Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#88: Gláuber Rocha

 


Gláuber Rocha (Brasil, 1939-81). Junto com Nélson Pereira dos Santos, a figura mais importante da história do cinema brasileiro, Gláuber Rocha, foi também o líder do Cinema Novo e provavelmente o mais conhecido realizador latino-americano, com mais de quinze livros sido publicados sobre ou dele, mais que qualquer outra figura do cinema sul-americano. Rocha nasceu em Vitória da Conquista, Bahia. Enquanto estudante, em Salvador (capital da Bahia) e Rio de Janeiro, foi um ativista e voltou-se para o jornalismo, o cinema e o teatro para se expressar. Como dos Santos envolveu-se em promover um verdadeiramente autóctone cinema nacional e escreveu diversos artigos fundamentais enquanto se envolvia com a realização cinematográfica. Dirigiu seu primeiro filme, um curta experimental, O Pátio, em 1959. Antes de assumir a direção do longa Barravento, em 1960, de Luiz Paulino dos Santos (nenhum parentesco com Nélson Pereira), realizou outro curta, Cruz na Praça, que permaneceu inacabado. Todos os primeiros três filmes de Gláuber foram realizados na Bahia, e manteve ao longo de sua vida um interesse em sua cultura (primordialmente afro-brasileira).

Barravento, que é frequentemente considerado como o primeiro longa ficcional importante do Cinema Novo, é uma história de uma comunidade pesqueira baiana, ambientada na pequena vila costeira de Buraquinho. Firmino (Antônio Pitanga) retorna à casa após se tornar politizado na cidade grande. Tenta convencer os pescadores de que estão sendo tolos ao propiciarem 90% de seus lucros ao proprietário da rede e a corta, para que possam retornar a autossuficiência da pesca de jangada (pequeno barco de madeira). Firmino é o catalizador de uma série de afogamentos, inclusive o de Cota (Luiza Maranhão), sua amante. Seguindo a tempestade (barravento) e sua luta física com seu rival, Aruã (Aldo Teixeira), abandona novamente a vila. O sentido do filme é grandemente ambíguo, e é estruturado dialeticamente tanto em narrativa quanto estilo. Os personagens principais parecem viver contradições. Por exemplo, enquanto Firmino age como um homem gramsciano do povo, suas ações causam um grande rastro de destruição e sofrimento. Além do que, apesar dos afogamentos serem normalmente atribuídos à natureza, a presença da deusa do mar Iemenjá não pode ser descartada. 

Estilisticamente, o realismo conquistado através do uso de locações e não profissionais, em sua maioria atores afro-brasileiros, é contraposto pelos excessos da montagem eisensteiniana e delirantes movimentos de câmera. Um contraste também se torna aparente entre o estilo de filmagem em planos abertos e a inclusão de inserções de close-ups. Isto se torna particularmente evidente em algumas cenas algo etnográficas de práticas religiosas de candomblé e capoeira, na qual a música é raramente sincronizada com a imagem. Rocha posteriormente renegou esta obra inicial "inacabada", que foi editada por Nélson Pereira dos Santos, e surpreendentemente reivindicou que não havia sido verdadeiramente um filme "seu". Entretanto, em seus muitos contrastes antecipa sua obra madura, e com seu texto inconstante e esquivo, que somente parcialmente explica a natureza "exótica" de seu tema, e sua riqueza seja em endossar ou criticar a cultura tradicional afro-brasileira, Barravento hoje aparenta ser um notável precursor sofisticado das desconstruções pós-estruturalistas e pós-modernistas da prática etnográfica ocidental, tais como encontradas nos filmes de Trint T. Min-ha e Kidlak Tahimiki. Venceu o prêmio Opera Prima (melhor primeiro filme) do festival de Karlovy-Vary, na Tchecoslováquia. 

No início dos anos 1960 Rocha também trabalhou como produtor-executivo para Roberto Pires e Rex Schindler em A Grande Feira (1960) e Tocaia no Asfalto (1963), enquanto continuava a trabalhar regularmente como crítico e teórico de cinema ascendente, referindo-se  ao "Cinema Novo" pela primeira vez em um artigo de 1961. Seu segundo longa-metragem, Deus e o Diabo na Terra do Sol, é uma das grandes obras do cinema mundial dos anos 60, e exemplifica tanto o estilo único do diretor como a abordagem refrescante da história e cultura brasileiras pelo movimento cinema-novista. Combina mitos do sertão do nordeste brasileiro com a popular literatura versificada do cordel, e vários gêneros de música, e seguindo o exemplo dialético de Barravento, mescla encenação em tableau  e atuação melodramática em planos-sequencia realistas, nos quais estranhos e espasmódicos movimentos de câmera são entrelaçados com montagem de cortes abruptos. 

Deus e o Diabo na Terra do Sol é repleto de violência, angústia e sofrimento doloroso, e um ano após seu lançamento Rocha escreveu um artigo importante, Uma Estética da Fome (traduzido para o inglês em 1970 como "An Aesthetic of Hunger"), no qual clamava que a "mais autêntica manifestação [do Cinema Novo brasileiro] da fome é a violência". Argumentava que tal visão pessimista do folclore do nordeste brasileiro possuía uma motivação política: "Então fizemos estes filmes tristes, feios, desesperados, que gritam; filmes onde a razão nem sempre prevaleceu. Desta forma, a cultura da fome, espelhada nela mesma, torna-se consciente de sua real estrutura e pode ativamente iniciar o processo de mudança social qualitativa." (Afterimage 1 [1970]: s.p.). O artigo foi apresentado primeiro como uma comunicação em Gênova, Itália, em janeiro de 1965, e então publicado na Revista da Civilização Brasileira 3 [1965]; também foi impressa em diversas traduções por Burnes Hollyman e Randal Jonhson em Johnson e Stam (1982: 68-71) e Chanan (1983: 13-14).

Em 1965 Rocha ajudou a fundar a companha produtora de cinema independente Mapa Filmes, na qual co-produziu Menino de Engenho, de Walter Lima Jr. e dirigiu um curta, Amazonas, Amazonas, seu primeiro em cores. Em novembro foi preso, juntamente com outros realizadores, em frente do quartel-general da OEA (Organização dos Estados Americanos) por protestar contra o regime militar. Em 1966,  Rocha coproduziu A Grande Cidade, de Carlos Diegues, e realizou outro curta, Maranhão 66; e começou a trabalhar em seu terceiro longa-metragem, Terra em Transe, uma notável acusação da política sul-americana do século XX, que foi banido tão logo lançado, em abril de 1967, considerado como subversivo e desrespeitoso à Igreja. Foi por fim lançado e exibido no Festival de Cannes, onde ganhou o prêmio da crítica internacional, FIPRESCI, assim como o Luis Buñuel, prêmio dos críticos franceses, e então numerosos prêmios em Rio de Janeiro, Locarno (Suíça), e o Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano (Havana), tornando-se o mais bem sucedido internacionalmente dos filmes de Rocha.

Rocha se envolveu nos protestos, em 1968, contra o golpe-dentro-do-golpe, no Rio de Janeiro, trabalhando em dois filmes em preto&branco, o média metragem Protesto Mudo, que permaneceu inacabado, e o longa realizado coletivamente em 16 mm  Câncer, sendo finalmente editado no Instituto de Cinema Cubano (ICAIC), em 1972, permanecendo virtualmente não visto desde então. Câncer foi filmado enquanto o produtor Zelito Viana esperava pelo negativo em cores chegasse ao Brasil, para o projeto seguinte  de Rocha, no qual o diretor retornou ao mítico sertão do nordeste  brasileiro e a cidade de Milagres para produzir sua obra-prima de viés tropicalista O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969). O filme recebeu nada menos que quatro prêmios em Cannes, após o qual, a obra de Rocha foi crescentemente prestigiada na Europa. Foi convidado a interpretar um papel central em Vent d'Est (Vento do Leste, 1970), de Jean-Luc Godard, quando Godard estava em seu momento mais experimental, e Michel Ciment escreveu um capítulo sobre ele para um livro de língua inglesa, Second Wave: Newer than New Wave Names in World Cinema, editado por Ian Cameron para a série Praeger Film Library (1970).

Exilado do regime militar repressor até 1976, Rocha nunca mais teria o mesmo sucesso em vida. Fez quatro longas no exílio, dos quais somente um, Cabezas Cortadas  (1971), foi exibido comercialmente no Brasil, pela Embrafilme, em 1978. Seu primeiro, foi talvez o mais estranho, Der Leone Have Sept Cabeças (O Leão de Sete Cabeças, 1970), filmado na República do Congo-Brazaville. Seu título em cinco línguas (alemão, italiano, inglês, francês e português), refletia presumidamente a natureza do colonialismo na África e talvez a natureza multinacional de seus produtores - Claude Antoine na França, Gianni Barcelloni na Itália, a  Mapa Filmes de Rocha, a televisão alemã - e a língua falada por seu elenco, incluindo Jean-Pierre Léaud como um padre francês e o brasileiro Hugo Carvana como um comerciante português, enquanto um grupo de atores italianos interpretava um mercenário alemão, um agente americano e uma turista americana, Marlene (Rada Rassmimov). Todos agentes de poder no filme. Numa entrevista à revista de cinema francesa Cinéma (novembro de 1970), Rocha disse que Der Leone Have Sept Cabeças era "um filme sobre a possibilidade  de se fazer cinema politico" e uma tentativa de sintetizar "os mitos políticos do Terceiro Mundo através do repertório do drama popular". (Johnson, 1984, p. 149). Surpreendentemente, este filme de narrativa vanguardista foi lançado na América do Norte, França e Grã-Bretanha. 

Cabeças Cortadas funcionou como uma espécie de sequencia à Terra em Transe, enquanto dois outros filmes de Rocha tem sido raramente vistos. História do Brasil é um documentário de 2 horas e 45 minutos, iniciado em Cuba, em 1972, e finalizado na Itália, em 1974, apresentado em 1975 no Festival de Pesaro (Itália). Claro (Itália, 1975) foi um longa ficcional que estreou no festival de cinema de Taormina (também´na Itália). Após retornar ao Brasil, enquanto aguardava financiamento suficiente para seu próximo e último longa ficcional, Rocha realizou um curta documental, Di (1976), sobre o aclamado pintor brasileiro Di Cavalcanti, no qual a morte e funeral de seu amigo serve como catalisador para celebrar a vida. A primeira monografia sobre o diretor. escrita por Michel Esteve, surgiu em 1973, e um segundo volume francês, escrito por René Gardies, foi publicado em 1974.

O último título de Rocha, A Idade da Terra é um filme narrativo épico experimental em cores de 2 horas e 40 minutos que tenta (nas palavras de Rocha) apresentar um "mosaico sinfônico" da "realidade sóciomística do Brasil e do Terceiro Mundo" apelando ao inconsciente mais que os processos racionais do espectador. Rocha também desejava romper com o desejo do público de compreender com clareza um fio narrativo. Existe quatro versões de Cristo no filme, assim como outros personagens alegóricos, incluindo um tirano louro (do Vale) e uma índia simbólica, Aurora Madalena (Ana Maria Magalhães), e o próprio Rocha aparece, falando aos atores, desconstruindo a noção de se estar assistindo a um filme de ficção. Portanto, não é surpreendente que Rocha desse ok para que se exibisse os rolos em qualquer ordem ou apresentasse três partes do filme ao mesmo tempo. Muito após sua morte, seu filho mais jovem, Eryk Rocha realizou um importante documentário sobre ele, A Rocha que Voa (2002), que tenta replicar a abordagem dialética na forma, enquanto busca vincular sua obra ao cinema revolucionário cubano. Sua filha mais velha, Paloma, também codirigiu um documentário sobre seu pai, e também se tornou responsável por restaurar os filmes de Rocha e lançá-los em cópias especiais de DVDs. 

Texto:  Rist, Peter H. The Historical Dictionary of South American Film. Plymouth: Rowman & Littlefield, 2014, pp. 485-89.

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