O Dicionário Biográfico de Cinema#119: Cary Grant

 

Cary Grant (Archibald Alexander Leach) (1904-1986), Bristol, Inglaterra

Existe uma constatação maior, mas bastante difícil, que precisa ser compreendida a respeito de Grant - difícil, quer dizer, para a maior parte das pessoas que gostam de pensar que levam a arte do cinema seriamente. Tanto quanto ter sido uma liderança nas bilheterias por mais de trinta anos, a epítome do homem socialmente ativo, assim como o ex-marido de Virginia Cherrell, Barbara Hutton, Betsy Drake e Dyan Cannon, assim como o ator aposentado, ainda bonito executivo de uma companhia de perfumes - assim como todas essas coisas, foi o melhor e mais importante ator da história do cinema. 

A essência de sua qualidade pode ser posta de forma bem simples: podia ser atraente e não atraente simultaneamente; há um lado sombrio e luminoso nele e, seja qual for o dominante, o outro deixa rastros à vista. Pode ser dito que o próprio Grant (ou Archie Leach) transmitia pela câmera e telas uma rara disposição a se comprometer com a câmera sem fraude, disfarce ou exagero, tomar parte numa fantasia, sem ser enganado por ela. Mas o efeito que conquista é o de arte; apresenta malícia, misoginia, egocentrismo e solidão, com boas maneiras e alegria; e revela uma sensação de graça-humor impulsionando um jogo quase sádico sobre pessoas de nervos menos afiados e boa natureza. Por exemplo, considere a alusão de um verdadeiro desequilibrado, por baixo das brincadeiras, em Suspicion [Suspeita] (41, Alfred Hitchcock); o retrato magistral de irresponsabilidade moral parada no meio do caminho em North by Northwest [Intriga Internacional] (59, Hitchcock); orgulho ferido transformado em uma fria e calculada manipulação em Notorius [Interlúdio] (46, Hitchcock), apenas para ceder ao final. Considere uma vez mais o chauvinismo masculino que é apresentado através do sombrero que porta o aviador em Only Angels Have Wings [O Paraíso Infernal] (39, Howard Hawks); o prazer implacável em provocar em His Girl Friday [Jejum de Amor] (40, Hawks); trazer à vida um especialista em ossos, protegido e míope em Bringing Up Baby [Levada da Breca] (38, Hawks); a louca frustração sexual em I Was a Male War Bride [A Noiva Era Ele] (49, Hawks); e a hilariante mistura de adulto e colegial em Monkey Business [O Inventor da Mocidade] (52, Hawks). Se esta lista está confinada a Hitchcock e Hawks, somente ressalta que ninguém fez ou poderia ter feito tão bem para dois diretores de atitudes tão radicalmente opostas. A mesma perturbadora e vivaz ambiguidade pode ser vista em muitos outros filmes, de par com um indisputável senso de tempo, encorajamento de colegas de elenco, e a habilidade para amontoar palavras ou expressões em espaços tão pequenos, que a maioria dos outros atores relaxaria. Grant poderia não ser o exigente retrato de homem que é, não fosse por um comando técnico que é mal percebido. É uma conclusiva falha do sistema dos Oscars que Grant nunca tenha ganho por uma intrepretação específica. Portanto, em meio à vergonha e confusão, em 1969,  a Academia lhe deu um prêmio genérico "com o respeito e a afeição de seus colegas."

Sua mãe teve um colapso mental quando ele tinha 12 anos, e o jovem Archie encontrou educação no Hipódromo de Bristol, com uma trupe de acrobatas. Foi para os Estados Unidos como um acrobata saltador em 1920 (seu porte físico se devia muito aos treinamentos) mas retornou ao teatro inglês, e somente voltaria aos Estados Unidos em um musical, Golden Dawn. Em 1932, ganhou um pequeno contrato com a Paramount e realizou sua estreia com This Is the Night [Esposa Improvisada] (Frank Tuttle). Após alguns outros papéis de apoio, contracenou com Marlene Dietrich em Blonde Venus [A Vênus Loira] (32, Josef Von Sternberg) e Sylvia Sidney em Madame Butterfly (33, Marion Gering). Mas foi Mae West que soube valorizá-lo como era, escolhendo Grant para trocar provocações com ela em She Done Him Wrong [Uma Loira para Três] (33, Lowell Sherman) e I'm No Angel [Santa Não Sou] (33, Wesley Ruggles).

Na segunda metade da década, ascendeu de apoio a um comediante totalmente desenvolvido. Contracenou com Loretta Young em Born to be Bad [Nascida para o Mal] (34, Lowell Sherman). A RKO o contratou para atuar com Katharine Hepburn em Sylvia Scarlett [Vivendo em Dúvida] (35, George Cukor), e no ano seguinte assinaria contratos com Columbia e RKO. Nessa base, os filmes fluíram: The Awful Truth [Cupido é Moleque Teimoso] (37, Leo McCarey), com Irene Dunne; Topper [A Dupla do Outro Mundo] (37, Norman Z. McLeod), com Constance Bennett; Levada da Breca, com Hepburn, em uma história de amor tão tocante quanto louca - na opinião desse escriba, Grant conseguiu coisas melhores de Hepburn, que Tracy conseguira; com Hepburn novamente em Holiday [Boêmio Encantador] (38, Cukor); como um soldado cockney em Gunga Din (39, George Stevens); O Paraíso Infernal, fazendo Jean Arthur gritar de raiva; com Carole Lombard, em In Name Only [Esposa Só no Nome] (39, John Cromwell); My Favorite Wife [Minha Esposa Favorita] (40, Garson Kanin), com Irene Dunne. Jejum de Amor, provocando Rosalind Russell a ser suportável; The Philadelphia Story [Núpcias de Escândalo] (40, Cukor), com Hepburn e James Stewart (o homem errado levou o Oscar); Penny Serenade [Serenata Prateada] (41, Stevens), com Dunne novamente; Suspeita, atacando Joan Fontaine; The Talk of the Town [E a Vida Continua] (42, Stevens), com Jean Arthur e Ronald Colman; Once Upon a Honeymoon [Era uma Vez uma Lua-de-Mel] (42, McCarey), com Ginger Rogers

None But the Lonely Heart [Apenas um Coração Solitário] (44, Clifford Odets), foi próximo do coração reticente de Grant: descreve uma relação mãe-filho que o faz lembrar da sua própria (Ethel Barrymore está muito bem como a mãe); e Odets era um amigo. Mas o filme foi recebido como um tenebroso fracasso, algo que havia traído ou desperdiçado o Grant habitual, não importando que o vagabundo cockney que interpretasse disesse bastante sobre o dessassossego de Grant. Mas o fracasso intimidou-o de qualquer interesse futuro em produção. Seu Cole Porter em Night and Day [Canção Inesquecível] (46, Michael Curtiz), foi uma caricatura caça-niqueis habitual, não importando que Grant conhecesse o verdadeiro Porter bastante bem.

Interlúdio pode ser o Grant mais sinistro jamais oferecido ao público. Era a civilidade no fim de sua trajetória cômica em The Bachelor and the Bobby Soxer [Solteirão Cobiçado] (47, Irving Reis) e Mr. Blandings Builds His Dream House [Lar...Meu Tormento] (48, H.C. Potter), com Myrna Loy como sua parceira em ambos. Fez Every Girl Should Be Married [Quero Esse Homem] (48, Don Hartman), com Betsy Drake - e repentinamente estavam casados. Em A Noiva Era Ele, Ann Sheridan, parece às vezes indefesa diante das risadas. Em Crisis [Terra em Fogo], foi a autorização de Grant que permitiu a estreia na direção de Richard Brooks. People Will Talk [Dizem que é Pecado] (51, Joseph L. Mankiewicz) foi bem adequado a sua inteligência indiferente, quase dolorida. Dream Wife [Quem é Meu Amor?] foi um fracasso. Em To Catch a Thief [Ladrão de Casaca] (55, Hitchcock), foi apenas concebível que fosse um ladrão que escala muros, ainda que sua boa descriminação moral hesite quando Grace Kelly lhe ofereça uma perna ou um seio. Sentiu algo tão intenso por Sophia Loren que fez dois filmes abobalhados com ela - The Pride and the Passion [Orgulho e Paixão] (57, Stanley Kramer) e Houseboat [Tentação Morena] (58, Melville Shavelson). Esteve bem melhor com Deborah Kerr em An Affair to Remember [Tarde Demais para Esquecer] (57, Leo McCarey) e com Ingrid Bergman em Indiscreet [Indiscreta] (58, Stanley Donen).

À parte Intriga Internacional, os filmes finais não foram mais que modestos exercícios para Grant. A aposentadoria reconheceu o início real da idade, mas talvez estivesse um pouco entediado por Kiss Them for Me [O Beijo da Despedida] (57, Donen); Operation Petticoat [Anáguas a Bordo] (59, Blake Edwards); The Grass is Greener [Do Outro Lado, o Pecado] (60, Donen); That Touch of Mink [Carícias de Luxo] (62, Delbert Mann); Charade [Charada] (65, Donen) e Walk, Don't Run [Devagar, Não Corra] (66, Charles Walters).

Grant fez filmes ruins ou enfadonhos ao longo do caminho, com certeza: Nascida para o Mal; Big Brown Eyes [Olhos Castanhos] (36, Raoul Walsh); The Toast of New York [Ídolo de Nova York] (37, Rowland V. Lee); The Howards of Virginia [A Flama da Liberdade] (40, Frank Lloyd); Destination Tokyo [Rumo a Tóquio] (43, Delmer Daves); Mr. Lucky [Aventureiro de Sorte] (43, Potter); Arsenic and  Old Lace [Este Mundo é um Hospício] (44, Frank Capra); Quem é Meu Amor?; e Orgulho e Paixão. Ele era bastante barato, e muito suspeito - então deixou de estar em The Third Man [O Terceiro Homem] e de contracenar com Garland em A Star is Born [Nasce uma Estrela]. Era provavelmente uma confusão sem esperança como homem, marido e até mesmo pai. Como alguém podia ser "Cary Grant"? Porém, como alguém, para sempre, não consideraria a tentativa?

Texto: Thomson, David. The New Biographical Dictionary of Film. N. York: Alfred A. Knopf, 2014, pp. 1074-77. 

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