O Dicionário Biográfico de Cinema#197: Sam Shepard

 


Sam Shepard (Samuel Shepard Rogers), n. Fort Sheridan, Illinois, 1943*

Após trinta e cinco anos nas artes cênicas e ao menos metade deste tempo andou por aí fazendo cinema, Sam Shepard permanece um enigma e a América parece não ter muita paciência com mistérios não resolvidos. Ele é frequentemente ator nestes dias - foi até mesmo indicado como ator coadjuvante por seu Chuck Yeager em The Right Stuff [Os Eleitos] (83, Philip Kaufman). No entanto, ele parece impedido pela noção que não é tão viril quanto finge em público. Como Yeager, apenas serviu na idealização de uma figura esguia e lacônica de Gary Cooper. Mas Shepard parecia impermeável à profundidade ou nudez, e seu cowboy Mach 1 não foi tão rico ou intrigante quanto o mais alegre, cheio de energia e comercialmente compromissado Yeager, um diabinho sorridente que olha por cima do ombro de Shepard a determinado momento do filme.

Então, uma vez mais, quando sua peça Fool for Love teve sua estreia mundial no Magic Theatre, em 1984, com Ed Harris e Kathy Bates, a direção de Shepard foi tão visual e dinâmica, que parecia sinalizar seu desejo de realizar filmes. Como dramaturgo, mais que tudo, criou uma visão da violência pobre, rural e familiar que cheirava a cinema e certamente influenciou muitos realizadores, ainda que poucas de suas peças chegaram às telas. Porém, em 1985, Shepard escreveu o roteiro e contribuiu com uma aparência taciturna e desamparada para o lamentável filme de Robert Altman de Fool for Love [Louco de Amor], que as memórias da noite no Magic foram eclipsadas. Quando Shepard afinal dirigiu um filme - Far North [A Casa de Kate é um Caso], também escrito por ele - parecia que muito de sua excitação já havia sido drenada.

Uma parte não pequena deste mistério é a relação de Shepard com Jessica Lange. Viveram juntos, frequentemente na Virgínia, com crianças e cavalos. Vanity Fair publicou uma foto do casal, glamurosa o suficiente para inspirar imitações, cenários e publicidade. Mas a relação tem permanecido privada: onde tenham trabalhado juntos, há um ar de convalescença, de se ir com suavidade, como se um deles estivesse doente e outro trabalhasse como enfermeiro/a - Frances (82, Graeme Clifford), onde Shepard é um leal apoiador; Country [Minha Terra, Minha Vida (84, Richard Pearce), no qual a vida rural é muito mais limpa que, digamos, Buried Child ou Crime of the Starving Glass (**); Crimes of the Heart [Crimes do Coração] (86, Bruce Beresford); e A Casa de Kate é um Caso, Estou sozinho na esperança numa grande briga sangrenta entre os dois - por algo como Loucos de Amor, talvez?

Há outras coisas a mencionar: Shepard ajudou a escrever Me and My Brother (68, Robert Frank) e Zabriskie Point (70, Michelangelo Antonioni); atuou em Renaldo e Clara (78, Bob Dylan), após ter participado da Rolling Thunder Revue (***) de Dylan. Foi o homem rico em Days of Heaven [Cinzas no Paraíso] (78, Terrence Malick), primeiro filme que percebeu seu valor icônico, e que nunca pediu mais nada. Também esteve em Ressurection [Ressurreição] (80, Daniel Petrie); Raggedy Man [O Maltrapilho] (81, Jack Fisk); Baby Boom [Presente de Grego] (87, Charles Shyer), vendendo a sua e intratável herança e, ao mesmo tempo, testemunha do encanto de Diane Keaton; Steel Magnolias [Flores de Aço] (89, Herbert Ross); Defenseless [Sem Defesa] (91, Martin Campbell); Bright Angel [Estranhos Encontros] (90, Michael Fiel (ds); e The Pelican Brief [O Dossiê Pelicano] (93, Alan J. Pakula. Dirigiu Silent Tongue [O Espírito do Silêncio].

Tenho três outras coisas a dizer: (1) seu roteiro para Paris, Texas (84, Wim Wenders) pode ter sido floreado, requentado, improvisado, mas sua contribuição ao filme chega próximo da separação poética da família em suas melhores peças; (2) atua verdadeiramente em Homo Faber [O Viajante] (91, Volker Schlöndorff), esta notável parábola de coincidência e incesto, sobre uma família posta junta novamente; e (3), seu livro de esboços, vistas e ânimos da estrada, Motel Chronicles, é um destes livros que as pessoas do cinema aparentemente deveriam ler. Sua influência na emergência dos road movies, solidão e a selvageria fatídica é enorme. 

Penso que é penoso que Shepard tenha atuado com tanta frequência posteriormente (sem que ninguém tenha percebido quão pouco ele trouxe à festa). Parecia ter se distraído do teatro. Mesmo quando escreve uma peça - The Late Henry Moss - sua mente parecia estar vagando. Mas há, em vista, outra colaboração com Wim Wenders - em America (02). Enquanto isso, foi uma presença bastante sombria em Dossiê Pelicano (93, Alan J. Pakula); Safe Passage [Unidos pela Esperança] (94, Robert Allan Ackerman); The Good Old Man Boys [Os Bons e Velhos Companheiros] (95, Tommy Lee Jones); como Pea-Eye Parker em Streets of Laredo [Laredo: O Último Desafio]; Lily Dale [Lily Dale - Conflito do Coração]; The Only Thrill [Amores e Desencontros] (97, Masterson); Purgatory [O Purgatório] (99, Uli Edel); com Judy Davis em Dash and Lily (99, Kathy Bates); Curtain Call [Adoráveis Fantasmas]; Snow Falling on Cedars [Neve Sobre os Cedros] (99, Scott Hicks); o espectro em Hamlet [Hamlet - Vingança e Tragédia] (00, Michael Almereyda); All the Pretty Horses [Espírito Selvagem] (00, Billy Bob Thornton); The Pledge [A Promessa] (01, Sean Penn); After the Harvest (01, Jeremy Podeswa); Swordfish (01, Dominic Sena); Shot in the Heart (01, Agnieszka Holland); o comandante cada vez mais consternado em Black Hawk Down (01, Ridley Scott); Leo (02, Mehdi Norowzian); Blind Horizon [O Assassino do Presidente] (03, Michael Haussman); The Notebook [Diário de uma Paixão] (04, Nick Cassavetes); atuando e co-roteirizando em Don't Come Knockin' [Estrela Solitária] (04, Wenders).

Somos gratos que ainda escreva peças e contos parecendo não faze-lo sozinho: Bandidas (05, Joachim Rønning e Espen Sandberg); Stealth [Ameaça Invisível] (05, Rob Cohen); Walker Payne (06, Matt Williams);  narrando Charlotte's Web [A Menina e o Porquinho] (06, Gary Winicki); celebrando um cavalo em Ruffian (07, Yves Simoneau); como Frank James em The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford [O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford] (08, Andrew Dominik); The Accidental Husband [Marido por Acaso] (08, Griffin Dune); Felon (08, Ric Roman Raugh); Brothers [Entre Irmãos] (09, Jim Sheridan); Fair Game [Jogo de Poder] (10, Doug Liman); Inhale [Tráfico de Órgãos] (10, Baltasar Kormakur); como Blackthorn [Os Impagáveis], também conhecido como Butch Cassidy (11, Mateo Gil); Darling Companion [Querido Companheiro] (12 Lawrence Kasdan); Safe House [Protegendo o Inimigo] (12, Daniel Espinosa); Killing Them Softly [O Homem da Máfia] (12, Dominik); excelente em Mud [Amor Bandido] (12, Jeff Nichols); Savannah (13, Anette Haywood-Carter); Out of the Furnace [Tudo por Justiça] (13, Scott Cooper); August: Ousage County [Álbum de Família] (13, John Wells).

Texto: Thomson, David. The New Biographical Dictionary of the World. N. York: Alfred A. Knopf, 2014, pp. 2440-43.

N. do E:

(*) Falecido em 2017.

(**) Duas peças de Shepard, a primeira delas adaptada ao cinema em 2016. 

(***) turnê de Dylan.

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