Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#75: Ruy Guerra

 



GUERRA, RUY (Moçambique-Brasil, 1931). Um dos mais importantes dentre todos os realizadores sul-americanos, Ruy Guerra é provavelmente o mais internacional e independente, mas menos prolíficos dos diretores/roteiristas maiores do Cinema Novo, tendo dirigido somente 15 longas - no Brasil, França, Moçambique, México e Portugal, assim como em co-produção com Espanha e Argentina - nos 50 anos desde sua escandalosa estreia com Os Cafajestes, em 1962. Nascido em Moçambique, quando era colônia portuguesa, Guerra mudou-se para Portugal em 1950, quando foi preso por se envolver com o movimento pró-independência. Estudou cinema no Institut des Hautes Études Cinématographiques (IDHEC), em Paris, de 1952 a 1954, adaptando um conto de Elio Vittorini para seu filme de formatura, Les Hommes et les Autres. Na França trabalhou como assistente de direção de Jean Dellanoy e Jacques Rouquier, e então emigrou para o Brasil, onde realizou o curta documental Orós (1960), e iniciou uma ficção de média-metragem não concluída, O Cavalo de Oxumaré (1961).

Considerado por Gláuber Rocha como a primeira obra do Cinema Novo, Os Cafajestes, também causando a primeira controvérsia do movimento, foi banido dez dias depois de seu lançamento original no Rio de Janeiro, em março de 1962. Os Cafajestes é literalmente intraduzível em inglês. O dicionário Collins de Português-Inglês traduz o nome cafajeste como "rogue", ou "rogue costumer", mas a compreensão das platéias brasileiras do título do filme acharia restrita a definição que seria de uma pessoa jovem, para incluir características como indolência, inconstância, trapaça e prostituição. O filme foi atacado pela igreja, o exército e o governo local, em parte por ser o primeiro filme brasileiro a apresentar uma nudez frontal feminina. A cena em questão é problemática: numa praia deserta, Leda (Norma Bengell) foi enganada com uma proposta de banho de mar por Jandir (Jece Valadão), esperando segui-la para as águas, somente para ser perseguida por ele e seu rico amigo playboy, Vavá (Daniel Filho), e seu carro, circundando-a para tirar fotos a serem utilizadas em um esquema de chantagem. A sequencia finda com uma imagem congelada que, juntos com a exagerada câmera fálica que se move reflexivamente, indicando ao público  que está a vitimizar Leda. A atriz certamente também está sendo vitimizada, e vários indivíduos e grupos, incluindo pessoal de cinema, ficaram claramente perturbados pelo tratamento de câmera de Bengell em Os Cafajestes. Ao longo do filme Guerra alterna entre os modos documental e ficcional, incluindo as cenas noturnas das ruas do Rio e levando a um episódio no qual o cafajeste Jandir, atrai uma prostituta (interpretada pela irmã de Rocha, Glauce*) e a enganando para leva-la ao seu apartamento no meio da noite.

Aparentemente influenciado pela nouvelle vague francesa em sua ênfase no estilo de câmera e sua mistura de modos, também podem ser detectados traços do uso alienante da paisagem sobre os personagens centrais de L'Avventura [A Aventura] de Michelangelo Antonioni no primeiro longa de Guerra. E quando uma segunda jovem mulher, Wilma (Lucy Carvalho), antiga amante do pai de Vavá é trazida junta pelos três para outro golpe de chantagem na praia à noite, onde estranhas lutas de poder são encenadas dentro dos contrastes visuais rígidos em preto e branco, pode-se perceber a presença seminal da obra do filme brasileiro de arte, Limite. Quando foi finalmente lançado, Os Cafajestes foi um sucesso comercial, quebrando recordes de bilheteria em São Paulo, a despeito de ter sido proibido ao público menor de 21 anos. Foi o primeiro dos quatro filmes do diretor a ser incluído no Festival de Cinema de Berlim. 

Com seu segundo longa, Os Fuzis (1964), Guerra junta-se à tendência geral do Cinema Novo, ao encenar a ação no nordeste brasileiro e explorar as relações entre e dentro das classes, lidando com a seca, pobreza e misticismo religioso, enquanto alargava sua abordagem dialética à forma cinematográfica. Em 1966 Guerra trabalhou para Pierre Kast como tradutor e consultor musical para um filme que o francês realizou no Brasil, Carnets Brésiliens, e em 1967 retornaria à França, onde dirigiria um curta, Chanson pour Transverser la Rivière, que inicialmente era suposto ser incluído no projeto de Chris Marker, Loin du Vietnan [Longe do Vietnã], mas não o foi. Após um ambicioso e abortado projeto televisivo, Guerra realizou seu terceiro longa e primeiro filme em cores na França, Ternos Caçadores (1969), filmando-o em inglês e com maior parte do elenco estaduniense, incluindo Sterling Hayden e Susan Strasberg. Foi exibido no Festival de Veneza como submissão panamenha, e ainda que não tenha ganho prêmios oficiais (leões) em 1969, foi-lhe aparentemente dado uma medalha de ouro. 

O quarto filme de Guerra, Os Deuses e os Mortos (1970), foi talvez seu mais experimental, combinando a análise política de Os Fuzis com a análise psicológica dos personagens e a exploração do mito e da magia de Ternos Caçadores, enquanto levava seu diretor de fotografia (Dib Lufti) a tentar complexos planos-sequencia com uma rodopiante câmera na mão, de forma nada dessemelhante às obras épicas contemporâneas do marxista húngaro Miklós Jancsó. (Há somente 54 planos em um filme de 93 minutos). Filmado no Brasil e ambientado nas plantações de cacau do sul da Bahia nos anos 20, Os Deuses e os Mortos foca nas lutas pelo controle da região por dois latifundiários, Santana da Terra e Urbano Agua-Limpa. Sua luta intestina é, em última instância, tornada sem sentido, porque o capital estrangeiro controla os negócios cacaueiros, e uma terceira e não identificada figura (o "homem" ou "sete" - por ter sobrevivido a sete tiroteios), interpretado por Othon Bastos, assassina ambos os lados, para, em última instância,  não ganhar nada. As violentas lutas de poder do filme, imbuídas de rituais afro-brasileiros e inspirados por Macbeth e Ricardo III, de Shakespeare, são alegorias das lutas políticas e econômicas do Brasil e a paleta de cores do filme - um latifundiário associado com o verde, o outro com o azul; o amarelo do óleo e do ouro - são reminiscentes da bandeira nacional brasileira, ainda que o vermelho do sangue domine. Os Deuses e os Mortos foi o terceiro filme de Guerra a ser aceito em competição em Berlim e ganhou sete troféus Candango no Festival de Brasília, incluindo Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Fotografia e Melhor Ator (Othon Bastos).

Por sete anos, com os militares no controle do governo brasileiro, Guerra não dirigiria outro filme, mas atuaria em uma série de filmes europeus, mais destacadamente como Don Pedro de Ursua em Aguirre (Al. Ocidental, 1972), de Werner Herzog, filmado na região amazônica do Peru. Herzog havia sido inspirado por filmes brasileiros, particularmente os de Guerra, e consequentemente escolheu-o de forma deliberada elencá-lo em um papel relativamente simpático em contraste com o louco conquistador espanhol, interpretado por Klaus Kinski. Sem dúvida a delirante câmera circular ao redor do único sobrevivente na jangada ao final do filme, foi inspirada pelo estilo de movimento de câmera de Guerra. Guerra também dirigiu peças e retornou ao seu Moçambique natal, onde participou das celebrações de independência em 1975. De volta ao Brasil no ano seguinte, co-dirigiu A Queda com o ator Nélson Xavier, uma sequência de Os Fuzis. Incorporando o filme anterior ao escalar os mesmos atores (incluindo Xavier), como se os seus personagens houvessem migrado ao sul, para o Rio de Janeiro, e utilizando longos trechos de metragem deste, A Queda foi um dos primeiros filmes brasileiros a lidar criticamente com a opressão dos trabalhadores urbanos, prefigurando às greves metalúrgicas do final da década. Censurado imediatamente no Brasil, A Queda foi convidado ao Festival de Berlim, onde, como Os Fuzis, venceu o Urso de Bronze, o Prêmio Especial do Júri. Nessa época, ele havia retornado a Moçambique, posto no comando do novo instituto nacional de cinema, e dirigido o primeiro longa do país, Mueda, Memória e Masssacre (1978), baseado em incidente de 1960 numa cidade do norte, Mueda, onde as tropas portuguesas assassinaram cerca de 600 pessoas desarmadas que protestavam pela independência. O incidente levou à formação da FRELIMO, movimento de independência de Moçambique. 

Com apoio financeiro tanto da França quanto da Alemanha, Guerra realizou no México uma das mais bem sucedidas adaptações de Gabriel Garcia Márquez, Erêndira (1983), a partir do conto "La Incredible e Triste Historia de la Candida Eréndira y de su Abuela Desalmada" (1972). Tornando a produção ainda mais internacional, a diva grega Irene Papas foi elencada como Amadis, a avó, a jovem atriz brasileira Claudia Ohana foi Eréndira e os atores francês e alemão Michael Lonsdale e Oliver Wehe interpretaram os dois protagonistas masculinos. Quando a casa da família queima, a avó culpa Eréndira, então com 14 anos, forçando-a a uma vida de prostituição como remissão. Com o incêndio mágico da residência, seu cenário de deserto para uma longa fila de clientes masculinos, e o ostentatório e melancolicamente sombrio estilo de vida de Amadis, Eréndira transpôs o universo surreal de Garcia Márquez de forma mais efetiva que a maioria dos filmes. 

Guerra tem tido sempre interesse do uso da música em seus filmes. Luiz Bonfá compôs uma notável trilha com toques de jazz para Os Cafajestes, Milton Nascimento escreveu a música para Os Deuses e os Mortos, e o diretor colaborou musicalmente com Nascimento em A Queda, após a co-autoria de uma peça em 1973 com o grande compositor Chico Buarque de Hollanda. Seu filme seguinte, co-escrito com Buarque, foi um musical, Ópera do Malandro (1986). Realizando um brilhante uso dos cenários, figurinos e fotografia em cores e utilizando um amplo espectro de formas musicais populares, incluindo tangos e sambas, Ópera do Malandro apresenta uma alegoria da história e da política brasileiras durante a Segunda Guerra. Max Overseas (nome verdadeiro Sebastião Pinto), interpretado por Edson Celulari, o malandro do título, é indiretamente conectado tanto com os nazistas, dadas as negociatas com o proprietário do clube noturno Otto Struedel (Fábio Sabag), quanto com o exército estaduniense, vendendo o que eles desejarem. Max faz qualquer coisa por dinheiro, e a representação do universo de gangsters/cafetões e suas prostitutas satiriza a conexão entre o submundo e o capitalismo, sugerindo ainda que tais características "cafajestes" eram essencialmente "brasileiras" nos anos 1940.

A conexão com Hollywood também é interessante, com a marquise de um cinema do famoso filme de gangster Scarface (1932), de Howard Hawks, enquanto a direção de arte claramente inclui modelos, nada disparatados àqueles utilizados nos primórdios dos anos 30. O parceiro de juventude de Max é agora um policial - como os filmes "G-Man" da Warner de meados dos anos 30 - mas, ao contrário dos filmes hollywoodianos da época, os policiais aqui são inequivocamente corruptos. Há uma série de referências a Humphrey Bogart e Casablanca (1942). A namorada de Max é interpretada pela cantora Elba Ramalho, a "Rainha do Forró" (música popular regional nordestina), embora Max eventualmente case com a filha de Struedel, Ludmilla (Claudia Ohana), em um casamento simbólico da Alemanha, Estados Unidos e Brasil como uma teia de explorações. (Ela deseja ingressar no negócio de importações com Max). Ópera do Malandro estreou em competição no Festival Internacional de Cinema de Cannes e foi posteriormente lançado na França, Canadá e Estados Unidos. O filme demonstrou o interesse de Guerra em realizar entretenimento popular, mesmo mantendo uma perspectiva dialética e crítica, em linha com os anseios políticos iniciais do Cinema Novo.

Guerra dirigiu um segundo longa baseado em Garcia Márquez, em 1988, para a TV nacional espanhola, em co-produção com o Brasil, A Bela Palomera, e em 1989 dirigiu Kuarup, baseado em romance de Antonio Callado, que também foi convidado para competição em Cannes. Em 1992 dirigiu uma minissérie para a tv cubana-espanhola, mas não realizaria outro longa  antes de 2000, Monsanto, para a TV portuguesa. No mesmo ano conseguiu um retorno à forma com outro longa metragem, Estorvo, seu terceiro filme em competição em Cannes, que recebeu prêmios em uma série de festivais internacionais, incluindo o Festival de Cinema de Gramado, Huelva (Espanha), Santa Fé, e o Festival Internacional de Viña del Mar (Chile). Guerra desde então dirigiu mais dois longas, o segundo deles, O Veneno da Madrugada (2006), uma co-produção brasileira/argentina/portuguesa, baseada no primeiro romance de Garcia Márquez, La Mala Hora, e foi exibido em competição em San Sebastián (Espanha) e conquistou prêmios no Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano (Havana) e em Brasília para a fotografia de Walter Carvalho. Guerra também atuou como Vasco de Sá, um homem que inexplicavelmetne compra uma parte do deserto arenoso do Maranhão, em Casa de Areia (2005), de Andrucha Waddington, uma paisagem nada diferente a de seu primeiro filme, Os Cafajestes.

Texto: Rist, Peter H. The Historical Dictionary of South American Film. Plymouth: Rowman & Littlefield, 2014, pp. 291-95. 


N. do E: Trata-se de um equívoco. Glauce Rocha (1930-1971) não foi irmã de Gláuber, mas sim  outra atriz, Anecy Rocha (1942-1977). 

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