Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#81: La Hora de los Hornos



La Hora de Los Hornos (Argentina, 1968). Um candidato a ser o "maior filme sul-americano" de todos os tempos, o tríptico de 260 minutos La Hora de los Hornos: Notas y Testimonios Sobre el Neocolonialismo, la Violencia y la Liberación, dirigido por Fernando E. Solanas e Octavio Gettino para o Grupo Cine Liberación, é certamente um dos mais significativos documentários políticos realizados em qualquer lugar do mundo. E é importante tanto pelo modo como foi distribuído - coletiva e clandestinamente - como quanto tinha pretensões de ser um texto aberto - que plateias de trabalhadores e estudantes poderiam discutir e recomendar mudanças para - como por seu status enquanto obra experimental e retórica, revisando a história da América Latina e fortemente argumentando contra o imperialismo, o neocolonialismo, e o governo militar da Argentina. Como Robert Stam argumenta em seu artigo definitivo sobre o filme (1990), ele é vanguardista tanto formal quanto politicamente.

La Hora de los Hornos foi realizado com uma equipe pequena de quatro ou cinco pessoas e todos faziam tudo: som, câmera e montagem. Inicialmente o grupo trabalhou com uma Bolex 16 mm spring wound (*) e um gravador, sendo então praticamente impossível gravar som síncrono (especialmente para a primeira parte). Eles cobriram 1800 kms e conduziram 180 horas de entrevistas. O Grupo Cine Liberación foi auxiliado por outros grupos militantes, incluindo sindicatos, e montavam clandestinamente de madrugada, das 2 às 6 da manhã, fragmentando o filmado em pequenos segmentos a serem processados, para que nenhuma autoridade pudesse tomar pé sobre o que era o filme. Além do que, uma análise de oito horas do movimento estudantil foi perdida. La Hora de los Hornos se iniciou em 1966 e foi finalizado no final de 1967. Em 1968 foi lançado e imediatamente banido. O governo argentino lhe direcionou uma lei de censura especial contra  e alertou as embaixadas estrangeiras a que as pessoas parassem de assisti-lo. Depois disso, era perigoso para as pessoas até mesmo ver o filme nas projeções clandestinas que foram organizadas pelos sindicatos peronistas, onde as projeções eram interrompidas para que as plateias pudessem conduzir debates improvisados entre elas. Foi exibido no festival de Pesaro (Itália), onde ganhou o prêmio dos críticos, e depois em Mannheim, na Alemanha, onde ganhou quatro prêmios, incluindo o do público. Foi distribuído então em uma série de países, incluindo o vizinho Uruguai, onde muitos argentinos eram capazes de viajar e assisti-lo legalmente. Por fim, após o retorno triunfante de Juan Domingo Perón, em 1973, foi lançado comercialmente em Buenos Aires.

La Hora de los Hornos é dividido em três partes de duração desigual: "Neocolonialismo e Violencia" (95 minutos); "Acto para la Liberación" (120 minutos); e "Violencia e Liberación" (45 minutos). As partes 2 e 3 são essencialmente peronistas em sua orientação e, portanto, foram menos bem recebidas que a 1. Foram também menos vistas, até recentemente, quando o filme completo se tornou disponível em DVD, enquanto a primeira, de longe a mais experimental, tem sido distribuída em circuito alternativo às salas de cinema na América do Norte e Europa - para plateias universitárias em particular - desde meados dos anos 70. A parte 2 efetua uma crônica das primeiras duas presidências de Perón (1946-1952, 1952-1955, destituído por um golpe de estado) e a morte de sua incrivelmente popular segunda esposa, Eva, fazendo bastante uso de imagens de arquivo (incluindo cinejornais), seguido por uma análise do movimento peronista subterrâneo do final dos anos 50 e anos 60, empregando uma série de entrevistas. A parte 3 contém uma série de entrevistas com, sobretudo, militantes peronistas revelando os prospectos de uma revolução comunista no continente. 

A "Parte 1" consiste de um "Prólogo" e 13 segmentos, todos estilisticamente bastante distintos. O "Prólogo" introduz o artíficio recorrente de títulos dinamizados, acompanhados por uma música afro-cubana sincopada, que parece se mover em direção à câmera, reminescente da obra dos anos 20 do teórico/realizador Sergei Eisenstein. O primeiro segmento, "História", utiliza de fotografias de pinturas coloniais, imagens em movimento de um jogo de golfe e estatísticas para observar a dominação do continente por interesses estrangeiros, finalizando com a informação de ter havido 41 intervenções armadas pelo exército estadunidense. O segundo segmento, "O País", proporciona uma viagem irônica, com uma câmera deslizando por estradas rurais desertas em vastas e continentais extensões de terra, entrecruzadas com aproximações em zoom sobre os rostos do povo indígena, que invariavelmente fitam diretamente à câmera, e termina com uma discussão da população sendo concentrada nas cidades, o que se segue no terceiro segmento, "A Violência Cotidiana". Aqui o som de um relógio de ponto de trabalho acentua ritmadamente a agressividade da remuneração escrava. Finda com um trecho de Tire Dié, de Fernando Birri (1958-60), de crianças correndo em uma ponte, ladeando um trem, e pedindo esmolas. "A Cidade Portuária" apresenta planos de câmera baixa de altos edifícios, marcados por música gloriosa, enquanto "A Oligarquia" alegoriza a classe alta com imagens de um mercado de gado. Continua o tom irônico que se espraia por toda a parte 1, o segmento findando com música operística sublinhando planos das tumbas monumentais em um cemitério, onde as estátuas parecem conversar. 

Após "O Sistema", "Violência Política" e "Neorracismo", o nono segmento, "Dependência", entrecruza de forma sensacional planos do gado abatido com comerciais de televisão acompanhados de música pop, encorajando ao público do filme a associação da feiúra da matança de animais com a beleza dos cosméticos, todos incluídos no capitalismo. Ainda que este seja o exemplo mais extremo da estrutura de montagem/edição em conflito, encorajando o pensamento dialético, ele é típico em desafiar o público a pensar através de conexões entre som e imagem, e ponderar a análise revisionista da história, política e cultura da Argentina (e da América do Sul). O segmento 10, "Violência Cultural", contrasta o analfabetismo com um banquete de premiação literária ocorrido no "Salão Pepsi Cola"; o segmento 11, "Modelos", é como uma série de postais contra a cultura européia, conectados através de dissoluções, enquanto no segmento 12, "Guerra Ideológica", anúncios condenam a si próprios, e uma cascata de sons e imagens relembram os segmentos prévios. A Parte 1 finaliza com "A Escolha", com o enterro de um homem comum e um prolongado plano da máscara mortuária de Che Guevara, como a de Cristo levando à citação, "[e]scolheu morrer através da revolução, portanto escolheu a vida."

Talvez o aspecto mais datado da incrivelmente complexa Parte 1 de La Hora de los Hornos seja a crença quase religiosa dos realizadores na revolução violenta. No texto-chave de Solanas e Gettino, "Rumo ao Terceiro Cinema", escrito em 1969, eles promovem um "cinema de guerrilha" e punem por "obras violentas, realizadas com uma câmera em uma mão e uma pedra na outra." (1971, 128). Em qualquer revolução, o auto-sacrifício é necessário para que se conquiste objetivos, mas os cinco minutos da imagem congelada da face de Che morto com os olhos abertos foi posterior, após o retorno de Perón, em 1973, considerada por Solanas e Gettino excessivamente suicida e pessimista e foi substituída por uma breve "atualização" dos eventos políticos. A outra crítica maior à retórica do filme é de seu viés peronista, mas na época que o filme foi realizado não é claro se os realizadores eram verdadeiros marxistas que utilizavam do peronismo como uma base ou peronistas que usavam a retórica marxista. Solanas somente gradualmente abraçou o peronismo, vindo de uma família burguesa fanaticamente anti-peronista. De fato, olhando para trás pode-se compreender que Perón foi muito mais um "nacionalista" do Terceiro Mundo que um "ditador fascista" que iria promover uma terceira via, um caminho intermediário entre socialismo e capitalismo. Igualmente, a resistência aos militares foi construída através de sindicatos peronistas.

A verdadeira força de La Hora de los Hornos, particularmente de sua primeira parte, encontra-se na sua experimentação formal e desconstrução de imagens e ideias coloniais e neocoloniais. Mesmo tendo sido criticado por não dar voz aos pobres e indígenas, o filme consistentemente antecipa os temas do indígena e do mestiço e pode-se compreender que ao se ter estas figuras confrontando diretamente à câmera, os realizadores encontraram uma forma de tentar driblar não serem capazes de registrar entrevistas sincronizadas, embora ainda energicamente refletindo a busca por mudanças na falta de equilíbrio racial e econômico da América do Sul. Em última instância, Solanas e Gettino foram certamente bem sucedidos em utilizarem seu filme como instrumento para pesquisa e análise social, desafiando suas plateias trabalhadoras a construírem sua consciência das questões políticas e sociais ao utilizarem estratégias formais anti-convencionais  e difíceis (e não pegando na colher para alimentá-los). La Hora de los Hornos é um raro exemplo de filme que tem trabalhado como catalisador de mudanças.

Texto: Rist, Peter H. Historical Dictionary of South American Film. Plymouth: Rowman & Littlefield,  pp. 320-23.


N. do T: característica descritiva ténica do motor da bolex, presente na definição da mesma (cf. http://www.historyoffilm.net/picture/film-history-spring-wound-bolex-16mm-camera/) e intraduzível

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