que os primeiros "cinejornais" bolivianos não foram realizados antes de 1913, por Luis G. Castillo. Outros realizadores pioneiros bolivianos incluem J. Goytisolo, com La Visita del General Pando a la Escuela Militar de Chorrillos (1914), e um imigrante italiano, Pedro Sambarino, que é creditado como realizador do primeiro documentário de longa-metragem, Actualidades de la Paz (1923). O primeiro longa de ficção, que também pode ter sido o primeiro filme de ficção verdadeiramente boliviano foi Corazón Aymara (1925), de Sambarino, baseado em peça de Angel Salas, que também escreveu o roteiro. La Profecía del Lago, de José María Velasco Maidana foi iniciado em 1923 e finalizado somente oito anos depois de Corazón Aymara. Ambos os filmes introduziram uma longa tradição no cinema boliviano de se focar em temas indígenas, mas Velasco Maidana foi demasiado longe, à época, ao representar um caso entre uma rica branca e um homem ameríndio; o filme foi banido, e desapareceu. Somente mais três longas ficcionais foram realizados nos tempos do cinema mudo: La Gloria de la Raza (1926), dirigido por Arturo Posnasky (*); Wara Wara (termo aymara para "estrelas", 1930), de Velasco Maidana, o único filme silencioso boliviano que se sabe ter sobrevivido; e Hacia la Gloria (1932).
Dois documentários bolivianos foram realizados sobre a Guerra do Chaco: La Campaña del Chaco (1933), de Mario Camacho e La Guerra del Chaco (1936), de Luis Bazoberry. Em Hollywood, a Paramount pensou que poderia fazer dinheiro no mercado de língua hispânica com uma história de amor em tempos de guerra, Alas sobre El Chaco (1935), dirigida pelo chileno Carlos Barcosqué; o estúdio também realizou uma versão em língua inglesa chamada Wings over Chaco (1936). Efetivamente, não houve mais filmagens na Bolívia até 1947, quando o americano Kenneth Wasson estabeleceu uma produtora, Bolivia Films, e contratou Jorge Ruiz e Augusto Roca, inciando, portanto, um ciclo de filmes promocionais ou profissionais patrocinados no país.
Um dos mais significativos anos do cinema boliviano foi 1952, quando o economista Victor Paz Estenssoro se tornou presidente e criou a Secretaria de Imprensa, Informação e Cultura. O que, por sua vez, levou a formação do Instituto Cinematográfico Boliviano (ICB), encarregado da produção de cinejornais, e filmes culturais e educacionais, alguns dos quais sendo co-produzidos com organizações norte-americanas tais como a United States Information Service (USIS). O ICB claramente produziu filmes promocionais, inicialmente sob a direção do cunhado do presidente, Waldo Cerruto, mas possibilitou a oportunidade para diversos realizadores desenvolverem suas técnicas, de 1953 em diante, particularmente Ruiz e Roca, mas também Hugo Roncal, Nicolás Smolij, Enrique Albarracín, e após o ICB ter sido fechado após o golpe militar de 1964, e depois reaberto em 1965, Juan Miranda, Ricardo Rada, Jorge Sanjinés e o roteirista Óscar Soria. O ICB foi definitivamente fechado em 1968. Em 1952, Gonzálo Sanchéz de Lozada colaborou com Ruiz e Soria em um projeto de longa-metragem, Detrás de los Andes, mas o filme foi abandonado quando o material filmado foi perdida em um incêndio em um laboratório estaduniense em 1954. Em 1958 Ruiz dirigiu um notável longa, La Viertente, filmado por Smolij, escrito por Soria, e produzido por Albarracín para o ICB, que mesclava documentário e ficção.
Em 1966 Sanjinés dirigiu seu primeiro longa, Ukamau (termo aymara, para "é dessa forma que é"), que se tornou o filme boliviano mais visto na história, com 300 mil espectadores, iniciando uma série de bastante intensa de filmes politicamente motivados do Grupo Ukamau, o mais notável deles, Yawar Mallku (Sangue de Condor, 1969), e El Coraje del Pueblo (1971), ambos dirigidos por Sanjínes, e Chuquiago (o nome aymara para La Paz, de 1977), dirigido pelo veterano cinegrafista Antonio Eguino e escrito por Soria, após Sanjinés ter se exilado. A despeito, do tumulto político inicial de golpes e mudanças de orientação ideológica, seguidos pela brutal ditadura do General Banzer, a década 1968-78, foi a mais produtiva do cinema boliviano até então, com dez longas realizados no país e três no exílio (por Sanjinés e Ruiz). Estes incluem o primeiro longa de Jorge Mistral, Crimen .sin Olvido (1970); Patria Linda (1972), de Alfredo Estivariz; Señores Generales, Señores Coroneles (1976), de Alfonso Gumucio Dragón; La Chaskañawi (quíchua para "A Mulher com Olhos da Estrela d'Alva", 1976), que foi processado no Brasil; e um documentário sobre os oitavos jogos esportivos bolivarianos (1978), de Miguel Angel Illanes. Nessa mesma época, Luis Espinal, padre jesuíta e importante crítico de cinema, dirigiu alguns curtas sobre problemáticas sociais para a Televisão Boliviana, incluindo Pistolas para la Paz (1969), e Roncal realizou alguns interessantes curtas documentais, incluindo Viva Santa Cruz (1970), Puente al Progreso (1972) e La Gran Tarea (1975). Por outro lado, os anos 70 foram um período bastante difícil para o cinema boliviano, com a inexistência de laboratórios para processar filmes em 35 mm e 16 mm, exceto os disponíveis para o estúdio de TV. Os realizadores não somente tinham que conseguir filme virgem do exterior, mas na maior parte das vezes processar seus filmes alhures. Além do que, haviam taxações em ambas as transações. Quase todos os filmes exibidos nos cinemas eram produções comerciais hollywoodianas, argentinas e mexicanas. Em 1976 a cinemateca privada de La Paz foi inaugurada, depois chamada Cinemateca Boliviana e, em 1977, 250 mil pessoas acorreram para assistir Chuquiago, um enorme sucesso.
Em 1978, a Associação de Cineastas da Bolívia elegeu Soria como seu presidente. Uma lei do cinema foi proposta, defendida pele Consejo Nacional Autónomo de Cine (CONACINE), fundado em 1982, mas não validada antes de 1992. Enquanto isso, nenhum filme foi produzido em 1979-80, e em 1980 o Padre Espinal foi brutalmente assassinado por um grupo paramilitar; seguindo o golpe, o líder do mais antigo sindicato na América do Sul, a Central Obrera Boliviana (COB), também foi assassinado. Um punhado de longas foi realizado em 1981, mas mesmo após a formação do CONACINE, não havia dinheiro para distribuir com os realizadores. Miraculosamente, graças a incrível inflação (mais de 2000%), em 1983-4 cinco longas foram produzidos, um dos quais nunca acabado; o documentário Las Banderas del Amanecer (1983), de Sanjinés, e Amargo Mar, de Eguino, foram ambos exibidos em 1984, enquanto Tinku, el Encuentro, de Miranda e Los Hermanos Cartagena, surgiram ambos em 1985. Ainda que os ingressos fossem baratos (cerca de 15 centavos), o público de cinema diminuiu em 75% em dois anos, com numerosas estações de tv particulares surgindo e nenhum longa boliviano sendo realizado entre 1985 e 1989. Ao final da década um novo filme boliviano de Sanjinés surgiu, a economia melhorou e o público começou a retornar. A era da produção em 16 mm havia acabado, e os documentários em vídeo eram agora produzidos para exibição televisiva. A lei de cinema de 1992 legislou que a Cinemateca Boliviana era o arquivo cinematográfico oficial nacional, e que apoio financeiro deveria ser dado para a preservação do cinema; uma isenção fiscal deveria ser providenciada para filme virgem utilizado em produções bolivianas; os fundos de produção deveriam ser doados aos roteiros selecionados; e uma cota de tela foi introduzida na apresentação de curtas bolivianos nos cinemas.
Os anos 90 viram a emergência de uma nova geração de realizadores bolivianos, incluindo Marisol Barragán, uma animadora que venceu uma medalha da UNICEF no Uruguai em 1994; Marcos Loayza, cujo primeiro longa, Cuestión de Fé [Questão de Fé] (1995), ganhou o Prêmio Coral de Melhor Primeiro Longa no Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano de Havana e diversos outros prêmios em outros festivais de cinema; e Juan Carlos Valdivia, cujo primeiro longa, Jonás y la Ballena Rosada [Jonás e a Baleia Rosada, 1995], foi o mais caro filme boliviano jamais produzido, custando 1.2 milhão de dólares, e o primeiro filme boliviano a ser submetido a consideração da Academia de Artes e Ciências estaduniense para o Oscar de língua estrangeira. Na verdade, 1995 foi o maior ano para o cineam boliviano de todos os tempos, com cinco longas sendo lançados, dentre eles o primeiro filme de uma mulher, Méla Marquez, Sayariy (quíchua para "levante"). O próximo filme boliviano a ganhar atenção internacional foi o terceiro longa de Agazzi, El Día que Murió el Silencio (O Dia em que o Silêncio Morreu, 1999). Em 2003, uma bastante incomum co-produção EUA/Bolívia, Dependencia Sexual, dirigida por Rodrigo Bellot, que compara os problemas de sexualidade adolescente nos dois países, empregando a tela dividida - duas imagens separadas são observadas, lado a lado - ganhou dois prêmios no Festival Internacional de Cinema de Locarno. Foi a segunda submissão (não bem sucedida) da Bolívia para os Oscars. Em 2004, o quarto longa de Agazzi, El Atraco [O Assalto], foi a sexta maior atração de bilheteria no país. Apesar de ainda existir pouca verba disponível do CONACINE para apoiar a produção de cinema, dois outros longas foram produzidos em 2004, uma comédia de humor negro de Loayza e a primeira produção digital de Sanjinés. A produção anual agora havia crescido a três ou quatro longas de ficção ao ano, e a produção digital se tornou a regra, com cinco trabalhos nesse modo em 2006, três dos quais foram transferidos para 35 mm, para distribuição, incluindo Quien Mató a la Llamita Blanca? [Quem Matou a Pequena Lhama Branca?], o maior sucesso comercial boliviano do ano. A tecnologia digital permitiu o acesso fácil para a realização de documentários, e três foram feitos sobre o novo presidente, Evo Morales.
O único filme a ser filmado em celulóide (super 16 transferido para 35 mm) em 2007 foi Los Andes no Creen en Dios, de Eguino, bem recebido crítica e comercialmente. Em outubro a Cinemateca Boliviana finalmente teve sua grande inauguração, acompanhada pela exibição de uma cópia restaurada do filme silencioso de 1930 Wara Wara, de Velasco Maidana. Em 2008, a longamente esperada ficção ...Saber que te he Buscado, de Márquez, foi finalizada. O ano também marcou uma série de co-produções internacionais, incluindo Che: Guerrilla [Che 2: A Guerrilha] e La Traque (França/Alemanha), ambos com elenco selecionado pelo ubíquo Bellot, que também dirigiu seu segundo longa em 2008, e a co-produção boliviana-alemã Escribime Postales a Copacabana, dirigida por Thomas Kröntaler e produzida por Agazzi, que foi lançada em 2009. Zona Sur [Zona Sul], de Juan Carlos Valdivia - o terceiro dos quatro longas do diretor a ser a indicação boliviana ao Oscar - teve a melhor bilheteria de final de semana de lançamento dentre os filmes bolivianos lançados em 2009, com quase 6 mil espectadores. Outra notável co-produção desse ano foi El Regalo de la Pachamama, do diretor japonês Toshifumi Matsushita.
Possivelmente as duas melhores ficções filmadas na Bolívia no final da década foram co-produções multinacionais, También la Lluvia [Conflito das Águas, Espanha/México/França, 2010), dirigido por uma espanhola, Icíar Bollain, e ambientado em Cochabamba, no qual o povo local protesta sobre o corte de seu fornecimento de água, enquanto um filme estrangeiro está sendo filmado lá, e Blackthorn [Os Implacáveis, Espanha/EUA/França/Bolívia), filmado inteiramente em locações bolivianas e dirigido por outro hispânico Mateo Gill (**), um filme de ação sério-dramático que traça as aventuras de Butch Cassidy na Bolívia. O primeiro ganhou o prêmio do público da sessão Panorama em Berlim e numerosos outros prêmios em 2011, incluindo três Goyas (os "Oscars" da indústria espanhola), enquanto o último ganhou quatro Goyas em 2012. Durante os primeiros seis meses de 2011, 10 filmes bolivianos foram lançados no país, número ineditadamente elevado, mas o público em geral ainda prefere os filmes de Hollywood. ver também ANIMAÇÃO; CINEMA ETNOGRÁFICO; CINEMA EXPERIMENTAL.
Texto: Rist, Peter H. The Historical Dictionary of South American Cinema. Plymouth: Rowman & Littlefield, pp. 84-89.
(*) N. do E: provavelmente grafado errado, sendo o nome do diretor Arturo Posnansky
(**) N. do E: Mateo Gil
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