O Dicionário Biográfico de Cinema#222: Nicholas Ray




Nicholas Ray (Raymond Nicholas Kienzle) (1911-79), n. Galesville, Wisconsin 

1948: They Live by Night [Amarga Esperança]. 1949: A Woman's Secret [A Vida Íntima de uma Mulher]; Knock on Any Door [O Crime não Compensa]. 1950: In a Lonely Place [No Silêncio da Noite]; Born to be Bad [Alma sem Pudor]. 1951: On Dangerous Ground [Cinzas que Queimam]; Flying Leathernecks [Horizonte de Glórias]. 1952: The Lusty Men [Paixão de Bravo]. 1954: Johnny Guitar. 1955: Run for Cover [Fora das Grades]; Rebel Without a Cause [Juventude Transviada]. 1956: Hot Blood [Sangue Ardente]; Bigger Than Life [Delírio de Loucura]. 1957: The True Story of Jesse James [Quem Foi Jesse James]. 1958: Bitter Victory [Amargo Triunfo]; Wind Across the Everglades [Jornada Tétrica]; Party Girl [A Bela do Bas-Fond]. 1960: The Savage Innocents [Sangue Sobre a Neve]. 1961: King of Kings [Rei dos Reis]. 1963: 55 Days at Peking [55 Dias em Pequim]. 1973: We Can't Go Home Again.  1974: "The Janitor", um episódio de Dreams of Thirteen/Wet Dreams. 1980: Lightning Over Water [Um Filme para Nick] (d).

Quando Sight and Sound foi obrigada a responder ao aval francês do cinema americano, agarrou-se a Nicholas Ray como a melhor demonstração de entusiasmo deslocdo. "Ray ou Ray?" iniciava um artigo - Nicholas ou Satyajit?, sugerindo que aonde o indiano fez filmes de sua própria escolha, inspirados por sensibilidade humanitária, o americano realizou toda sorte de entretenimento que lhe foi permtida. Não é necessário menosprezar o realizador dos filmes de Apu, ou as limitadas ideias deles, para justificar a intensa emoção visual da melhor obra de Nicholas Ray.

Ray é famoso pela consideração: "Se tivesse tudo no roteiro, para que realizar um filme?", e é como uma fonte de uma profusão de epifanias cinematográficas, que me lembro dele: Mitchum atravessando uma enorme arena de rodeios vazia, à noite, em Paixão de Bravo, o vento soprando lixo ao redor dele; aquele último prato assentado lenta e ruidosamente em 55 Dias em Pequim; o pacote de caça revestido de lívido Trucolor em Johnny Guitar; a letal e assustradora operação noturna em Amargo Triunfo; o enquadramento em Cinemascope subitamente abrasivo com táxis amarelos em Delírio de Loucura. Ele permanece um caso a ser estudado da maneira como estes momentos reunidos excede os idiomas banais do cinema comercial: com o perspicaz decreto da solidão humana através do gesto, da cor e do espaço, e porque - como qualquer diretor de cinema - chega-se a sua obra movido pelo espetáculo da natureza humana que ele revelou.

Ray estudou arquitetura com Frank Lloyd Wright, e então trabalhou como ator e pesquisador itinerante de folclore americano. Estes interesses permaneceram vivos. Poucos outros diretores possuem tal senso do efeito das locações e interiores onde as pessoas vivem, ou a relação visual ou emocional entre interiores e exteriores, em cima e embaixo. Seus personagens se contraem ou expandem de acordo com o tom emocional do local nos quais se encontram. Por exemplo, considerem o transitório universo da caravana de Paixão de Bravo que Susan Hayward tenta domesticar; a corte, que une e separa Bogart e Gloria Grahame em No Silêncio da Noite; o saloon em Johnny Guitar; a delegacia de polícia, a casa dos Stark, o planetário e a mansão deserta em Juventude Transviada; e a escada em Delírio de Loucura. Não há diretor que filmou ou enquadrou interiores com a dinâmica e carregada graça de Ray, que assim implode os rígidos limites do "roteiro". Ninguém fez Cinemascope de forma tão gloriosa quanto Ray, porque parecia pôr uma mudança extra para sua sensibilidade interior.

Não é comum na América se encontrar diretores com um traquejo inato de lidar com atores. Mas no caso de Ray, esta habilidade frequentemente sacudiu material tépido e intérpretes medíocres, numa vitalidade que nunca apresentaram em outro lugar. O arriscado e especial humanismo de Ray trouxe atuações que pareciam ser penetradas e feridas pela realidade. Não se trata apenas de se fazer uso de bom elenco: Mitchum em Paixão de Bravos; Bogart em No Silêncio da Noite; Robert Ryan em Cinzas que Queimam; James Mason em Delírio de Loucura; e o admiravelmente tocante trio em Juventude: James Dean, Natalie Wood, Sal Mineo. Em Paixão de Bravo, Mitchum estava interpretando sutilmente contra sua persona cinematográfica, como um homem reflexivo e crescentemente perplexo. Igualmente, somente Na Solidão da Noite chegou aos termos com a malevolência de Bogart ou tão efetivamente viu através do conhecimento de seus filmes dos anos 40.

O ar de superioridade de Bogart era contrário ao senso de vulnerabilidade de Ray: em Delírio de Loucura é o suave James Mason que se dilacera. E  Juventude parece hoje ser o primeiro filme a capturar a inquietação revolucionária da geração jovem. Dean é menos rebelde que um sonhador, plenamente engajado na vitalidade nervosa de seu diretor. 

Quem mais teria feito Farley Granger parecer tão apelativamente vulner?ável como ele está em Amarga Esperança e quem mais se uniu a batalha com a virilidade de Joan Crawford? O quão bem a dominadora Susan Hayward é utilizada em Paixão de Bravo?E quão inventivo é o heroísmo probo de Charlton Heston em 55 Dias em Pequim, com a cena que mais lhe demandou, íntima e em termos de exposição que jamais interpretaria, onde se engasga quando conta a uma garota chinesa que seu pai morreu?

A personalidade de Ray emergiu em seu trato com as pessoas e seus ambientes. Mas ele não seria uma figura maior se não fosse também sua concepção fundamental da lenda e sociedade americanas. O que não se aplica somente ao tema de sua balada Quem Foi Jesse James, mas o reconhecimento do quanto a auto-suficiência e liberdade para tudo na vida americana fez pela alienação e violência. Toda a inventividade visual de Ray e sua simpatia por personagens sobre pressão provém de sua visão pensativa e romântica de um herói forçado a si mesmo, tocando e encontrando outras pessoas, mas nunca compreendendo ou sendo compreendido. Por vezes, esta ação é sombria e primitiva: desse modo, a inabilidade de Mitchum de se estabelecer em Paixão de Bravo e o modo que é assassinado por um gesto orgulhoso, asseguram sua independência; a realização do personagem de Bogart em No Silêncio da Noite é gerada pela frustração a criar nele uma violência homicida; a perda de Sal Mineo ao final de Juventude; a implacável desesperança da expedição ao deserto em Amargo Triunfo e a matança impotente dos vivos em benefício dos mortos. Não há mais que uma modesta esperança ao final de seus filmes: em Jornada Tétrica que os pássaros possam ser salvos, enquanto Burl Ives morre; em Juventude, que a amizade de Dean e Wood possa ser duradoura; que a recuperação de Mason em Delírio de Loucura possa salvar sua vida familiar. Mais frequentemente, amizade e amor se rompem; a morte servindo como singular vínculo entre jovens e velhos; o mundo se regenera somente após sua destruição.

O próprio caos de Ray nas duas últimas décadas de sua vida - a errância, o jogo, a ausência de trabalho, o excesso de pose existencial - tornam-no um poeta autoconsciente do desencantamento americano. Delírio de Loucura apresenta a doença crescente da boa vida. Sangue Sobre a Neve é a última pradaria, já corrompida pelo jukebox do posto comercial, que uiva sobre a neve. 

Ray parecia estar sempre sob pressão. Há uma constante tensão nervosa em seus filmes observável em seus inplacáveis movimentos de câmera, turbulenta e aflitiva montagem, a imediaticidade da ação e dissonância nas cores, a intensidade das interpretações. Sua carreira como um todo foi irregular. Mais que Sight and Sound sequer se deu conta, seus filmes transcenderam os gêneros hollywoodianos. Não somente porque muitos de seus finais foram infelizes ou resplandecentes de lúcido pessimismo. Era uma figura insegura, frequentemente doente - ou avessa a trabalhar - tanto que em Cinzas que Queimam foi auxiliado por Ida Lupino, Paixão de Bravo por Robert Parrish, 55 Dias de Pequim por Andrew Marton. Ainda que seus filmes tenham sido tão rigorosamente espetaculares quanto qualquer um dos anos 50, não foi das mais felizes sua experiência com os épicos de Bronston. Sua melhor obra é feita com poucas personagens, aonde a ação externa expressa seus incontroláveis dilemas. Isto é verdadeiro de todos seus melhores filmes: Amarga Esperança, Cinzas que Queimam, No Silêncio da Noite, Paixão de Bravo, Juventude Transviada, Delírio de Loucura e Amargo Triunfo.

Parou de trabalhar numa década que um idealista americano teria achado menos suportável. Retornou como o instigador dos estudos de cinema na New York State University. We Can't Go Home Again foi feito lá - uma pletora de imagens a ser projetada em unissíno sobre...a América alienada, Ray e o próprio cinema. Jonathan Rosenbaum chamou-o "cinema no fim de sua corda." Mas Ray sempre se colocou o mais próximo  do precipício quanto possivel. 

Com saúde deteriorada nos anos 70, apareceu com grande desenvolutra e coragem submersa em The American Friend [O Amigo Americano] (77, Wim Wenders), como um artista que se crê morto, mas "forjando" suas próprias obras - e em Hair (79, Milos Forman), como o General.

Nick Ray foi um herói para muitos, e amou a admiração dos jovens. Foi também indulgente, irresponsável, devasso, sentimental, auto-destrutivo. Em outras palavras, há advertências em sua vida para a adoração de heróis-diretores de cinema. A cuidadosa biografia de Bernard Eisenchitz estabelece as bases para esta confusão, mas ainda celebra Ray. Tomo consciência agora que Ray foi - assim como tudo o mais - um pretendente a ator e um fantasista. Estes traços não são incomuns em Hollywood. Mas o reconhecimento deles nos ajuda a compreender o belo e perigoso devaneio de seus filmes. Ray é o diretor americano no qual a grandeza é inseparável de sua recusa em crescer. O que o deixa ainda mais digno de ser estudado.

Texto: Thomson, David. The New Biographical Dictionary of Film. N. York: Alfred A. Knopf, 2014, pp. 2164-68.

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