Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#45: Limite

 


LIMITE (Brasil, 1930). Durante um longo período, Limite ganhou  reputação lendária, como o grande filme brasileiro não visto. Pensava-se que Mário Peixoto teria somente 18 anos quando o dirigiu - tinha, na verdade, 22 - e logo após o seu lançamento foi retirado de circulação e levado consigo para uma ilha remota brasileira (de acordo com o historiador de cinema francês Georges Sadoul, ele próprio incapaz de vê-lo). Em um verbete sobre Peixoto no Dicionário dos Realizadores que escreveu em 1965, Sadoul escreveu que o diretor "não havia permitido ninguém vê-lo desde 1940" (1972, p. 197). De fato, a cópia sobrevivente em nitrato era projetada uma vez por ano, pelo Professor Rocha na Faculdade Nacional de Filosofia até o final dos anos 50, quando se deteriorou demasiado para ser exibida. Saulo Pereira de Mello, então, tomou para si a causa, iniciando uma prolongada restauração do filme, entre 1958 e 1971. Sua reputação tem sido acrescida em tal medida, que numa enquete de críticos de cinema brasileiros, Limite se encontrava no topo da lista dos "30 filmes mais significativos da história do cinema brasileiro".

O foco central de Limite é uma cena de três pessoas - duas mulheres e um homem - em uma canoa, à deriva no mar. Todos se encontram desgrenhados e exauridos, e o filme reconta suas histórias por partes, em flashbacks. A primeira, mulher de cabelos mais claros (Olga Breno), escapou da prisão com ajuda de um guarda, mas sua nova vida como costureira é observada como uma semelhante armadilha, e ela foge novamente. A segunda mulher (Tatiana Rei), que inicialmente fora vista caída no chão do barco (talvez morta), é revivida, e sua história é apresentada como não menos exaltada: casada desgraçadamente com um pianista beberrão. A vida do homem (Raul Schnoor) é ainda pior. Viúvo, teve  um caso com uma mulher cujo marido (Peixoto), informa-o, possui lepra. Ao final do filme o homem, desesperado por água, joga-se no oceano, aparentemente para recuperar um barril, e possivelmente cometer o suicídio. Após uma tempestade violenta, somente uma mulher parece sobreviver, ainda que algemada, aprisonada uma vez mais.

Por essa descrição do enredo pode-se compreender que o título do filme pretendeu expressar que os limites dos seres humanos podem ser esticados na vida. Mas a grandeza do filme reside em seu estilo, que também puxa os limites da narrativa cinematográfica. A despeito de sua pouca idade, Peixoto já havia viajado à Europa e sido influenciado pelo cinema de vanguarda dos anos 20. Limite tem sido comparado a esse corpo de obra, e a tradição impressionista francesa de Jean Epstein, Germaine Dulac e Menilmontant (1926), de Dimitri Kirsanov, é clara. Como nos filmes desses, os movimentos de câmera, ângulos, iluminação e vários artifícios de montagem são utilizados por Peixoto, juntamente com a representação da natureza, para expressar a psicologia dos personagens e enquadrar personagens aproximada e enclausuradamente, e a representação vigorosa dos elementos naturais tão grandemente sensual e tangível puxando apaixonadamente o cinema, para próximo de seu limite. 

A abertura do filme introduz o espectador a todos estes artíficios limítrofes. O primeiro plano em câmera baixa observa alguns corvos empoleirados na encosta de uma rocha. A imagem dissolve para um estranho plano de um par de mãos, algemadas diante de uma mulher, provocando um efeito que parece que o rosto e as mãos se encontram desencarnados. Outra dissolução isola as mãos algemadas em primeiro plano, e adiante uma futura dissolução com os punhos cerrados e os olhos de Bruno em extremo primeiro plano. Ainda outra dissolução lentamente revela, a superfície cintilante de uma parede de água, que por sua vez se dissolve de volta aos olhos que observam diretamente da lente da câmera. A série de planos somente vagamente pode sugerir uma linha narrativa, mas há já um forte senso de desespero, paixão contra aprisionamento e um vínculo desse esforço humano com as forças da natureza sendo aqui apresentados. Uma  vez os três personagens na canoa sejam revelados, são observados de qualquer direção concebível, mas a variedade da distância é deliberadamente limitada através do uso consistente de uma câmera alta e uma resistência a proporcionar qualquer tipo de perspectiva mais ampla do local onde se encontra a canoa. 

Como um filme de detetives, a informação narrativa chave é suprimida do público em Limite, mas ao contrário dos filmes de gênero clássico, Peixoto (e os cinegrafistas Edgar Brasil e Rui Costa) nunca amplia a distância, e se vivenciará uma frustração do início ao final do filme. O desenrolar da mulher da primeira história é típica. Temos que inferir que ela escapou de uma prisão juntando a quantidade limitada de informação dada: uma panorâmica-chicote de uma mulher por trás das grades leva ao chão, o relance de uma porta se fechando,  um par de pernas, uma luta entre um homem e uma mulher. Esse plano-sequencia solitário é seguido por uma série de planos em trilhos, ocasionalmente a observando, mas também expressando a perspectiva dinâmica da fuga. Sua jornada subsequente é expressa através de uma única imagem das rodas de um trem em movimento, mas o senso eufórico é imediatamente contradito quando as rodas do trem dissolvem em um volante de uma máquina de costura e uma série de planos próximos da mulher de um número de posições fixas, intercalados com o detalhe de uma fita métrica, e especialmente um par de tesouras levam o espectador a inferir que ela está vivendo novamente em uma espécie de prisão.

Em sua oscilação entre imagens firmemente enquadradas de potencial satisfação (repletas de movimentos dinâmicos) e estáticos, armadilhas frustrantes, Limite apresenta uma visão incrivelmente apaixonada e cheia de suspense da juventude alienada em um paraíso tropical. Infelizmente Peixoto nunca foi capaz de completar outro filme. Ele iniciou três nos anos 30 e posteriomente trabalhou em outros projetos. Mas seu único filme acabado, Limite, é verdadeiramente uma obra única, que agora finalmente é vista ao redor do mundo e tem ganho sua reputação legítima como um dos grandes filmes narrativos experimentais do mundo. 

Texto: Rist, Peter H. The Dictionary of South American Cinema. Plymouth: Rowman & Littlefield, 2014, p. 364-66. 

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