Filme do Dia: A Doce Vida (1960), Federico Fellini

 


A Doce Vida (La Dolce Vita, Itália/França, 1960). Direção: Federico Fellini. Rot. Original: Federico Fellini, Ennio Flaiano, Tulio Pinelli & Brunello Rondi, a partir do argumento de Fellini, Flaiano e Pinelli. Fotografia: Otello Martelli. Música: Nino Rota. Montagem: Leo Cattozzo. Dir. de arte e Figurinos: Piero Gherardi. Com: Marcello Mastroianni, Anita Ekberg, Anouk Aimée, Yvonne Forneaux, Walter Santesso, Magali Noël, Alain Cuny, Annibale Ninchi, Lex Barker, Nadia Gray, Nico, Riccardo Garrone.

Marcello (Mastroianni) é um jornalista que frequenta o círculo social de celebridades e socialites em Roma. Ele se encontra envolvido, numa relação tempestuosa com a emocionalmente instável Emma (Forneaux), embora não deixe de flertar e ter relações fugazes com figuras como a rica Maddalena (Aimée), que se diz apaixonada por ele, mas logo se entrega aos braços de outro homem (Barker) ou a estrela de cinema Sylvia (Ekberg). Tendo como um de seus amigos mais próximos, o ávido fotógrafo Paparazzo (Santesso), que nunca dispensa a possibilidade de fotos  envolvendo dramas e escândalos, nem mesmo quando Marcello se encontra direta ou indiretamente envolvido. Ele encontra refúgio na figura de Steiner, amigo intelectualizado que não compartilha do habitual frisson das noites do jornalista. Certa noite, Marcello fica sabendo que seu pai (Ninchi) veio visitá-lo. De início, ele não acredita, pois o pai sempre fora uma figura distante. O pai pede para ir a um cabaré ao estilo e Marcello chama Paparazzo para se juntar a eles. Lá, Marcello encontra uma moça que já fora uma de suas amantes ocasionais, Fanny (Noël) e por quem o pai se interessa. Porém,ele passa mal quando se encontra a sós com Fanny e Marcello é chamado às pressas. O pai, algo constrangido, prefere partir para a estação ferroviária e voltar para sua cidade. Marcello se encontra em uma de suas típicas noitadas quando fica sabendo da tragédia de Steiner que matou-se após ter tirado a vida de seus dois filhos. Numa festa na casa do amigo Riccardo (Garrone) Marcello, bastante mordaz com todos, anuncia que abandonará o jornalismo e se tornará publicitário.

Marco incontestável tanto do cinema moderno quanto de uma representação da Itália de uma sociedade afluente e representativa do Milagre Econômico recente, o filme de Fellini ao mesmo tempo parece não ter envelhecido tão bem quanto outras produções contemporâneas, notadamente O Eclipse (1963), de Antonioni, talvez retrospectivamente mais significativo senão da Itália do Milagre – por mais que essa seja apresentada aqui de forma talvez demasiado rasa – do que do cinema moderno. E talvez igualmente menos interessante que produções menos pretensiosas do realizador, tais como Noites de Cabíria. Existem sequencias memoráveis como a da imagem de Cristo sendo levada de helicóptero ao início ou do banho de Ekberg  seguida por Mastroianni na Fontana de Trevi (revivido em Entrevista), mas também uma tendência a uma crescente autocondescendência do realizador para com o que acabaria se transformando em adjetivo, imagens “fellinianas”, como que decalcadas do arguto olhar do realizador para tipos extremamente gráficos e crescentes extravagâncias visuais e como que espelhando o próprio universo de celebridades retratado – outro adjetivo, paparazzi é decorrente de um personagem do filme. O fantasma da perda de certezas que davam mais amplo sentido à existência, associadas sobretudo a religião, assombra o filme do início ao final, evocado menos pela própria contaminação dessa pelo mundo crescentemente midiático da imagem inicial que de Steiner, amigo existencialista de Marcello a executar acordes da Tocata e Fuga em Ré Menor no órgão de uma igreja para um acanhado e incomodado Marcello que, a certo momento, afirma que a residência de Steiner é o seu refúgio do mundo oco ao qual vive. Porém se o filme aparenta aqui separar uma cultura espiritual e erudita dos valores mundanos cercados pelos ávidos paparazzi, os tipos que se encontram na festa de Steiner não parecem tão distantes assim daqueles. E o medo e vazio desse parece tão ou mais avassalador que o de próprio Marcello, como demonstra os crimes seguidos do suicídio, selando de vez uma compreensão de mundo brutalizada – e talvez o fato de Marcello se encontrar em meio a essa o torne mais imune a saídas mais radicais ou, dependendo da perspectiva, mais cínica e/ou conformista.  A representação diante da mídia ganha talvez uma pujança rara ao ser explorada com ironia e comicidade, cobrindo desde a entrevista da estrela, repleta de perguntas disparatadas até a família que vive no subúrbio pobre de Roma que afirma ter visto a virgem, sendo no local  construído um verdadeiro circo midiático. Existem várias referências ao universo do cinema, do Neorrealismo à Nouvelle Vague, passando por Marlon Brando, Paul Newman e Marilyn Monroe. Pasolini, embora não creditado, colaborou com o roteiro. Sua soberba fotografia em p&b, maltratada por essa cópia de péssima qualidade de telecinagem, talvez nunca surja mais evidente que no momento em que Marcello se encontra em um humilde restaurante e conhece uma jovem recém-chegada de Perugia que nele trabalha. Ela, que parece trazer-lhe um breve sopro de esperança também é uma figura associada ao universo religioso – ele lhe destaca o “rosto angelical” quando ela põe sua face de perfil. Desnecessário afirmar que a trilha de Rota é a quintessência da atmosfera felliniana.  Não deixa de ser irônica a mudança que Marcello anuncia ao final, pois não parece em nada enfatizar uma guinada radical em sua trajetória profissional, no sentido de uma edificação moral como seria o caso de uma narrativa clássica convencional. Meio século após Sorrentino fez seu tributo a esse filme e leitura de semelhante sociedade romana em seu A Grande Beleza.  Destaque para a ponta de Nico, como ela própria, que alguns anos após se tornaria figura recorrente entre o grupo próximo de Andy Warhol. Riama Film/Gray-Film/Pathé Consortium Cinéma para Cineriz. 174 minutos.

 

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