O Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#20: Jorge Sanjinés
Jorge Sanjinés. (Bolívia, 1936). O mais significativo diretor do mundo dos filmes de temática aborígene e uma das lideranças proponentes do revolucionário "terceiro cinema", Jorge Sanjinés é também, de longe, o mais conhecido realizador boliviano, um líder do nuevo cine latinoamericano nos anos 1960 que continua uma abordagem desafiadoramente esquerdista e coletiva do cinema.
Nascido Jorge Sanjinés Aramayo na capital da Bolívia, La Paz, estudou fotografia e no final dos anos 1950 se mudou ao Chile, onde estudaria filosofia e posteriormente se inscreveria no novo curso de cinema da Universidade Católica, sob a direção de Sergio Bravo. Em seu retorno à Bolívia, formou parceria com o roteirista Óscar Soria, criando os dois uma revista, um cineclube, e mesmo uma escola de cinema, e passando a trabalhar juntos em documentários e curtas publicitários sobre a bandeira da Kollasuyo Films. Algumas de suas obras foram para a loteria estadual e o primeiro filme importante e independente de Sanjinés foi Revolución (1963), um curta de dez minutos experimental, com o estilo de montagem soviético de imagens de arquivo dos filmes de loteria, acompanhado por percussão e guitarra. Inicialmente evoca a exploração principal da Revolução de 1952, mas é seguido por imagens similares de desespero e pobreza, sugerindo que a revolução pode ter fracassado em conquistar o equilíbrio econômico e a igualdade de classes. Em 1964 houve um golpe militar, e o Instituto Cinematografico Boliviano (ICB) foi fechado, mas depois reaberto, com Sanjinés apontado como seu diretor. Ele havia trabalhado ocasionalmente no departamento de fotografia do United States Agency for International Devolepment (USAID) na Bolívia, e continuou a realizar uma série de filmes "oficiais" para o ICB, mas foi também capaz de realizar o curta de 20 minutos Aysa!, narrativa semificcional da morte de uma família de mineiros, contada em flashback do ponto de vista de um mineiro indígena que se encontra a ponto de dinamitar a si próprio dentro da mina.
Com seu filme seguinte, o longa ficcional Ukamau (1966), Sanjinés tentava combinar estética modernista com atributos culturais indígenas andinos, incluindo o uso da linguagem aymara. Ambientado magnificamente em Isla del Sol, casa legendária dos incas no Lago Titiaca, Ukamau segue as vidas de um casal indígena aymara, Andrés Mayta e sua esposa Sabina. Ela foi estuprada e assassinada pelo comerciantes de mestiços Rosendo Ramos quando Andrés navega de volta através do Lago para a cidade mercantil de Copacabana. Quando Andrés obtém sua vingança em assassinar Ramos, pode-se compreender o simbolismo revolucionário. Ukamau é talvez o mais belo filme de Sanjinés, com sua expressionista cinematografia noturna e a escolha das paisagens insulares. Tendo o planalto altiplano como região onde o povo indígena vive - reminiscente do áspero Man of Aran [O Homem de Aran, Irlanda, 1934), de Robert Flaherty - enquanto os brancos de língua hispânica e mestiços vivem na cidade abaixo, no vale, foi tanto acurado na realidade quanto apropriado para um conto no qual o explorado povo pobre se rebela e ganha vantagens. De fato, a sequencia final, no qual a flauta tocada por Andrés sinaliza a Ramos que ele está sendo perseguido, é dominada por imagens de rochas enormes e irregulares, e termina ameçadoramente no deserto, não muito dessemelhante de Greed [Ouro e Maldição, EUA, 1924] de Erich von Stroheim. Ukamau foi o filme bolivano mais popular, realizado até hoje, visto por 300 mil pessoas e permanecendo nove semanas na capital.
O ano de 1967 foi sinistro para a Bolívia, com o assassinato de Che Guevara e o massacre de mineiros, e o governo claramente tendo problemas com Ukamau não apresentar o país de maneira suficientemente positiva. Sanjinés e seus colaboradores (que agora se autodenominavam como Grupo Ukamau) foram demitidos de seus cargos no ICB. Desanimados, Sanjinés, Soria, o produtor Ricardo Rada e o cinegrafista Antonio Eguino se mobilizaram para realizar um dos maiores filmes políticos latino-americanos, Yawar Mallku (Sangue de Condor, 1969), focando na esterilização forçada de mulheres no campo, com apoio de agências estadunienses.
Com El Coraje del Pueblo (1971), Sanjinés e o Grupo Ukamau foram capazes de se aproximar de um ideal revolucionário, marxista, de filmagem coletiva. Os realizadores foram ao local da greve dos mineiros de estanho de Siglo XX para reconstituir o que aconteceu na véspera do dia de San Juan, em 1967, quando tantos grevistas foram mortos. Apesar de Soria ter sido creditado como roteirista, muito desse filme foi improvisado, com muitos dos sobreviventes da vila e mineiros trabalhando como atores sociais, criando seus próprios discursos das memórias dos eventos. Os recursos de co-produção foram assegurados pela televisão italiana RAI, permitindo que o filme fosse realizado em cores, mas ainda filmado com equipamento 16 mm. Com um curto período de benovolente ditadura inclinada à esquerda (General Juan José Torres, de outubro de 1970 a agosto de 1971), as condições foram ideais para um robusto filme político ser realizado. El Coraje del Pueblo inicia com o exército atirando diretamente para a câmera, interrompido por uma série de planos longos do povo enquanto grupo homogêneo pela câmera na mão. Títulos, fotografias e estatísticas revelam conflitos anteriores em 1942, 1949, 1950 e 1965, e a câmera se aproxima das fotos dos mortos. Entrevistas são conduzidas como se o filme fosse realizado em 1967. Não há exatamente uma narrativa. As testemunhas que surgem no filme são seus protagonistas, recriando a memória coletiva da perseguição a e resistência da comunidade.
Enquanto El Coraje del Pueblo era montado na Itália, um outro golpe foi encenado, pelo conservador Hugo Bánzer; consequentemente o filme nunca foi apresentado oficialmente na Bolívia até 1979, apesar de ter sido exibido no Festival Internacional de Cinema de Berlim, em 1972, onde levou o Prêmio OCIC (Organização Católica para o Cinema e o Audiovisual), sendo lançado em vários países europeus, assim como nos Estados Unidos. O Ukamau foi efetivamente dividido em dois com o golpe, com Eguino e Soria permanecendo na Bolívia, enquanto Rada e Sanjinés mudaram-se temporariamente para o Peru, onde realizaram El Enemigo Principal [O Inimigo Principal, 1973]. O inimigo do título é o imperialismo estaduniense, e o filme inicia com uma narração da história de Machu Picchu e a destruição da nação inca, chegando a presente exploração dos índios peruanos por um proprietário de terras assassino, que é apresentado apoiando os interesses dos Estados Unidos. O uso do plano longo para apresentar o povo unido, iniciado em El Coraje del Pueblo, é desenvolvido ainda mais aqui e se torna um símbolo da renúncia do controle do diretor, permitindo que os atores naturais se expressem a si próprios para e com a câmera. Sanjinés mudou-se para o Equador para realizar seu próximo filme anti-imperialista Fuera de Aqui!, focado nas raízes e no processo de exílio. Custeado por universidades na Venezuela e no Equador, Sanjinés e seu Grupo Ukamau ainda tiveram que filmar em 16 mm.
Em 1979 Sanjinés escreveu um pequeno livro intitulado Teória e Prática de un Cine Junto al Pueblo, publicado na Cidade do México, algo do qual foi traduzido para o inglês em 1989 como Theory and Practice of a Cinema with the People. Também foi capaz de dirigir outro filme Basta ya! na Colômbia e Venezuela, antes de retornar à Bolívia, quando de um breve interlúdio democrático. Durante a ditadura do General Luis García Meza (1980-82), o Grupo Ukamau de Sanjinés realizou um documentário sobre os esforços agrupados de pessoas da classe trabalhadora urbana e rural, Banderas del Amanecer (1983). Com La Nación Clandestina (1989), Sanjinés retornou aos elementos estruturais de seus primeiros filmes: contando a história de um personagem central indígena, Sebastián (Reynaldo Yujra), em flashbacks, enquanto ele viaja da La Paz de volta a sua morada ancestral no altiplano. A viagem se dá logo após o golpe de García Meza, e todos os incidentes em flashback se dão durante maus períodos da história boliviana, iniciado com o exílio forçado de Sebastián de sua vila desesperadamente pobre, antes da revolução de 1952. La Nación Clandestina venceu a Concha Dourada, prêmio máximo do Festival Internacional de San Sebastián.
Desde essa época, Sanjinés dirigiu mais três longas de ficção, o mais recente deles o não visto Insurgentes (2012), revisita uma série de lutas dos camponeses indígenas contra as autoridades coloniais e neocoloniais, iniciando com a rebelião contra o governo hispânico em 1781, por Tupac Katari. Tendo devotado sua filmografia inteira a lutar contra o imperialismo e a injustiça, particularmente a demonstrada contra os povos indígenas de língua aymara e quíchua, enquanto insiste invariavelmente na estética e temática revolucionárias, Jorge Sanjinés nunca abandonou seus princípios. ver também CINEMA ETNOGRÁFICO.
Texto: Rist, Peter H. The Historical Dictionary of South American Cinema. Plymouth: Rowman & Littlefield, 2014, pp. 508-11.
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