Filme do Dia: The Trouble with Nature (2020), Illum Jacobi

 


The Trouble with Nature (Dinamarca, 2020). Direção Illum Jacobi. Rot. Original Illum Jacobi & Hans Frederik Jacobsen. Fotografia Frederik Jacobi. Música Danny Bensi & Saunder Jurriaans. Montagem Alexandra Strauss. Dir. de arte Sara Sachs & Christoph Beyer. Figurinos Sara Sachs. Com Anthony Langdon, Nathalia Acevedo, Urik Wivel, Andrew Jeffers, Ian Burns, Pascal Allano, Gilbert Ravanel

O já bastante reconhecido e economicamente falido filósofo Edmund Burke (Langdon) decide viajar de Londres aos Alpes, para reescrever o seu tratado estético sobre o sublime,  conceito criado por ele. Ele vai acompanhado da criada de seu irmão, Awak (Acevedo).

É de uma perspectiva romântica que se constrói, de forma nada sutil mas tampouco excessiva, a contraposição entre o racional Burke e a instintiva Awake. E não há dúvidas sobre quem o filme se detém empaticamente: Burke é resmungão, desajeitado, afetado, mimado, irascível e prepotente, além de odiar com todo o seu ser quase tudo que encontra na viagem, ou ao menos assim expressá-lo; já Awake é contida, possui uma relação tranquila com seus próprios instintos (que Burke nega imediatamente, por exemplo,  após ter aparentemente chegado ao gozo com a criada) e também com o universo natural que os circundam (possui uma forte relação com a água e a higiene, do qual não vemos Burke ter grande contato, veste-se apenas com um fino véu que deixa visível seus seios e em uma cena emblemática ela parece mesmo se comunicar com um cervo que se encontra próximo, transe esse que é rompido por um indiferente Burke). Há elementos psicologizantes há subsidiar uma postura quase infantil do filósofo, que dorme em posição fetal e com o dedo na boca encoberto por panos para que não fique visível seu hábito, que são o seu preterimento no amor maternal, que ele próprio comenta com Awake. O filme, no entanto, consegue apresentar tais elementos, todos de certa forma conformes ao imaginário de sua (do filme) época no que diz respeito as ideias, a figura feminina em relação à masculina, etc. sem cair em proselitismos. O que não deixa de ser uma dádiva. Por um lado o filme extrai humor de observar um erudito repleto de pensamentos abstratos tendo que se ver com formigas em seu sapatos, urinando (e tendo seu membro parcialmente exposto), ou soltando gases e tendo uma crise intestinal, após se desvencilhar de Awake, numa cena que já se imaginara algo semelhante desde o momento da urina,   trazendo uma fisicalidade que se impõe a ele não menos (talvez até mais) que aos outros. Por outo  é digno de nota que o próprio Burke admita sua fome de experienciar coisas novas, como quando relata ter ficado sabendo de cogumelos alucinógenos na região, que conseguiriam fazer com quem os consumisse transcendesse o mundo visível e entrasse no plano espiritual, e que faria uso dos mesmos se tivesse oportunidade. E terá. Por outro lado nunca esquece dos rituais que o fazem ser quem ele é, ou pensa ser, marca de distinção,  sendo empoado pela criada todas as manhãs, seja em que local ou condição estiverem. E, mesmo quando já um tanto alterado, vaga pelo deserto de neve alpino, e agora sozinho, ainda lembra dos comandos que dirigia a Wake.  E um segundo momento que o membro viril é parcialmente exposto na imagem também possui seu significado. É um instante raro no qual ele parece muito efemeramente afastado da relação senhor e escravo, e até indaga onde Awake dormiu. A criada, em uma saída provavelmente sábia, não embarca em seu jogo, e mantém o distanciamento. O filme parece render seu tributo ao Kubrick de Barry Lyndon, seja na escolha do tema musical de seus momentos iniciais e finais que bem poderia ser parte daquele (o segundo movimento da Sinfonia N.7 em A Maior), seja no uso de uma iluminação  bastante próxima (ao menos enquanto efeito) da “natural” conseguida por esse ou, de forma mais ampla, na luta hercúlea entre razão e instintos não completamente submersos que segundo alguns (Kubrick por Kubrick) seriam o elemento comum de toda a filmografia do realizador. Esse embate tem seu momento mais  intenso na epifania vivida por Burke no alto dos Alpes, mas que renegaria ou não a viveria de forma consciente, pois diz dela nada se lembrar. Ou ainda quando luta contra o desejo de fazer sexo com Awake, preferindo um ritual solitário equivalente ao coito. E o final pretende menos desfazer algo do pouco que sua narrativa apresentou que uma solução estética de se emular um quadro de Caspar David Friedrich, assim com a beleza destruindo não apenas os fundamentos de sua fé irrestrita na razão  por parte do filósofo como, aparentemente, sua própria sanidade. Interessante filme de estréia de Jacobi, que nem curtas havia dirigido antes.| Adomeit Film/La Fabrica Nocturna Cinéma. 92 minutos.

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