O Dicionário Biográfico de Cinema#106: Federico Fellini

 

Federico Fellini (1920-93), n. Rimini, Itália

1950: Luci del Varietà [Mulheres e Luzes]. 1952: Lo Sceicco Bianco [Abismo de um Sonho]. 1953: I Vitelloni [Os Boas Vidas]; "Una Agenzia Matrimoniale", episódio de Amore in Città [O Amor na Cidade]. 1954: La Strada [A Estrada da Vida]. 1955: Il Bidone [A Trapaça]. 1956: Le Notti di Cabiria [Noites de Cabíria]. 1959: La Dolce Vita [A Doce Vida]. 1962: "Le Tentazione del Dottor Antonio", episódio de Boccaccio'70; 1963: 8 1/2. 1965: Giuletta degli Spiriti [Julieta dos Espíritos]. 1967: "Toby Damnit", episódio de Histoires Extraordinaires [Histórias Extraordinárias]. 1969: Fellini: A Director's Notebook; Fellini - Satyricon [Satyricon de Fellini]. 1970: I Clowns [Os Palhaços]. 1972: Roma [Roma de Fellini]. 1973: Amarcord. 1976: Il Casanova di Federico Fellini [Casanova de Fellini]. 1978: Prova d'Orchestra [Ensaio de Orquestra]. 1980: La Città delle Donne [Cidade das Mulheres]. 1983: E La Nave Va. 1985: Ginger e Fred. 1987: Intervista [Entrevista]. 1990: La Voce della Luna [A Voz da Lua].

Ainda que o elemento confessional na obra de Fellini tenha se tornado inconfundível somente de 8 1/2 em diante, podemos agora ver que nenhum outro italiano estava tão absorvido no ato de ser um diretor de cinema internacional. Nenhum outro diretor - à parte Orson Welles -  insistiu tanto na derivação pessoal de sua obra, nem cuidou de fazer mesmo fragmentos de um filme ou incidentes biográficos parecerem partes de uma obra total. Fellini frequentemente se faz passar de inocente fascinado, mas aturdido pela variedade picaresca da vida. No entanto, a questão que deve ser feita é se seus filmes fingiram vitalidade, em processo de sufocar a vida com egotismo apaixonado, mas autoindulgente? Essa é uma habilidade especial em Welles - um provinciano que persistentemente colheu sucesso e urbanidade para si próprio - que seria a fonte desse comentário sobre Fellini: "Seus filmes são o sonho de um garoto da cidade pequena sobre a cidade grande. Sua sofisticação funciona, porque é a criação de alguém que não a possui. Mas ele apresenta sinais perigosos de ser um artista superlativo que tem pouco a dizer."

Da costa adriática - muito povoada no verão, desolada no inverno, e fonte de muitas cenas cruciais - Fellini desenvolveu talentos diversos: como cartunista, o homem de gags para comediantes e um escritor para rádio. Há uma famosa fotografia, dele recém-chegado a Roma em 1940, já um vitellone, rosto afilado, mas pele macia, em uma pose  indolente de preocupação consigo, porém astutamente alerta à câmera. E é um rosto muito inteligente e sensível, que espera por alguma atitude a habitá-lo. Sentado em um café, olha sobre o local de devorar uma maior oportunidade; é a face de um jovem de Stendhal pronto a receber as Ordens Sagradas, uma missão militar, ou um amigo da esposa que lhe serviria como pretexto a escapar da inércia. 

Passou a escrever para o cinema, assim como o rádio. Em 1943 casou-se com a atriz Giuletta Masina e, com a Libertação, passou a receber créditos: Avanti c´è Posto [Na Frente Há Lugar] (42, Mario Bonnard); Apparizione (43, Jean de Limur); e Tutta la Città Canta (45, Ricardo Fredda)*. Seu verdadeiro padrinho foi Roberto Rossellini: Felllini trabalhou nos roteiros de Roma, Città Aperta [Roma: Cidade Aberta] (45), Paisà (46) e "Il Miracolo" [O Milagre], episódio de L'amore [O Amor], no qual também interpreta o papel do vagabundo que seduz Anna Magnani. Também trabalhou nos roteiros de Il Delitto di Giovanni Episcopo [Delito] (47, Alberto Lattuada)**; Senza Pietà [Sem Piedade] (48, Lattuada); In Nome della Legge [Em Nome da Lei] (49, Pietro Germi); Il Mulino del Pò [ O Moinho do Pó] (49, Lattuada); e Francesco, Giullare del Dio [Francisco, Arauto de Deus] (50, Rossellini).

A primeira direção independente de Fellini, Abismo de um Sonho foi uma obra cômica, mas sinistra, flagelando o mundo da escrita que gerou o próprio Fellini. Pierre Leprohon comparou a revelação salvadora de Mesina (como uma prostituta), ao final do filme, com o modo como a prostituta modifica o Monsieur Verdoux, de Chaplin. Em retrospecto, portanto, Abismo de um Sonho parece uma clara promessa de autobiografia. Mas Fellini se moveu para fases mais convencionais e menos interessantes de sua vida. Os Boas Vidas é uma boa observação social, uma história em estilo bastante convencional, sobre um personagem vagabundo, próximo do coração de Fellini. A Estrada da Vida é um filme desesperadamente portentoso, laboriosamente desenhando uma mensagem humanista banal, a partir de um bruto de circo que encorajou Anthony Quinn a pensar que havia um esplendor na atuação over. A Trapaça foi outro conto de Maupassant, no qual Broderick Crawford e Richard Basehart, fingindo-se de padres, para melhorarem suas carreiras de confiantes trapaceiros. Cabíria é uma lamentavelmente sincera história sobre uma mulher amarga com coração de ouro, que parece alheia à sua própria grosseria ou a hilaridade da coragem com que Masina engole suas lágrimas. São histórias mecânicas e habilidosas, alimentadas de sentimentos superficiais e acríticas da sentimentalidade ou de grandes efeitos. Quanto ao estilo ou inteligência criativa, não se comparam com as conquistas de La Signora Senza Camelie [A Dama Sem Camélias], Le Amiche [As Amigas], e muito menos os filmes que Rossellini realizava à época.

Eu seus dias, A Doce Vida foi saudado como uma brilhante sátira sobre a nova permissividade autoconsciente da alta sociedade européia. Somente um espectador fácil poderia ficar mais angustiado por seu lento desânimo que pela alienação metafísica de L'Avventura [A Aventura]. E é uma imteligência volúvel que pode encontrar qualquer gravidade na sentimental cena final na praia, com o observador central - Marcello Mastroianni - consolando seu preguiçoso espírito com a tolerância enigmática  de uma criança sorridente. Mas o filme foi um sucesso escandaloso e transformou Fellini em uma estrela auto-suficiente, com que brincava sempre.

Sitiado por entrevistadores e pela atenção crítica, o rapaz provinciano, tornou-se mais sábio. Sua real superficialidade intelectual foi vendida como o dilema de um homem generoso em um mundo em desintegração. Com grande habilidade, Fellini persuadiu muitos espectadores que sua lida com freaks, degenerados do submundo e uma multidão de tagarelices infantis era tanto satírica quanto caridosa. Em 8 1/2 inventou um diretor, que era uma representação dele próprio e chamou o talento vazio do homem a marca da filosofia. E é por essa época que introduziu a metáfora do circo, como uma forma de encobrir as fissuras artísticas: 

           O cinema se assemelha bastante ao circo; e, de fato, se não existisse teria me tornado um diretor            de circo. O circo, também, é uma mescla precisa de técnica, precisão e improvisação. Enquanto              se ensaia o espetáculo, você ainda está tendo riscos: que é, simultaneamente, o de se encontrar                vivo. Amo essa forma de criar e de viver, sem os limites impostos a um escritor ou um pintor,                 por se encontrar mergulhado na ação.

É uma definição ou desculpa intrigante, mas Godard ou Warhol são melhores demonstrações de buscas disso que Fellini. A confusão deliberada de documentário e ficção é cansativa em Fellini - em grande parte porque ele nunca provou a si próprio da forma que todos os diretores precisam - através do estilo e do uso do cinema como linguagem. De fato, o estilo de Fellini é bastante escasso e pouco desenvolvido. Raramente ele fez mais que organizar elaborados tableaux grotescos para a câmera ou escutar uma fala ociosa de seus personagens. O ponto de vista preciso, que é essencial para os filmes, é uma demanda demasiada para suas generalizações com o teatro ao centro. Fascinado pela feiúra e tipos grotescos, ele se expressa sem graça no cinema.

Desconfio do invólucro um tanto bajulador de Fellini:A Director's Notebook, quando o diretor afirma: "Sim, sei que pode parecer perverso, cruel, mas não, sou bastante orgulhoso de todos estes personagens que sempre me perseguem, seguindo de um filme para o outro. São todos um pouco loucos, sei disso. Dizem que precisam de mim, mas a verdade é que preciso mais deles. Suas qualidades humanas são ricas, cômicas e, algumas vezes, bastante comoventes." A defesa é conciliatória; mas não existem personagens na obra de Fellini, somente caricaturas. E por tudo o que há de autobiografia, não sabemos mais de Fellini de que era um obsessivo e vazio poseur. E não é uma resposta artística para a avaria dos encantamentos, pelos desfiles de infelicidades  chamá-las de "ricas, cômicas e, algumas vezes, bastante comoventes." Fellini me parece algo mal cozinhado, teatro pessimista, com nenhuma capacidade para a tragédia. Ele nos faz Welles parecer um gigante e um romântico maravilhosamente capaz de criar tragédia, sem ser depressivo. Welles mantém a ordem, enquanto Fellini está a rabiscar no caos.

O Fellini dos últimos quinze anos não fez nada que mudasse minha opinião. E La Nave Va e Ginger e Fred  foram particularmente decepcionantes. Em anos recentes, A Doce Vida tem tido relançamentos, e me pareceu bastante datado. Fellini possui sua moda, é verdade, e foi uma figura central a trazer filmes estrangeiros para a Inglaterra e os Estados Unidos. Mas, me pergunto, quantos admiradores fervorosos possui hoje?

Texto: Thomson, David. The New Biographical Dictionary of Cinema. Nova York: Alfred A. Knopf, 2014, pp. 862-67. 




*N. do E.: No IMDB não consta Fellini como co-roteirista dessa produção

** N. do E.: Idem


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