Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#49: Animação (Parte I)

 


ANIMAÇÃO. A despeito de Quirino Cristiani ter dirigido o primeiro longa de animação e o primeiro longa de animação sonoro, a América do Sul não tem sido considerada como uma fonte importante de filmes animados. Até os anos 1960, a história do cinema de animação na América do Sul foi a de uma série de obras artesanais, sem sucesso de estabelecer uma indústria. Nos anos 60 isso mudou, na medida em que um grande número de curtas foi produzido, particularmente na Argentina e no Brasil, e a animação foi utilizada regularmente na televisão para publicidade e séries de desenhos infantis. No entanto, não foi somente nos anos 1990 que uma série de longas de animação conquistou sucesso comercial sustentado, ao menos nos mercados domésticos. O sucesso internacional, por outro lado, tem permanecido enganoso. 

Argentina. A história começa com Cristiani. Inspirado pela obra de Émile Cohl, criou um desenho com recortes de papelão, em 1916; em 1917, foi o principal animador da sátira política El Apóstol, o primeiro longa-metragem de animação no mundo. Seguiu-se Sin Dejar Rastros (1918), outra sátira política em longa-metragem. Cristiani realizou diversos curtas nos anos 1920, antes de realizar outra sátira política no formato longa, Peludópolis (1931). Após o seu fracasso comercial, ele se concentrou na publicidade até 1938, quando desistiu da técnica dos recortes de papelão, em favor do método convencional de acetato, influenciado por Disney, para o apolítico El Mono Relojero (1938). Realizou mais dois curtas, incluindo o voltado para futebol, Entre Pitos y Flautas (1941), antes de abandonar o cinema em 1943. Um dos empregados de Cristiani em seu estúdio de animação nos anos 30, foi Juan Oliva, um pintor nascido em Barcelona e artista de tiras em quadrinhos, que chegou na Argentina em 1928, aos 18 anos. Após trabalhar como animador em El Mono Relojero, Oliva fundou seu próprio estúdio, CADDA (Companhia de Animação Argentina), em 1938. Ele dirigiu três curtas de animação de aventura infantil, Desplumando Avestruces (1938), La Caza del Puma (1940), e Filipito el Pistolero (1942). A despeito de algum sucesso crítico e comercial, Oliva fechou a CADDA, por conta do aumento dos custos e da escassez de película. Trabalhou então em publicidade; ensinou (teve uma grande influência na geração seguinte de desenhistas); e desenhou para a revista infantil Figuritas, onde criou uma série de personagens populares. 

Dante Quinterno, um dos mais amados cartunistas argentinos, iniciou a tradição ainda em curso em seu país de cartunistas buscarem inspiração na duradoura cultura popular das revistas em quadrinhos na Argentina. Em 1942, influenciado pela obra dos Irmãos Fleischer, dirigiu o curta de 12 minutos Upa en Apuros, estrelando seus famosos personagens Patoruzú, e seu irmão Upa. Talvez por conta dos mesmos problemas que levaram Oliva a abandonar o ramo, foi o único filme de animação de Quinterno, e ele retornou a lançar sua popular série em quadrinhos. Outro popular cartunista, José Burone Brucho, adaptou um trecho do poema épico gaúcho Martin Fierro, de José Hernández, para seu curta Los Consejos del Viejo Vizcacha (1945). Que foi seguido por Fausto Moderno (1946), uma atualização mestiça da lenda de Fausto, em cores, realizando então as séries de curtas de um minuto El Refran Animado e Refranes Populares para uma nova companhia, Cinepa, iniciando em 1947. A Cinepa foi criada como uma tentativa de resolver o problema da distribuição, realizando filmes para serem vendidos diretamente aos proprietários de projetores domésticos de 16 mm, e obteve algum sucesso em criar um novo mercado para os animadores argentinos. Em 1948, um estudante de arte que admirava Walt Disney chamado Dante Pettenon, realizou o curta Las Cuatro Estaciones, seguido por La Isla en las Nubes (1949). A despeito da atenção que estes filmes receberam, parecem terem sido seus únicos trabalhos no campo. O próximo curta de animação notável foi criado por Jorge N. Caro, antigo empregado do estúdio de Brucho. E é significativo que numa indústria de cinema que apresentava um sistema de estúdios, tenha que iniciar sua própria companhia para lançar Puños de Campeon (1950), apresentando seu popular personagem Plácido.

Os anos 50 vivenciaram o crescimento da produção de curtas animados de novos diretores, tais como Carlos Barrios Baron (La Gesta Imortal, 1950) e Rodolfo Julio Bardi (Composición, 1954), enquanto a segunda metade da década observou o crescimento de uma diversificação de estilos: Continuidad Plástica (1958), de José Acuri, utilizava formas abstratas para expressar a interrelação de som e imagem, e Trio (1958), de Carlos Gonzalez Grappa, foi elogiado por sua animação com bonecos. No final dos anos 50 também houve um boom no uso da animação para o relativamente novo e crescente meio televisivo. O perfil crescente levou ao estabelecimento de um Festival de Animação em Buenos Aires em 1961. Este ano também observou o lançamento de dois curtas aclamados pela crítica, Una Historia Negra, de Ricardo Alventosa e La Pared, pelo popular cartunista Catú. Muito dos curtas animados do período foram realizados para a televisão, incluindo os experimentais. Um exemplo proeminente foi Hector Franzi, que produziu duas meditações de inspiração nativa para uma série documental sobre a população indígena do país: Kechuografias (1964), uma série de formas abstratas de sete minutos, e La Historial del Mate, sobre a popular bebida nativa. Outros buscaram suas experimentações fora da televisão. Luis Bras, um artista comercial, passou a realizar curtas, após descobrir a obra do baseado no Canadá, Norman McLaren, em um clube de cinema local. O primeiro filme de Bras influenciado por McLaren foi Toc, Toc, Toc... (1965), no qual arranhou e pintou imagens diretamente no filme, em sincronia com o som de um lápis batendo em uma mesa. Bongo Rock (1969) foi arranhado manualmente em 9 mil fotogramas, com uma agulha de disco, enquanto os filmes posteriores, La Danza de los Cubos (1976), El Ladrón de Colores (1982), e Bolero (1992), experimentavam com super-8, stop motion, mídias mistas, arranho e diversos tipos de tinta.

A figura mais importante a emergir desse período foi Manuel Garcia Ferré. Nascido em 1929, na Espanha, emigrou para a Argentina em 1947 e trabalhou para uma agência de publicidade, enquanto realizava uma graduação em arquitetura. Em 1952 seu personagem Pi Pio apareceu na revista de grande circulação Billiken, e imediatamente se tornou popular. Outros personagens surgidos nas animações de Pi Pio que se tornaram famosos incluem Oaky, Isidoro e Hijitus. Além de suas animações, Ferré também trabalhou como artista comercial, fundando sua própria agência (Producciones Garcia Ferré) em 1959 e dirigindo diversos anúncios populares premiados. Garcia também lançou a revista infantil Anteojito em 1964, rapidamente ganhando grande circulação. Em 1967 criou a primeira série animada de TV, Las Aventuras de Hijitus, desenhos de um minuto exibidos diariamente até 1974, e foram exibidos por toda a América Latina. Passou então a realizar longas metragens com Mil Intentos e un Invention (1972), estrelado por seu personagem popular Anteojito, uma versão cinematográfica de Las Aventuras de Hijitus (1973) e Petete e Trapito (1975). Trabalhou então numa série de televisão (uma nova série popular, Calculin, iniciada em 1977) e somente retornou ao longa-metragem em 1983, com Ico, el Caballito Valiente (*). Depois disso, focou em Anteojito (até seu último número em 2002), inicando uma nova revista popular, Muy Interesante, que foi editada de 1985 a 2007. A despeito da da recepção crítica e comercial eventualmente positiva de Ico, as dificuldades iniciais de distribuição vivenciadas por Garcia Ferré manteviveram-no longe do longa-metragem até 1999. 

Além de Garcia Ferré, houve poucas tentativas de longas de animação antes de meados dos anos 90. Los Cuatro Secretos (1976) foi um longa que mesclava animação e ação ao vivo do escritor e pintor Simón Feldman. Carlos D. Marquez levou três anos produzindo Mafalda (1982), uma adaptação da longeva tira em quadrinhos de Quino (Joaquin Salvador Lavado), apresentando as garotas de uma aventura de seis anos em relação à paz mundial e dos compromissos da humanidade. Uns poucos anos após, Luis Palomares acrescentou a ficção científica à mistura em El Escudo del Condor (1987), uma narrativa de um rapaz de circo e um domador de leões que utilizam de uma espada mágica para lutar com robôs alienígenas. Todos receberam alguma atenção crítica, mas nenhum bem sucedido o suficiente para iniciar uma tendência. Essa situação, na qual se assumiu que havia um mercado limitado para longas de animação no mercado argentino, mudou em 1994. A popularidade massiva de The Lion King [O Rei Leão], o filme mais popular do ano não somente na Argentina, mas também no Brasil e no Chile, levou a situação na qual as mais populares importações de Hollywood tem sido em sua maioria longas de animação, particularmente na Argentina. Dentre os sucessos que se seguiram houve Pocahontas (o segundo filme mais popular do ano na Argentina, em 1995), The Hunchback of Notre Dame [O Corcunda de Notre Dame] (número 1 de 1996), Mulan (número 8, em 1998), Tarzan (número 2, em 1999) e Dinosaur (número 1, em 2000). Na década seguinte, os cinco mais populares filmes importados dos Estados Unidos foram todos longas de animação (Ice Age: Dawn of the Dinosaurs - A Era do Gelo 3; The Simpsons Movie - Os Simpsons: O Filme, Shrek 2, Ice Age: The Meltdown - A Era do Gelo 2, Shrek the Third - Shrek Terceiro). Dada sua excepcional popularidade, e não é surprendente que os produtores argentinos começaram a demonstrar interesse em animação.

Uma nova companhia, Patagonik Film Group, entrou no campo da animação. A popular série de TV mi Familia es un Dibujo (1996-98) e Dibu (1997) levou ao filme Dibu, la Película (1997), dirigido por Carlos Olivieri e Alejandro Stoessel, e suas sequencias Dibu 2,la Venganza de Nasty (1998, dir. Carlos Galettini) e Dibu 3 (2002, dir. Raul Rodriguez Peila). Estas histórias de uma família de ação ao vivo com dois membros animados foram populares o suficiente com as crianças pequenas, mas o sucesso real veio com o revival do mais famoso personagem de Dante Quinterno, em Patoruzito (2004, José Luís Massa). Tornou-se o primeiro blockbuster de sucesso, rendendo 3.8 milhões e tornando-se o filme argentino de maior sucesso  do ano (e o quarto maior do conjunto). A sequencia, Patoruzito: la Gran Aventura (2006, dir. Massa), foi menos bem sucedida, mas bem o suficiente para render 1.4 milhão, tornando-se o segundo filme argentino mais popular do ano (e o décimo terceiro no total). Outro filme inspirado pela obra de Quinterno, Isidoro, la Película (2007, dir. Massa), rapidamente se seguiu. O segundo maior sucesso da Patagonik foi com o (relativamente) original El Ratón Pérez [O Ratinho Pérez] (2006, Juan Pablo Buscanini), que mistura ação ao vivo com animações em 3D geradas em computador, apresenta crianças pequenas resgatando a fada do dente sequestrada (que, como é costumeiro na maior parte das culturas hispânicas, é um rato). Este filme tocou o público, arrecadando 1.4 milhão na Argentina, realizando o segundo filme argentino mais popular (número 8 ao todo). Uma sequencia, El Ratón Pérez 2 [O Ratinho Pérez 2] (2008, Andrés G. Schaer), seguiu-o em 2008. Dada a história artesenal da animação argentina antes da Pantagonik, e é interessante que o que parece tentar criar uma identidade de estúdio mais que uma baseada em artistas individuais como Garcia Ferré, ainda que o interesse contínuo de Massa em animações clássicas argentinas possam ser vistas como um aceno nessa direção. Outro realizador Patagonik com o potencial de criar uma identidade individual é Juan Pablo Buscarini, que seguiu O Ratinho Pérez com El Arca (2007), uma ambiciosa revisão da história da Arca de Noé do ponto de vista dos animais. A despeito dos altos valores de produção e distribuição internacional, amealhou relativamente desapontadores 932 mil dólares na Argentina (número 28 do ano) e deixou a indústria de cinema doméstica ainda esperando por uma animação em longa metragem que chame a atenção fora da Argentina. 

Mas ainda antes do sucesso da Patagonik com Patoruzito, a primeira animação blockbuster argentino foi produzida em 1999. Não surpreendentemente, foi realizado por Garcia Ferré, que retornou a animação de longa metragem com Manuelita (1999), uma crônica das aventuras de uma tartaruga garotinha, com um iene para viajar o mundo, inspirado pela bastante famosa (na Argentina) canção infantil de Maria Elena Walsh. O filme alcançou o topo das bilheterias na Argentina, vendendo 2.2 milhões de ingressos. A extensão de sua popularidade pode ser ilustrada ao se notar que segundo maior sucesso do ano, Tarzan, da Disney, vendeu somente 1.4 milhão. O sucesso de Manuelita proporcionou a ser o primeiro desenho argentino a ser pré-indicado para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, mesmo não sendo selecionado. A seguir, Garcia realizou Corazón, las Alegrias de Pantriste (2000), que atraiu 1.1 milhão de espectadores argentinos, bom o suficiente para torná-lo a quinta bilheteria do ano. Aos 71 anos Garcia Ferré novamente afastou-se da animação em longa metragem e passou a encerrar suas outras atividades, incluindo seu longo envolvimento com as revistas Anteojito e Muy Interessante. Entretanto voltou, em 2012, com um novo longa de animação, Soledad y Larguirucho. Também deve ser observado filmes de curta metragem de animação em uma ampla variedade de estilos continuam a ser feitos, e existem outros realizadores produzindo longas metragens, um exemplo recente notável sendo Ánima Buenos Aires (2011), que mistura animação em 2D com ação ao vivo, estênceis, colagem e fotomontagem em seu tributo à cidade-título.


___________David Hanley

Texto: Rist, Peter H. Historical Dictionary of South American Cinema. Plymouth: Rowman & Littlefield, 2014, pp. 27-36.

N. do E: (*) grafado erroneamente no texto original

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