Filme do Dia: Satanás Triunfante (1917), Yakov Protazanov


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Satanás Triunfante (Satana Likuyushchiy, Rússia, 1917). Direção: Yakov Protazanov. Rot. Original: Olga Blazevich. Fotografia: Fédote Bourgasoff. Com: Ivan Mosjoukine, Nathalie Lissenko, Pavel Pavlov, Aleksandr Chabrov, Vera Orlova.
Talnoks (Mosjoukine) é um pastor inflexível em sua moral puritana. Ele vive com o casal Pavel (Pavlov) e Esfir (Lissenko), sempre os chamando a atenção para a retidão moral. Certa noite de forte chuva, chega um viajante desconhecido (Chabrov), que passa a residir com o trio enquanto aparentemente se reestabelece do joelho. Ele toca ao piano e a vida de todos transforma. Talnoks não consegue segurar seu desejo por Esfir, morrendo na Igreja. Pavel, que os havia flagrado juntos, quando trabalhava na mesma, cai do andaime e também morre. Vinte anos depois, Esfir é mãe de um renomado pianista e ótimo filho, Sandro (Mosjoukine). Certo dia Sandro encontra velhas partituras guardadas na gaveta da mãe. Dentre elas se encontra O Hino do Triufante, que a mãe pede, sem sucesso, que ele não mais execute. A partir de então, seu comportamento não mais será o mesmo, progressivamente vivendo uma vida desregrada de jogo e boêmia, na parceria do próprio demônio. Sua mãe um dia entra em uma igreja e a imagem do demônio queima, liberando-o da maldição e fazendo com que ele se case com a mulher que a mãe queria ter como nora.
Nada nos prepara – e compreenda o “nos” por aqueles que não sabem ou leram nada previamente sobre essa produção antes de assisti-la – para a súbita morte de dois de seus três personagens principais de forma um tanto abrupta, e ainda por cima parcialmente ausentes da tela (são cenas que não sobreviveram ao tempo, algumas delas surgindo como flashbacks na segunda parte), nessa deliciosa produção, umas das primeiras a trabalhar verdadeiramente com brilho, o tema tão caro a diversas cinematografias que envolve religiosidade, desejo, culpa, castração e impulsos contraditórios. Para ficarmos em um breve relance panorâmico, poderiam ser incluídas nesse grupo obras de realizadores como Sjöström, Dreyer, Bergman, Hitchcock,  Polanski, Lars Von Trier, etc. E também obras individuais de realizadores sem perfil autoral tais como O Pecado da Carne (1932), de Lewis Milestone ou a aqui destacada. A interpretação de Mosjoukine faz valer toda sua fama, vivenciando na primeira parte o soturno e turrão pastor, temeroso de tropeçar no próprio desejo, o que evidentemente fará (e que o título sem meios termos já anuncia) e na segunda seu filho, de características doce e amorosa muito distante daquele, e também rejuvenescido como um todo, já a partir da primeira imagem sua sendo acordado pela mãe na cama, porém posteriormente vivenciando uma terceira personalidade; a escolha do mesmo ator, aliás, para viver os dois papeis, foi um feliz achado a reforçar a forte ligação edipiana que os une – e nem era necessário o personagem afirmar que a única coisa que ele amava no mundo era a música e a mãe, sendo incompreendido por suas jovens fãs - , e também uma fonte de compensação para a mãe da ausência de Talnoks. A magnífica representação do demônio, que antecede muitas outras que virão (notadamente Häxam, Fausto ou O Mágico, para ficarmos apenas na década seguinte ou ainda o infelizmente desaparecido Satanás, de Murnau, realizado 3 anos após esse), com seu sorriso sorrateiramente gaiato e insinuante, é um dos maiores trunfos do filme. Se o cinema foi pródigo em apresentar situações envolvendo pessoas tocadas pela graça divina, poucos representaram tão bem os que foram tocados pela graça diabólica, de uma forma intensa, mas distante da histeria, como representado pela aproximação dos corpos em torno da música executada pelo demônio ao piano – a música como instrumento de tentação desse seria magnificamente evocada décadas após, numa representação mais realista do maligno, em O Mensageiro do Diabo- e ainda sua execução vinte anos após antecipando o que se supõe será a desgraça igualmente do filho. Embora o satanismo seja aqui observado pela chave moral da libertinagem sexual – após se deparar com o demônio que existe dentro dele, Sandro abandona a mãe e só vive em clubes noturnos; é o demônio quem retira o Pastor pai de Sandro de sua vida ilibada, assim como as mulheres aparentemente sendo menos suscetíveis ao seu encanto, não deixa de possuir um potencial anárquico em relação às convenções sociais, de uma imoralidade quase surrealista, como quando Sandro entrega todo o seu dinheiro a uma pedinte de rua, só para toma-lo e ainda chama-la de velha e feia. A figura emblemática do desejo configurada em um estranho que chega ao seio da família, que não é exatamente uma família no caso aqui em questão, evidentemente transcende em muito o universo cinematográfico, mas nele teve algumas memoráveis representações posteriores que incluem o já citado filme de Charles Laughton, Susana (1951), de Buñuel e Teorema (1968), de Pasolini. O final da segunda parte é tão abrupto e inesperado quanto o da primeira; embora não existe nenhuma menção a ausência de material original, não é impossível que tenha ocorrido. Embora o título faça jus  a primeira parte do filme, evidentemente não o faz para a segunda. Yermoliev. 87 minutos.


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