Filme do Dia: Anjo ou Demônio? (1945), Otto Preminger
Anjo ou Demônio? (The Fallen Angel, EUA, 1945). Direção: Otto Preminger. Rot.
Adaptado: Harry Kleiner, a partir do
romance de Marty Holland. Fotografia: Joseph LaShelle. Música: David Raksin.
Montagem: Harry Reynolds. Dir. de arte: Leland Fuller & Lyle R. Wheeler.
Cenografia: Thomas Little. Figurinos: Bonnie Cashin. Com: Dana Andrews, Alice
Faye, Linda Darnell, Charles Bickford, Anne Revere, Bruce Cabot, John
Carradine, Percy Kilbride, Dorothy Adams.
Eric Stanton (Andrews) chega no pequeno lugarejo californiano de Walton
expulso pelo motorista de ônibus por não ter dinheiro. Ele se sente
imediatamente atraído pela bela garçonete Stella (Darnell). Porém mesmo tendo
um envolvimento com ela, o fato de não possuir dinheiro é um empecilho. Ele se
aproxima então da solteirona June Mills (Faye) que mora sozinha com a irmã mais
velha Clara (Revere). Os três viajam para San Francisco e, após conseguir
afastar Clara por um momento, ambos se casam, o que deixa Clara bastante
contrariada. Na mesma noite do casamento, após retornarem para Walton, e Eric ir
de encontro a Stella, contando tudo que acontecera. Stella não o escuta e sai
com outro homem, Dave Atkins (Cabot). Retornando a casa somente na manhã
seguinte, Eric escuta de June que Stella foi encontrada morta. O investigador
que toma a frente do caso é o bruto Mark Judd (Bickford), que não se escusa em
espancar Atkins no quarto ao lado de onde se encontra Eric. Considerado suspeito por Judd, Eric, que
havia abandonado Walton por San Francisco, decide retornar e efetuar um ajuste
de contas com o verdadeiro assassino de Stella.
Essa produção, realizada em momento
bastante prolífico do diretor, possui diversos pontos em comum com Laura (1944), o melhor filme de
Preminger nessa fase de sua carreira. Se a figura de mulher que desperta atenção de vários homens,
praticamente todos os que possuem algum destaque na narrativa é ainda mais uma
“folha em branco”, mesmo em relação a protagonista do filme anterior, serve
como força motriz para que caráteres masculinos sejam observados em uma
complexidade pouco usual para o cinema de então. De fato, mesmo sem abdicar de
vários dos clichês do noir o filme,
tal como muitos dos que Eric Rohmer realizaria posteriormente, desconstrói
muitas das certezas morais, inclusive aqui negativas, que um personagem possui
sobre si mesmo. Ou muito do que o senso comum imediato poderia julgar. Nesse
sentido, a personagem de June, tida como indefesa e mesmo idiota por tudo e
todos, incluindo sua irmã e Eric, e podendo igualmente assim ser observada ao
longo de quase todo o filme, ao final demonstra ter uma fé tão irrestrita no
caráter de Eric que a aproxima dos personagens bressonianos enquanto aponta
para uma possível “redenção”. Algo que nem mesmo a rapidez da economia
narrativa clássica e sua habitual condenação de inverossímil pode apagar de todo. O que o filme parece
apontar, ao final de contas, de forma pungente e muito além de suas próprias
convenções e adequações a soluções datadas de então, é o quanto levados por uma
mescla entre egotismo e pressão social somos forçados a uma existência opaca –
Eric revela a June que talvez o encantamento por Stella não fosse além de
algumas semanas, mas sua beleza e presença faziam com que ela ocultasse por
inteiro a apagada figura de June. Os valores misóginos do noir persistem é fato, mas até mesmo deles o filme consegue extrair
algo que vai além da superfície, representada aqui tanto pela figura de Stella, como todo o desejo masculino dirigido a ela. Ao final, Eric não deixa de
comentar com Popp, que havia sido patrão de Stella na lanchonete e mais um
apaixonado por ela, quando esse afirma que jamais irá esquecê-la, algo como ele
a esquecerá no dia que encontrar a si próprio.
Dentre outros pontos em comum com Laura encontra-se o jogo moral entre o
policial e o cidadão comum, sendo que aqui Andrews, que havia vivido, ao menos
sob determinado ponto de vista, o policial algo psicótico do filme anterior, é
o outro polo da equação. Já Dorothy Adams vivencia a mesma figura histérica de
olhos arregalados e em estado de choque com o crime. Um dos pontos fortes do
filme é que ele erra tanto quanto seu personagem ao início e se fica algo como
patinando e tentando encontrar o propósito das ações aparentemente
desencontradas de Eric por um tempo maior que o habitual. Outro é que consegue
um equilíbrio incomum ao fugir tanto da sentimentalidade melodramática quanto
do cinismo habitual do gênero. Assim, June, a exceção de uma cena ou duas, não
sucumbe ao papel de auto-comiseração que se espera dela e Eric consegue ir além
da casca de cinismo que o acompanha praticamente do início até próximo do
final. Destaque para os créditos
iniciais, sob o formato de placas de trânsito na estrada que leva a Walton,
antecipando, mesmo que de forma mais modesta, o uso diferenciado que delas se
fará na década seguinte, sendo Preminger, por sinal, uma das figuras de proa
nessa direção. Twentieh Century Fox Film Corp. 98 minutos.
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