Diretoras de Cinema#11: María Luisa Bemberg



 BEMBERG, MARIA LUISA (1940*-1995), Argentina. María Luisa Bemberg é mais conhecida por dirigir Camila (1984), uma co-produção hispano-argentina baseada na história real de uma mulher do século XIX que fugiu com um padre e foi perseguida e executada com seu amante. Um drama de época exuberante, o filme, como muitos latino-americanos, destaca a difícil situação de uma mulher de espírito livre, que desconsidera os códigos sociais de um ordem e autoridade patriarcais, particularmente as figuras da igreja e da família. Camila desconsidera a autoridade de ambos os poderes. Ela ignora o fato de sua avó ter sido literalmente trancafiada por demonstrrar inapropriadamente a sexualidade feminina. Como sua avó, ela perde sua vida por um amor. O posicionamento de Bemberg da história de amor ilicita dentro da própria igreja é uma subversão da autoridade clerical. Como Barbara Quart observa, a própria história de amor é definida como uma forma de "cativeiro" por muitas realizadoras ocidentais (p. 253).

Camila é, na verdade, uma narrativa de cativeiro que pode não permitir uma saída para a protagonista feminina, mas fornece um quadro metadiegético, dentro do qual a mulher tira bastante autoridade das mãos de seus opressores, e voluntariamente exibe seu autodefinido erotismo. O filme tem sido denominado como melodrama, pondo-o na tradição da literatura feminina do romance romântico. Mas a novela romântica e o filme melodramático são desprivilegiados pela maior parte da crítica e cânone masculino-orientado. Recentemente, no entanto, críticas de cinema feministas (**) reavaliaram esta forma admitidamente sobrecarregada como um local de subversão política feminista e expressão dialógica. O que proporcionou uma nova luz aos previamente ignorados ou desacreditados filmes de muitas realizadoras, incluindo Lois Weber nos Estados Unidos e muitas outras realizadoras internacionais. A mulher melodramática de Bemberg é tanto um sinal do olhar objetificador masculino como outra coisa: a reconstrução da subjetividade feminina, autoridade e voz. O rosto desafiador de Camila, iluminada e fotografada para realçar superficialmente sua máscara de ódio, é indisfarçavelmente feminista em sua natureza. Soma-se a isso, as vozes patriarcais observadas pelas figuras masculinas. Por exemplo, o avô de Camila considera no filme que "uma mulher solteira (...) ou o convento ou o matrimônio (...) o matrimônio é ordem (...) e nenhum povo ou país pôde viver sem ordem."

A sexualidade feminina está em desacordo com o estado político, com a  própria "normalidade" patriarcal. Deveria ser suprimida ou finalizada. Em Camila, dá-se um fim, e o filme de Bemberg é um dos mais trágicos filmes da história do cinema latino-americano. O filme implica um discurso em dupla voz, ou dualidade de intenções. Por um lado, parece se conformar às convenções narrativas do cinema patriarcal (a mulher transgressora sofre e morre). Mas o manuseio desta morte desafia abertamente as convenções nas quais a diretora claramente transmite ao público a completa ausência de razão inerente ao ato da opressão patriarcal, que é observada em toda sua feiúra. De acordo com o raciocínio de Camila, a sexualidade da mulher não podia, ou deveria, ser reprimida ou oprimida. 

Para dirigir seus filmes, María Luisa Bemberg divorciou-se de seu marido, após crescer em uma família da elite. Em certo sentido, na tela, em Camila, ela interpreta a fuga que fez do que era aparentemente uma forma de cativeiro real. Seus filmes e roteiros sempre giram em torno das lutas das mulheres e das transformações feministas. Miss Mary, seu quinto longa (***), diz respeito a uma mulher que, em certo sentido, é uma exilada, uma governanta britânica trazida à Argentina nos anos 30 para educar as crianças de classe alta. Outro filme melodramático e lustroso Bemberg localiza a mulher exilada, estrelado por Julie Christie e financiado por capitais norte-americanos. Bemberg localiza a mulher exilada dentro de um outro tipo de cativeiro (trabalho) e traz muitos temas comuns com Camila. O confinamento do corpo e desejo femininos na família burguesa, a religião ortodoxa e o local de trabalho definido pelo masculino são alguns dos temas centrais em Miss Mary. Miss Mary é dilacerada pela repressão sexual e atitudes em relação às mulheres.

A imagem de uma mulher mascarada é outra manifestação de uma forma de captura narrativa que é contextualizada tematicamente em Miss Mary. Em muitos filmes e obras literárias, as mulheres são frequentemente forçadas a se mascararem de forma a de alguma maneira "conterem" sua sexualidade e individualidade. Em Miss Mary, a figura materna geralmente usa óculos escuros, e as filhas são obcecadas com maquiagem. A própria Miss Mary, como Camila, uma uma máscara de apagamento ou falta insondável, nunca permitindo expressar dor ou desejo, como forma de pagar o preço de recuperar sua subjetividade. A jovem latino-americana, Carolina, deseja escapar de sua via de mascaramento e objetificação. A opressão feminina é compartilhada, para além das fronteiras de terra e cultura, entre Carolina e a britânica, ainda que as duas sejam separadas pela língua e outras diferenças culturais. Bemberg sobrepõe a ordem colonialista (através da figura de Miss Mary) sobre a ordem patriarcal latino-americana. 

Miss Mary, de Bemberg, justapõe melodrama com laivos de subtom irônico feminista, particularmente nas cartas que Miss Mary escreve para sua família colonialista inglesa. Aqui Bemberg traz com maestria um humor sombrio que expõe as expectativas colonialistas através das palavras de sua figura exilada. As cartas de Miss Mary criam um universo ficcional que dizem respeito menos à realidade que as expectativas colonialistas da outra terra, exótica. Ao invés de descrever a atmosfera de decadência e rancor familiares, Miss Mary escreve sobre um pitoresca fazenda, cheia de "nativos" felizes. É um filme de complexidade, por conta de suas múltiplas camadas e da interação dialógica de Bemberg de melodrama, humor e sofrimento. 

Bemberg continou a realizar a complexos, ainda que exuberantes, filmes de época, que são frequentemente desconsiderados enquanto melodramas. Yo la mas Pobre de Todas (****) (1990), se centra em uma freira e poetisa mexicana do século XVII, que se une a igreja para encontrar um local que seja seu para perseguir uma vida de contemplação e escrita. María Luisa Bemberg foi não somente a primeira realizadora argentina comercialmente bem sucedida, mas uma das poucas diretoras latino-americanas que tem sido distribuída internacionalmente. 

Filmografia Selecionada 

El Mundo de la Mujer (1972) (c)

Juquetes (*****) (1978) (c)

Momentos (1980)

Señora de Nadie  (1982)

Camila [Camila: O Símbolo de uma Mulher Apaixonada] (1984)

Miss Mary (1986)

Yo, la Peor de Todas (1990)

De Eso no se Habla (1993)

Bibliografia Selecionada

Brunette, Peter. "Political Subtext in a Fairy Tale from a Feminist." New York Times, September 25, 1994, 14H, 16H.

 Burton, Julianne, (org.) Cinema and Social Change in Latin America. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1990.

 Freydberg, Elizabeth Hadley. "Women of Color: No Joy in the Seduction of Images." In Multiple Voices in Feminist Film Criticism, (org.) Diane Carson, Linda Dittmar, e Janice Welsch, pp. 468-80. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1994.

 Fusco, Coco, ed. Reviewing Histories: Selections from New Latin American Cinema. Nova York: Hallwalls, 1987.

 King, John, and Nissa Torrents, (orgs.) The Garden of Forking Paths: Argentine Cinema. Londres: BFI, 1987. 

 Lesage, Julia. "Latin American and Caribbean Women in Film and Video." In Multiple Voices in Feminist Film Criticism, (orgs.) Diane Carson, Linda Dittmar, and Janice Welsch, pp. 492-502. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1994.

Lopez, Ana. "Tears and Desire: Women and Melodrama in the 'Old' Mexican Cinema." In Multiple Voices in Feminist Film Criticism,  (orgs.) Diane Carson, Linda Dittmar, and Janice R. Welsch, pp. 254-70. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1994. 

 Pick, Zuzana M., (org.) Latin American Film Makers and the Third Cinema. Ottawa: Carleton University Press, 1978.

 Quart, Barbara. Women Directors: The Emergence of a New Cinema. New York: Praeger, 1988.

Texto: Foster, Gwendolyn Audrey. Women Film Directors - An International Bio-Critical Dictionary. Westport/Londres: Greenwood Press, 1995.  pp. 38-41.


N. do E.: (*) Nascida em 1922, segundo o IMDB. 

N. do E.: (**) é um tanto cabotino da autora associar esta reavaliação somente aos estudos feministsas, tendo em vista que antes deles, autores como Peter Brooks e Thomas Elseasser trouxeram o foco para uma reavaliação mais ampla do próprio gênero e diversas de suas potencialidades. 

N. do E.: (***) Ao que tudo indica, seu quarto longa.

N. do E.: (****) Yo, la Peor de Todas segundo o IMDB. 

N. do E.: (*****) o título, na verdade, é Juguetes.

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