O Dicionário Biográfico de Cinema#11: Jean-Luc Godard

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Jean-Luc Godard
n. Paris, 1930

1954: Opération Béton (r). 1955: Une Femme Coquette (r); 1957: Tous les Garçons S'appalent Patrick (r). 1958: Charlotte et Son Jules (r); 1958: Une Histoire d'Eau (co-dirigido com François Truffaut) (r). 1959: A Bout de Souffle [Acossado]. 1960: Le Petit Soldat [O Pequeno Soldado]. 1961; Une Femme est une Femme [Uma Mulher é uma Mulher]; "La Paresse", um episódio de Les Sept Péchéx Capitaux [Os Sete Pecados Capitais]. 1962: Vivre sa Vie [Viver à Vida]; "Le Noveau Monde", episódio para RogoPag. 1963: Les Carabiniers [Tempo de Guerra]; Le Mépris [O Desprezo]; "Le Grand Escroq", um episódio para Les Plus Belles Escroqueries du Monde [Os Maiores Vigaristas do Mundo]; "Montparnasse-Levallois", um episódio para Paris Vu Par [Paris Visto por]. 1964: Bande à Part; Une Femme Mariée [Uma Mulher Casada]. 1965: Alphaville; Pierrot le Fou [O Demônio das Onze Horas]. 1966: Masculin/Féminin [Masculino/Feminino]; Made in USA; Deux ou Trois Choses Que Je Sais d'Elle [Duas ou Três Coisas Que Sei Dela. 1967: La Chinoise [A Chinesa]; Loin du Vietnan [Longe do Vietnã] (co-dirigido com Joris Ivens, William Klein, Alain Resnais e Claude Lelouch); Week End [Week-End à Francesa]; "Anticipation ou l'An 2000", um episódio de Le Plus Vieux Métier du Monde [O Amor Através dos Séculos]; "L'Enfant Prodigue", um episódio de Amore e Rabbia [Amor e Raiva]. 1968: Le Gai Savoir [A Gaia Ciência]; Un Filme comme les Autres (co-dirigido com Jean-Pierre Gorin); One Plus One [Sympathy for the Devil]; One American Movie (incompleto); 1969: Communications [incompleto]; British Sounds [Sons Britânicos] (co-dirigido com Gorin); Vent d'Est [Vento do Leste] (co-dirigido com Gorin); Lotte in Italia [As Lutas Ideológicas na Itália] (co-dirigido com Gorin); 1970: Jusqu'à la Victoire; 1971: Vladimir et Rosa [Vladimir e Rosa] (co-dirigido com Gorin); 1972: Tout va Bien [Tudo Vai Bem] (co-dirigido com Gorin); Letter to Jane: Investigation of a Still [Carta para Jane] (co-dirigido com Gorin). 1975: Numéro Deux; Comme Ça Va. 1980: Sauve Oui Peut [Salve-se Quem Puder (A Vida)]. 1982: Passion [Paixão]; 1983: Prenom Carmen [Carmen de Godard]. 1984: um episódio para Paris Vu Par...20 Ans Aprés. 1985: Detective [Detetive]; Je Vous Salue, Marie. 1986: Grandeur et Décadence d'un Petit Commerce de Cinéma (d). 1987: King Lear; "Armide", episódio de Aria [Ária]; Soigne ta Droite [Atenção à Direita] (d); Meeting WA (d); Duras/Godard (d). 1989: Histoire(s) du Cinéma (d). 1990: Nouvelle Vague. 1991: Allemagne Neuf-Zero [Alemanha Nove Zero]. 1993: Hélas pour Moir [Infelizmente para Mim]; Les Enfants Jouent à la Russie. 1995: JLG/JLG - Autoportraite de Décembre; Deux Fois Cinquante Ans de Cinéma Français (d). 1996: For Ever Mozart [Para Sempre Mozart]. 1998: The Old Place; Histoire(s) du Cinéma: Une Vague Nouvelle; Seul le Cinéma; Les Signes Parmi Nous; Le Contrôle de l'Univers; Le Monnaie de l'Absolu; Fatale Beauté (d). 2000: L'Origine du XXième Siècle [A Origem do Século XXI]. 2001: Elogie de l'Amour [Elogio ao Amor]. 2002: "Dans le Noir du Temps", episódio de Ten Minutes Older: The Cello. 2004: Notre Musique [Nossa Música]; Moments Choisis. 2006: Vrai Faux Passeport; Prièren pour Refuzniks 1 e 2. 2010: Socialism [Filme Socialismo].

Impossível evitar um tratamento godardiano de Godard, aqui numa exposição em sete parágrafos (com uma conclusão aberta à atualizações).

1. Godard foi o primeiro realizador a se debruçar no esforço de digerir todo o cinema prévio e fazer do próprio cinema seu tema. Ele emergiu das sombras da Cinemateca, mais que de qualquer contexto biográfico plausível. Portanto, é inadequado se aceitar a definição que ele induziu Samuel Füller a dizer em O Demônio das Onze Horas*: "O filme é como um campo de batalha...Amor...Ódio...Ação, numa palavra emoção." Emblemas ou slogans em Godard são crônicos e palindrômicos. Alguém poderia alterar a definição de duas formas: "Cinema são slogans" ou "O que é emoção?...ela é cinema." Godard colecionou obras como uma Enciclopédia Cinematográfica, insistindo que todas as coisas que existem podem ser expressas em cinema. Godard, mais que qualquer outro diretor, provocou à realidade. Não é que a vida imite a arte, mas que tudo é arte, tanto ficcional quanto documental, e o que o cinema uma vez foque - na câmera ou olho - percebe-o. Cinema para Godard não é ocupação ou vocação, é a própria existência. Sua dialética inescapável é em termos de cinema e sua política emergiu - desastrosamente, penso - de sua teoria do cinema. Foi somente quando Godard abandonou a politique des auteurs - como uma criança pode jogar fora a determinado momento seu brinquedo favorito - que se tornou um autor politizado.

2. Como Welles, está preso ao papel de Jovem Turco. Raiva (ou desprezo), seu humor mais permanente, cresce quando ele se torna consciente de sua inabilidade de abandoná-lo. Ele foi um crítico extraordinário, derrubando um dogma após o outro, nas páginas do Cahiers du Cinéma e Arts. Richard Roud disse que ele era "cruel, injusto, nada razoável", porém  parece secundário a incoerência esquizóide se misturando e penetrando em seus escritos. De fato, ele era o nobre louco, Pierrot le Fou, em que todas as ideias verdadeiramente utilizáveis foram oferecidas em escritos que foram apavorantes, banais, caóticos e gratuitamente ilegíveis. Ele veio armado com nomes extraídos da literatura e pintura. Dificilmente um filme poderia ser classificado sem uma referência a Faulkner, Proust, Auguste Renoir ou Velásquez. Em parte, foi essa busca por classificação, o desejo inviável de fazer referências cruzadas, mais que descrever a própria coisa. E essas referências são sem significado. O que é para maravilhar são os cinzas de Renoir ou Velázquez, mas para rabiscar com o especialista em arte na mesa do café algo nada diferente da linguagem publicitária parodiada em O Demônio das Onze Horas? A crítica de Godard é tão agressiva que se sente somente sua insegurança. A ânsia por um Panteão e o apelo invertido à conspiração que alimenta os outros cujos gostos suportarão os mesmos deuses é como a atmosfera de Paris Nous Appartient [Paris Nos Pertence], de Rivette. Significa que seus artigos são dirigidos a ele próprio, mais que aos leitores. O tom é austero e desagradável, como se excluir os outros do cinema fosse um ato de celebrá-lo.

3. O Godard bastante jovem adorava a cultura americana. Em violência direcionada ao cinema francês dos anos 1950, a história da arte ou o cinema intelectual, reconheceu as virtudes de cada diretor, de Griffith a Füller, com circular e contraditória confusão como se Hawks, Nicholas Ray, Minnelli ou Anthony Mann fossem os maiores diretores. Foi suficiente para que o diretor que admirasse no momento fosse o maior; a urgência de classificar tinha memória curta e um índex abandonado. A admiração vital da beleza do cinema de ação americano, e da forma que expressava o personagem, emoção e sentidos universais, dentro de gêneros rígidos e doentios sistemas de produção, levava em pouca conta a posição comercial do diretor americano, dos gêneros e da inabilidade de reverenciar diretores, para compreender seu louvor por eles. Mas em termos de trama, imagens e personagem, os primeiros filmes de Godard foram uma explicação crítica magnífica dos filmes americanos. A trágica arrogância de Pierrot le Fou reside parcialmente no senso de um cinema americano moribundo.

4. Um cinema americano diminuído em sua gravidade, e enquanto mais gente jovem redescobria suas glórias passadas, Godard se movia violentamente para fugir de tal companhia. Ele embarcou então primeiro em sua própria sociologia inventada, que aliava a exploração dos diretores de cinema com uma noção difusa de prostituição por toda a sociedade. A idéia foi expressa melhor em Viver à Vida e O Desprezo e se torna recorrente, com precisão decrescente, em Uma Mulher Casada, Alphaville e 2 Ou 3 Coisas. Essa concepção impulsionou Godard rumo a um abandono quase total da América pelo cinema marxista. Porém a nova consciência política era tão pobre de realidade quanto seu gosto por filmes americanos não possuía razões seguras. Ele somente podia fazer seus filmes revolucionários em grupos nomeados em tributo a Dziga Vertov ou Medvedkin. E de Made in Usa em diante, o imperativo político acelerou sua incoerência, substituiu ação por slogans e encontros humanos com  a troca estéril da dialética. 2 ou 3 Coisas é o filme no qual a generalização das pessoas opera melhor, equilibrada na beira de uma entorpecente obscuridade que é uma prova grotesca da alienação que Godard observa no mundo. Seus protestos, desde então, são patológicos e destituídos de humor.

5. A grandeza de Godard reside em se agarrar à idéia de que os filmes são feitos de imagens em movimento, de momentos de filmes, de imagens projetadas diante de audiências. Um crítico uma vez perguntou porque havia tanto sangue em Pierrot. Isso não é sangue, respondeu Godard, mas vermelho. Da mesma maneira, seus filmes não são histórias fotografadas, mas um registro de atores representando papéis. O foco de seus filmes é a distância entre a câmera e os atores e entre a tela e o público. Ele envolve observadores mais minuciosamente (e mais politicamente) em um filme como Bande à Part, quando descreve a ação que está apresentando, mais do que em qualquer uma das investidas diretamente didáticas. Tempo de Guerra ainda é seu filme mais político, em grande parte porque se encontra bastante estimulado por sua locação específica, os terrenos baldios urbanos. Ele conhece somente cinema: sobre política e vida real é pueril e pretensioso.

6. Segue-se que a verdadeira coisa que seus filmes não possuem é emoção. Eles lidam com momentos do cinema, e sua selva de referências, mas nunca com sentimentos. E é quando fotografa Anna Karina, sua primeira esposa, que essa ausência é melancolicamente admitida. O que torna O Demônio uma tragédia real e momentos de seus filmes anteriores com Karina elegias por um sentimento não vivenciado. A ira e o intelecto de Godard sentam-se juntos guardando seu coração frio e vazio, enlouquecido por isso. Ele é o primeiro diretor, o primeiro grande diretor, que não parece um ser humano. Foi a descoberta que amava mais Karina nas imagens em movimento que na vida  que pode ter acabado seu casamento. E a ruptura chocou seu coração casto ainda mais, em protestos vãos de preocupação com o mundo.

7. Portanto Godard prova que o cinema é não mais nem menos que cinema, essa arte possui escassa necessidade de realidade, que depende da imaginação. É o inaugurador de uma nova beleza, que é o início do cinema moderno, disforme, mas como uma bofetada. Movimentos observados, transformados por serem observados.

Godard não findou, ou atingiu a meta de Fassbinder. Nem tampouco seu trabalho recente é negligenciável: Nouvelle Vague foi bem bonito; Detetive foi mais que uma homenagem casual ao cinema noir; Rei Lear teve a virtude desajeitada de demonstrar como um filme pode ser caprichosamente contratado, e executado. Je Vous Salue, Marie foi banido e censurado - isso é, sua afirmação de fama. Porém os admiradores não podem escapar da aura extorsiva, cínica e misógina de Godard. Se ele nos ensinou o absurdo, e mesmo a iniquidade corrupta de fazer mais filmes - por que fazê-los? Eles são becos sem saída que precedem à morte, e nos apresentam uma morbidade que antes não se encontrava aparente.

Sempre que re-vejo os filmes iniciais de Godard (os dos anos 60), ainda parecem frescos, comoventes e excitantes. Porém, no momento, Godard tem um público bem diminuto. Pode ser que a intensidade de suas realizações - tanto cerebrais quanto emocionais - não possam se manter por muito tempo. Existem tantas carreiras cujo pique dura cerca de dez anos; e tão poucas nas quais os diretores voltam novamente, renovados - isso é o que faz Renoir tão notável, assim como Fritz Lang. Godard requer um senso de urgência e ocasião, um sentimento por plenitude política e cultural, que se foi hoje. Portanto, o mais duradouro humanismo de Ingmar Bergman começa a parecer maior que os furiosos ensaios de Godard. Além do que Godard foi demasiado brilhante demasiado rápido: ele viu uma nova forma de fazer cinema que ia além da generalidade dos diretores, e do público.

Porém Godard tem um interesse frenético na TV e no vídeo. Se a mídia se transforma o suficiente, isso pode trazê-lo de volta às nossas vidas. Como o dos primeiros filmes, são alguns dos inescapáveis conjuntos de obras. Eles merecem retrospectivas - se os filmes provam ser uma arte que comanda tal pesquisa retrospectiva. Haverá lugar para sessões retrospectivas? Ou é uma questão de sorte se encontrar vivo quando Godard não parar de lançar seus surpreendentes filmes?

Claro, foi natural que Godard proporcionasse sua própria retrospectiva - e varresse o meio inteiro. Histoire(s) du Cinéma é uma grande obra-catálogo, digna de Robert Musil ou Walter Benjamin - ou Chris Marker. Porém em suas belezas assombrosas, e na sugestividade de sua edição, pode-se ainda ver e sentir o Godard dos anos 60. Poranto, a(s) História(s) reafirmam, para além da dúvida, que ele é um dos grandes críticos, além de mentes poéticas, do meio.

* utilizo o título brasileiro alternando com o original, Pierrot Le Fou, a depender do contexto no qual cabe, a meu ver, melhor um ou outro.

(r) roteiro
(d) documentário

Texto: Thomson, David. A Biographical Dictionary of Film.  Londres: Knopf, pp. 3864-3885.

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