Filme do Dia: Faça a Coisa Certa (1989), Spike Lee
Faça a Coisa Certa (Do the Right
Thing, EUA, 1989). Direção e Rot. Original Spike Lee. Fotografia Ernest R.
Dickerson. Música Bill Lee. Montagem Barry Alexander Brown. Dir. de arte Wynn
Thomas. Cenografia Steve Rosse. Figurinos Ruth E. Carter. Maquiagem Matiki
Anoff. Com Spike Lee, Danny Aiello, Ossie Davis, Ruby Dee, , John Torturro, Richard Edson,
Giancarlo Esposito, Bill Nunn, Paul Benjamin, Frankie Faison, Robin Harris,
Joie Lee, Diva Osorio, Samuel L. Jackson, Roger Guenver Smith, Rosie Perez.
Em um
bairro negro do Brooklyn, a pizzaria de
Sal (Aiello) se torna um dos vértices dos ressentimentos acumulados por uma
vida de exclusão e preconceitos, canalizados a partir da percepção de um jovem,
conhecido pela comunidade como Chatonildo (Esposito), a implicar com a galeria
da fama de ítalo-americanos da parede do estabelecimento. Trabalham para Sal,
além do filho mais velho, revoltado por se dizer vítima de humilhação dos
amigos e ter que lidar com o que chama de animais, Pino (Torturro), como seu
irmão mais jovem, Vito (Edson), com o
qual vive às turras e um negro da comunidade, Mookie (Spike Lee). Ao redor de
Mookie e na pizzaria de Sal e adjacências circulam figuras tão díspares quanto
o Prefeito (Davis), idoso observado com condescendência ou rejeição pelos moradores,
a Mãe-Irmã (Davis), sonho de consumo do Prefeito, mas que possui sua própria
altivez, também de idade avançada, O Grandão (Nunn), sempre acompanhado de seu
potente som a toda altura, Sorriso (Smith), com traços de paralisia cerebral,
que fica sempre abordando as pessoas com cartões de figuras mitológicas negras,
Jade (Joie Lee), irmã mais nova de Mookie, mas que o diz sustentar, a hispânica
Tina (Perez), com que Mookie possui um filho pequeno, Mr. Love Daddy (Jackson),
dj de uma rádio que somente toca as grandes referências da música negra, e um
trio de amigos que tenta fugir do calor, enquanto fofocam sobre o que observam
ao redor.
Inicia com
um espetáculo de dança e atividade física ao mesmo tempo de Diva Osorio, já nos
créditos iniciais. E aos poucos irá apresentando o ambiente dos personagens no
Brooklyn, sua comunidade negra, mas também a pizzaria italiana, onde pai e
filhos são vozes discordantes em relação a mesma. E o estilo visual é tão
chamativo quanto a forma das personagens se apresentarem. Recheado de cores
quentes, ângulos radicais de câmera baixa ou alta, utilização esperta de lentes
olho de peixe e uma sequência de planos e contraplanos a jato na pizzaria do
Sal que pode até passar desapercebida em uma primeira visada. E que o áudio
complementa, com músicas de grande potência sonora. Tudo igualmente para
ilustrar um verão rigoroso, chegando a 38 graus. E o senso casual de
comunidade, em suas relações micro, talvez nunca tenha sido tão bem explorado
pelo realizador, antes ou depois. Possivelmente as demandas de ser o realizador
negro mais visado estadunidense o castraram de ir mais longe com o
aparentemente despretensiosa e localizada, mas nunca tão universalizada,
construção de relações sociais trespassadas por amor e ódio, como carrega o rapaz
dado a poucas simpatias e a levar igualmente um pesadíssimo sistema de som
portátil, que faz questão de calibrar no volume mais alto – o adereço nas mãos
remete tanto a tatuagem do pastor no clássico e único O Mensageiro do Diabo,
enquanto referência bíblica, quanto, no plano extra diegético, a própria figura
pública de Lee, em visadas aparições públicas, como quando foi presidente do
júri do Festival de Cannes. A quebra da quarta parede, um dia já utilizada para
demarcar a questão da representatividade localizada dos negros pela mídia, em
assuntos pontuais como a criminalidade ou edificantes (tal como observado em Diasde Fogo, a seu modo já uma leitura engajada do uso mais célebre do recurso,
em Acossado) explicita os diferentes ressentimentos étnicos a povoarem
uma Nova York menos gentrificada do que viria a ser, e nesse sentido ainda mais
excludente e segmentada, do que a simbolizada com humor, e uma leveza atenta
aos sinais de brincadeira também carregados de ressentimento, como um dos três
homens maduros a chamarem de kong fu, o coreano que chegou no bairro
onde moram desde sempre e em um ano conseguiram montar um comércio. E não
deixam de reagir com uma mofa apenas moduladamente distinta a outros negros,
como o portador do barulhento som e Chatonildo a pregar um boicote a pizzaria
do Sal. E é com um didatismo que alguns acharão excessivo, que Lee descreve um
momento no qual o compartilhamento identitário era mais difuso, já que todos ou
estavam atentos a necessidade premente de sobrevivência ou simplesmente traziam
as marcas de uma familiaridade naturalizada, como é o caso da presença da
pizzaria há já duas décadas e meia e fora do ambiente ítalo-americano onde
seria apenas mais uma dentre outras, como Sal espertamente percebeu. E nessa do
motivo inicial para a reviravolta ontológica que será a pedra de toque para a
bola de neve, ou de lixo (se pegarmos a referência do Prefeito ao verão
escaldante) a ser criada, o da galeria da fama repleta de ítalo-americanos
célebres de Sinatra a Al Pacino, passando por Robert De Niro, Joe DiMaggio e
Liza Minnelli, mas destituída de qualquer referência a negros, os quase únicos
clientes do ambiente. Algumas situações e intepretações são irregulares, mas
até mesmo estas se juntam em uma expressividade de um cinema independente ainda
em busca de um reconhecimento, a ser conseguido mais plenamente justamente com
esta produção. E tem-se desde a veterana Ruby Dee às boas escolhas de
intérpretes brancos de grande destaque (Aiello, Torturro) até opções prosaicas
a funcionarem bem, como a própria irmã de Spike Lee, no papel de sua irmã ou a
praticamente interpretação única da citada Osorio e também a ponta de um ator
característico da época, John Savage. Para não falar de um Samuel Jackson quase
irreconhecível como o DJ, a determinado momento a citar um longo rol da fama de
artistas da música afro-americanos. Boa parte desta presença no elenco de
amadores a trazer espontaneidade ao filme sumiria com a gentrificação quase
inevitável da carreira do próprio realizador.
Em nenhum momento se torna tão próximo do racismo à brasileira do que
quando Vito afirma que os luminares dos esportes e do cinema negros apreciados
por este (Eddie Murphy, Prince, Magic Johnson) não serem exatamente negros, por
terem transcendido justamente os limites que ele identifica como associados a
estes. Estrategicamente, o título do filme emerge do pouco valorizado Prefeito,
em meio a um encontro corriqueiro cotidiano, replicando o espírito do filme. O
episódio que desagua na catarse/violências finais tanto acenam para a
recorrência sistemática, ao longo dos anos, do tratamento da polícia para com
os negros estadunidenses, como igualmente para a continuidade da vida, apesar
de, o evento não deixe de provocar uma quebra com o tom pianino com o qual o
filme abordava os eventos. National Film Registry em 1999. |40 Acres and a Mule
Filmworks para Universal Pictures. 120 minutos.
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