Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#79: Joaquim Pedro de Andrade

 



ANDRADE, JOAQUIM PEDRO DE (Brasil, 1932-1988). O "poeta" satírico do Cinema Novo brasileiro, Joaquim Pedro de Andrade é o único dos grandes realizadores sul-americanos a ter toda sua obra restaurada e lançada em uma caixa de DVDs, pela Carlotta, na França, e Filmes do Serro, no Brasil. Andrade nasceu no Rio de Janeiro; enquanto estudava física na Universidade Federal do Rio de Janeiro, tornou-se um ativo membro cineclubista. Em 1953 realizou seu primeiro curta em 16mm, e em 1959 dirigiria dois documentários em preto&branco para o Instituto Nacional do Livro, sobre o sociólogo Gilberto Freyre e o poeta Manuel Bandeira. Inicialmente programados para serem partes de um mesmo filme, mas dividi-los certamente ressalta O Poeta do Castelo, no qual as imagens de uma vida cotidiana deliberadamente aborrecida e solitária são animadas pela voz over de Bandeira reinvindicando a visita a uma cidade mágica - provavelmente, está indo apenas caminhar pelo Rio. O Mestre de Apipucos, no entanto, é uma apresentação bastante convencional de um dia na vida privilegiada de Freyre, sua esposa e e seus criados (talvez irônico, dada a monumental análise do escritor do feudalismo europeu e patriarcado, Casa Grande & Senzala).

Andrade recebeu uma bolsa para estudar cinema em Paris, e depois Londres. Enquanto estava no Institut des Hautes Études Cinématographiques (IDHEC), em 1961, terminou seu curta seguinte, Couro de Gato, um semi-documentário, com o qual Andrade virtualmente introduz o movimento do Cinema Novo individualmente. Este pequeno filme notável, parte de Rio Quarenta Graus (1955), de Nélson Pereira dos Santos, ao ter cinco garotos das favelas como protagonistas. Após o filme informar que os tamborins de carnaval são realizados com couro de gato, compreendemos porque a tarefa de cada garoto é capturar um gato. Somente um é bem sucedido, e claramente se arrepende, após se enternecer crescentemente por seu cativo. Couro de Gato  serviu de inspiração para e foi incluído no filme em cinco episódios Cinco Vezes Favela (1962), frequentemente considerado a primeira obra relevante do Cinema Novo.

O filme seguinte de Andrade, o documentário em longa-metragem Garrincha, Alegria do Povo (1963), é ainda mais notável. Talvez o primeiro  grande filme sobre o jogo de associações do futebol, realizado não muito após o Brasil ter conquistado sua segunda Copa do Mundo (1962, após a de 1958), com um país ainda arrebatado, particularmente por Garrincha (o apelido de Manuel Francisco dos Santos, "passarinho feliz", a maior estrela do torneio de 1962. O filme é estruturado em três principais segmentos. No primeiro fotos fixas são intercaladas com imagens de Garrincha jogando, sobretudo para seu time, Botafogo (em um subúrbio carioca) - frequentemente no enorme estádio do Maracanã - onde o único som é o barulho ambiente da multidão. O segundo segmento se inicia com uma entrevista, seguida por uma sequencia na qual Garrincha revisita sua pequena cidade industrial de Pau Grande, misturando-se a seus velhos amigos e jogando futebol com eles. Este segmento finda com uma voz over discutindo como os realizadores utilizaram uma câmera escondida para apresentarem Garrincha indo a um banco, numa cidade grande, e como é inicialmente invisível - distante dos campos de futebol, não é necessariamente reconhecido. Aqui e no terceiro segmento, que brilhantemente segue filmagens dos dois sucessos em Copas do Mundo com cenas do fracasso de 1950 no próprio campo brasileiro - o estádio do Maracanã havia sido construído para o torneio e manteve a maior multidão à época a testemunhar um evento esportivo, 199.854 pessoas - perdendo  para o Uruguai na partida final, compreendemos a crítica de Andrade do terrível controle que os esportem podem ter sobre as pessoas. Há muitos planos de rostos na multidão, inicialmente demonstrando satisfação do Brasil e do sucesso de Garrincha, mas posteriormetne exibindo tristeza e angústia, talvez prenunciando o desastre distante dos campos do futebolista, seguido a realização do filme, envolvido em alcoolismo e sérios problemas financeiros e conjugais. Morreu de cirrose hepática antes de completar 50 anos, uma figura quase esquecida, apesar das palavras "alegria do povo" terem sido escritas em sua tumba. 

Dirigindo seu primeiro longa ficcional, O Padre e a Moça (1965), vagamente baseado no poema de Carlos Drummond de Andrade (nenhuma relação de parentesco), Joaquim Pedro revisitou seu primeiro amor, o modernismo literário. Ao contrário de seus colegas de Cinema Novo, que se inspiraram e tenderam a adaptar romances sociológicos do nordeste, Andrade consistentemente adaptou escritos da primeira fase do modernismo brasileiro dos anos 20. 

Após realizar dois curtas documentais em 1967, sobre a nova capital do país, Brasília, e Cinema Novo, para a tv alemã ZDF, para seu segunda longa de ficção, Macunaíma, filmado em 1968, uma das mais originais e nacionalmente distintas obras do cinema brasileiro, Andrade adaptou o romance de mesmo nome de 1926, de Mário de Andrade. A mise-en-scène espalhafatosa e carnavalesca, acoplada de seus diálogos absurdos, repletos de provérbios e acompanhada de canções folclóricas inapropriadas, proporcionam um comentário rico sobre a sociedade brasileira contemporânea, particularmente em sua exploração continuada pelo sistema capitalista mundial. Macunaíma ganhou uma série de prêmios no Brasil e, em 1970, foi exibido na mostra Quinzena dos Realizadores em Cannes, também ganhando os prêmios principais do Festival Internacional de Cine de Mar del Plata, no mesmo ano. Ganhou gradualmente a reputação de ser uma obra chave da fase "tropicalista" do Cinema Novo, que se seguiu à promulgação do AI-5 pelo governo militar brasileiro, em 13 de dezembro de 1968, que basicamente suspendia a constituição. De fato, Andrade foi preso em março de 1969, e aparentemente somente foi solto quando o cineasta visitante francês Claude Lelouch recusou exibir seu filme, sem que Andrade estivesse presente.

Sob certos aspectos, o terceiro longa de ficção de Andrade é ainda mais notável que Macunaíma. Seguindo uma chamada da agência patrocinada pelo governo, Embrafilme, para celebrar o sesquicentenário do Brasil, e com fundos proporcionados pela tv estatal italiana, RAI, Andrade moldou o que tem sido chamado o filme mais brechtiano e alegórico jamais feito no Brasil, Os Inconfidentes (1972). Baseado na famosa "Inconfidência Mineira", uma mal sucedida revolta no século XVIII contra à Coroa Portuguesa, em Minas Gerais, liderada por Tiradentes, hoje reverenciado como herói nacional, o filme de Andrade usa somente textos históricos e poéticos como diálogos, sendo portanto impossíveis de serem censurados. Frequentemente os personagem falam para a câmera, como se estivessem dando provas, sendo estruturado através de uma série de flashbacks de cenas planejando a conspiração, intercaladas com cenas dos interrogatórios na prisão, finalizando com o plano-sequencia no qual a rainha condena Tiradentes (José Wilker) a enforcamento, decapitação e esquartejamento, enquanto ao exílio os outros conspiradores. O início e o final de Os Inconfidentes proporcionam suportes irônicos ao filme. As primeiras e últimas imagens são de carne intensamente vermelha infestada por moscas (compreendida retrospectivamente, serem partes do corpo de Tiradentes), acompanhados por Aquarela do Brasil, de Ari Barroso. Imediatamente antes do final, há uma câmara alta do corpo enforcado de Tiradentes; ao lado uma fileira de crianças (vestidas modernamente) aplaudem a execução, um plano que é seguido por imagens documentais em preto&branco de uma parada militar na cidade de Ouro Preto, celebrando o heroísmo de Tiradentes (hoje celebrado com uma estátua e uma "Praça Tiradentes"). Em Os Inconfidentes, nenhum dos conspiradores, com exceção de Tiradentes, é tratado de forma simpática a qualquer momento - possuem interesses próprios e instáveis - e é claro que são todos homens da elite, e condescendentes em seu tratamento das mulheres e dos escravos. 

Três anos depois, Andrade retornou ao universo de fantasia de "realismo mágico" obsceno e grotesco de Macunaíma, adaptando alguns dos 16 contos de Dalton Trevisan (conhecido como o "vampiro de Curitiba") em Guerra Conjugal (1975), um longa envolvendo três histórias - sobre um advogado que seduz suas clientes mulheres, um jovem buscando por ligações sexuais cada vez mais perversas, e um casal idoso engajado em uma guerra conjugal, intercalados em uma cronologia. Enquanto Toda Nudez Será Castigada, de Arnaldo Jabor deu alguma respeitabilidade à pornochanchada, Guerra Conjugal ofereceu às platéias brasileiras pela primeira vez uma primeira crítica efetiva do gênero popular. Com este filme, Andrade produziu talvez sua obra mais típica, um notável antecessor das comédias sexuais de humor negro de Pedro Almodóvar dos anos 80 e indo além, quando une sexo e morte, de formas que mesmo os surrealistas dificilmente imaginariam. Nas palavras do próprio diretor Guerra Conjugal combina "sujeição doméstica, beijos pútridos, varizes, portas abertas, arterioesclerose, luxúria senil, tapas, delírio do florescimento da carne, uma cama com dente, voyeurismo necrofílico, decoração interior, dúvidas sexuais, bronquite asmática, e mesmo a vitória da prostituição sobre a velhice - todas indicando a possibilidade de redenção através do pecado em excesso." Ao longo de Guerra Conjugal há uma proliferação da cor rosa, misturada com púrpuras, castanhos-avermelhados, e azuis. De fato, as cores do romance popular estão em avantajada exibição, e nossa compreensão do esquema muda prontamente para um da carne enfraquecidade e da carnalidade. A mudança é marcada pelos créditos do filme: um coração, arrodeado de flores rosas e azuis ao início é substituído por uma guirlanda púrpura rodeada por insetos ao final.

Como Gláuber Rocha, Andrade morreu jovem. Foi capaz de realizar somente mais dois filmes após Guerra Conjugal: o curta "Vereda Tropical" (1977), realizado como parte do filme em episódios Contos Eróticos, um ataque ainda mais excessivo e reflexivo sobre as pornochanchadas, e O Homem do Pau Brasil (1982). Com seu longa final, Andrade realizou sua obra mais experimental, uma episodicamente estruturada biografia ficcional de outro escritor modernista brasileiro, Oswald de Andrade (também nenhum parentesco). O título parte do manifesto de Oswald, de 1924, Pau-Brasil, no qual pau significa tanto "madeira" quanto "pênis". O conceito mais notável do filme de Andrade foi elencar um homem (Flávio Galvão) e uma mulher (Ítala Nandi) como Oswald, e tê-los ambos juntos em cada cena da película, sempre trajando as mesmas roupas. Mesmo que seja fácil reconhecer que um dos Oswalds é, na verdade, interpretado por uma mulher, é somente ao final do filme, nas últimas vinhetas, quando todos os personagens estão nus, que a verdadeira identidade dela é revelada. Aqui parece que vai além a crítica de Andrade sobre a cultura e o cinema brasileiros, ao refletir na última e mais prejudicial tendência da história do cinema brasileiro, emergente nos idos dos anos 80, rumo a sexualidade explícita. Andrade sucumbiu a um câncer de garganta, no Rio de Janeiro, mas todos os seus três filhos contribuíram na continuidade de seu legado, envolendo-se de forma aproximada na restauração dos filmes do pai e tornando eles disponíveis no Brasil e alhures.

Texto: Rist, Peter H. Historical Dictionary of South American Cinema. Plymouth: Rowman & Littlefield, 2014, pp. 23-27. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Filme do Dia: Der Traum des Bildhauers (1907), Johann Schwarzer

Filme do Dia: El Despojo (1960), Antonio Reynoso

Filme do Dia: Quem é a Bruxa? (1949), Friz Freleng