Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#107: Lucrecia Martel

 


Lucrecia Martel. (Argentina, 1966). Lucrecia Martel é uma das mais brilhantes e originais das novas realizadoras a emergir durante a primeira década do novo milênio. Nascida em Salta, noroeste da Argentina, e seus três longas, conhecidos como a "Trilogia de Salta", foram realizados e ambientados em sua província natal. Somente por esta característica, seus filmes já se diferenciam tanto do tradicional quanto do "novo" cinema argentino, que são ambientados primordialmente na cidade portuária de Buenos Aires ou nos Pampas e na Patagônia ao sul desta e dirigidas por porteños. De sólida vivência na classe média, Martel frequentou escola católica em Salta, onde ela (felizmente) estudou latim e grego. Planejara estudar ciências, mas após muitas viagens, estabeleceu-se em um programa de comunicação social em Buenos Aires, apesar de não se graduar. Fora da universidade fez um curso de animação para o cinema e começou realizando curtas de animação: El 56 (1988) e Piso 24 (1989). 

Durante a crise econômica, Martel foi admitida na única escola de cinema financiada pelo estado na Argentina à época, somente para não encontrar professores ou estrutura material. Ela fala que basicamente ensinou a si própria assistindo uns poucos filmes várias vezes e trabalhando nos filmes dos outros. Dirigiu outro curta, Besos Rojos (1991) e venceu uma competição de roteiros; o prêmio em dinheiro lhe proporcionou dirigir um terceiro curta, Rey Muerto (1995). Seguindo uma rápida montagem de abertura, apresentando a brutalidade de um gangster, o "rei" de seu mundo subproletário, Rey Muerto se desenvolve de forma intensa como um estilizado western que, em vez de opor cowboys a índios, mostra um homem desprezível caçando sua esposa indígena, que foge desafiadoramente da cidade, com seus filhos desesperados. Rey Muerto venceu o prêmio principal de melhor curta metragem no Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano, em Havana e também foi incluido no filme coletivo Historias Breves (1995), frequentemente reinvindicado como o marco inaugural do Novo Cinema Argentino. 

Para o projeto de seu primeiro longa, Martel recebeu um prêmio em dinheiro do Sundance Film Institute (o Prêmio Internacional dos Realizadores da tv nipônica NHK). Também recebeu financiamento de produtores espanhóis e do Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales (INCAA), assim como de outras fontes. Sabidamente, La Ciénaga (O Pântano) venceu o Prêmio Alfred Bauer de Melhor Primeiro Longa Metragem no Festival Internacional de Cinema de Berlim, sendo o primeiro filme argentino em treze anos a ser selecionado para a competição. E é provavelmente a mais significativa estreia em longa-metragem do Novo Cinema Argentino, apresentando já muitas das marcas registradas da diretora: uma crítica contudente da classe média de Salta, particularmente no que diz respeito ao tratamento dos empregados; uma estranha e desconcertante intimidade televisiva com personagens cujos relacionamentos estão continuamente à beira do incestuoso; e uma composição visual abarrotada que, de forma frustrante, também omite informações importantes. Em acréscimo, O Pântano é notável por apresentar uma vida familiar caótica, com pais embriagados, filhos perpetuamente em risco ou sendo feridos (ou mortos) em brigas, acidentes, e mesmo com rifles de caça, e no qual uma câmera ocasionalmente sacudida e um ambiente natural distópico de chuva e lama somam-se à desordem formal. 

Para seu segundo longa-metragem La Niña Santa (A Menina Santa, 2004), Martel foi novamente capaz de assegurar os serviços da produtora veterana Lita Stantic, mas somou-se o influente realizador espanhol Pedro Almodóvar, que embarcou como produtor-executivo, e apoio financeiro foi recebido do Hubert Bals Fund, na Holanda. Mais significativamente, A Menina Santa foi aceito na competição no Festival de Cannes. Neste filme, a intimidade da câmera com os personagens principais é ainda mais intensa. Helena (Mercedes Morán), a hoteleira saltenha, está hospedando uma convenção de médicos, incluindo seu irmão Freddy (Alejandro Urdapilleta) e Dr. Jano (Carlos Belloso), que está sendo assediado pela filha de Helena, Amalia (Maria Alche), depois que ele a toca em meio a uma multidão. Amalia e sua melhor amiga, Josefina (Julieta Zylbelberg), são praticamente inseparáveis, especialmente quando participam das aulas católicas de Bíblia em busca de uma "vocação". A obsessão de Amalia por Jano se torna sua "vocação", enquanto Helena e ele se tornam mutuamente atraídos. Ficamos confinados dentre de ambientes em quease todas as cenas do filme, e embora haja cenas na casa de José e em um espaço interno não especificado para as aulas das estudantes, tem-se a impressão de todos os espaços internos serem contíguos. Mesmo quando estamos no exterior da rua e na piscina do hotel, nunca vemos o céu. Na cena na qual três garotas procuram o local de um acidente de carro fatal, somentes observamos a estrada de vislumbre; fora isso, as árvores cercam as garotas que gritam e riem. 

A partir do "making of", percebemos a existência de palmeiras de um dos lados da piscina, mas evidências deste mundo natural são deliberadamente elididas. A falta de leitos no hotel por conta da convenção talvez seja a justificativa para que irmão e irmã, mãe e filha, Amalia e José deitem juntos e apertados nas camas. Prevalecem enquadramentos fechados, particularmente em dois planos de Amalia e José e seus sussurros (alguns dos quais inaudíveis) realçando o senso de intimidade e nos fazendochamar a atenção da banda sonora. Após um momento, escutando os problemas de Amalia, começamos a perceber ouvidos humanos, e a banda sonora de A Menina Santa, completa com estranha música criada por thereins (*), claramente tão importante quanto a banda visual. Apesar do filme não ter vencido tanto prêmios quanto O Pântano, foi lançado em diversos países, incluindo Argentina, França, Espanha, Portugal, Itália, Grécia, Israel e, em 2005, Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Brasil e Uruguai. Chegou mesmo a figurar na lista dos dez melhores filmes de Village Voice dentre os melhores filmes de 2005 (e em décimo-segundo em uma lista similar de Film Comment).

O terceiro filme da Trilogia de Salta, La Mujer sin Cabeza (mal traduzido para o inglês -e o português - como A Mulher sem Cabeça), é verdadeiramente um grande filme e fez ainda mais sucesso que o segundo. Como seu antecessor foi incluído na competição do Festival de Cannes, posteriormente vencendo o prêmio da crítica no Festival de Cinema Latino de Lima e o FIPRESCI no Festival do Rio de Janeiro. Mais significativamente, entretanto, foi ter sido aclamado pela Academia de Cinema argentina, o Prêmio Sur, para 2008 e também esteve no topo do IndieWire de melhor filme não lançado de 2008 pelos críticos de cinema independentes norte-americanos, recebendo votos de 24 críticos. A ambiguidade sobre os personagens, e o que estão pensando se torna o tema central do de A Mulher sem Cabeça, onde uma mulher de classe média alta, Veronica (Maria Onetto) "perde a cabeça" quando imagina que dirigindo possa ter atropelado e matado uma criança com seu carro, no momento que estendeu a mão para seu celular.

O primeiro filme de Martel em tela ampla, ironicamente nega ao espectador qualquer informação maior sobre a personagem principal, que frequentemente é vista em primeiro plano com a cabeça abaixada, enquanto  o fundo se encontra desfocado. Não há planos ponto-de-vista no filme. Por exemplo, quando Veronica lê uma notícia do jornal sobre o corpo de um rapaz sendo recuperado de um canal próximo do local do "acidente", nenhuma imagem é proporcionada ao público. Ela está pronta a admitir seu possível crime, mas atrás dela e não enquadrado, um homem em sua vida - marido, irmão, amante - proporciona um acobertamento. O outro tema maior do filme são as relações de classe. Veronica, que como seu irmão, é dentista por profissão, é sempre rodeada de pessoas, a maioria dos quais são criados e a ajudam a seguir no seu dia sem que ela precise pensar em nada. Aqui jaz outra interpretação possível do título, "cabeça de vento". Ela é claramente uma pessoa ignorante ou estúpida, mas ao longo da duração do filme, assemelha-se a uma criancinha, completamente dependente de "ajuda".

ver também NUEVO CINE.

Texto: Rist, Peter H. Historical Dictionary of South American Cinema. Plymouth: Rowman & Littlefield, 2014, pp. 394-96. 


N. do T: instrumento eletrônico no qual o tom é criado por dois osciladores de alta frequencia e o pitch é controlado pelo movimento da mão do intérprete em direção ao circuito e afastando-se dele.

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