Filme do Dia: Crise (1946), Ingmar Bergman

 


Crise (Krisis, Suécia, 1946). Direção: Ingmar Bergman. Rot. Adaptado: Ingmar Bergman, a partir da peça de Leck Fischer. Fotografia: Gosta Röosling. Música: Erland von Koch. Montagem: Oscar Rosander.  Dir. de arte: Arne Akermark. Com: Inga Landgré, Stig Olin, Mariane Löfgren, Dagny Lind, Allan Bohlin, Ernst Eklund, Signe Wirff, Ulf Johansson.

Criada por Ingeborg (Lind), Nelly (Landgré) é uma garota querida por todos em uma vila pacata no qual a chegada diária do ônibus é praticamente a única novidade. A situação muda de figura quando Jenny, sua verdadeira mãe, desce em um desses ônibus. Nelly, motivo da paixão de Ulf (Bohlin), age de forma considerada indecorosa em um baile e sua mãe a quer levar consigo para trabalhar em uma loja de estética na cidade grande. Nelly, aproveitando ser motivo de comentários por todo o vilarejo, decide partir com Jenny, justamente no momento em que Ingeborg, diagnosticada com uma doença fatal, mais gostaria que permanecesse ao seu lado. O amante da mãe, Jack (Olin), um ator frustrado, também se sente atraído por Nelly. Após Jack seduzi-la e se suicidar, Nelly decide voltar a viver com Ingeborg na pequena cidade e se unir a Ulf.

Já a partir da tomada à distância do bucólico vilarejo onde se sucederá a história se espera que a banda sonora seja tomada por uma voz over e é o que de fato se sucede (a cargo do realizador Gustaf Molander, um dos mais reconhecidos diretores suecos de então). Sua dívida explícita para com o teatro não deixa de ser enfatizada seja pelos irônicos comentários do narrador ao final do seu prólogo, que não apenas deixa evidente o caráter de artifício do que se seguirá, como ainda o cataloga enquanto drama beirando mesmo à comédia. Ou ainda pelo desejo de Jack de ser um ator e por sua morte se dar justamente diante de um teatro, profissão que não conseguiu – assim como na própria vida – firmar-se.  Por mais que os personagens soem de um esquematismo moral algo estreito e destituído do charme que Bergman os emprestará com o tempo, enquanto verdadeiras encarnações do espírito humano (Sorrisos de uma Noite de Amor), seu talento emerge, inclusive visualmente, em cenas como a da conversa entre Jack e Jenny na estação. Ou ainda quando põe lado a lado, filha e mãe, amantes do mesmo homem, e a mãe recita tudo que Jack lhe dissera, de cor, para uma estupefata filha que havia acabado de perder a virgindade.  As máscaras faciais sublinham os sentimentos de forma talvez demasiado melodramática, assim como alguns gestos. Assim, a doce e espontânea Nelly – vivida por uma Landgré que rouba o crédito principal da verdadeira atriz principal e força maior do filme, Dagny Lind -  transforma-se em alguém com uma capa visível de dissimulação de suas emoções, quando reencontra sua mãe adotiva na cidade. E a figura de vulgaridade estampada no rosto de Jenny, com suas preocupações exclusivas com a mundanidade e a aparência tampouco soam exatamente complexas no estabelecimento proposto pelo filme da cidade como fonte de mácula  para os que vem da província, quase a esquecer as fofocas maldosas e o verdadeiro sensacionalismo que acompanha a simples postura desinibida, um tanto excessivamente para os padrões locais, de Nelly em um baile. Nesse sentido, os meios tons do encontro na estação ferroviária entre Jack e a Ingeborg de Lind soam como uma exceção. O interesse pelo rosto humano, no entanto, levado ao paroxismo em suas produções excessivamente psicológicas dos anos 70 (Face a Face, Da Vida das Marionetes) já surge aqui em vários momentos, como o que flagra a inquietação de Ingeborg, alheia em suas próprias recordações, para se dar minimamente conta do que acontece nos outros dois níveis de seu beliche no trem. E, de forma mais típica para o realizador, quando Jenny resolve se desnudar a si própria (para si e para Nelly, que a ouve) diante de um espelho. No plano moral, mesmo com todas as suas reverências às convenções do melodrama (e provavelmente a Molander, a quem chama para ser justamente o contador da história), tem-se algumas cenas que apresentam sua ousadia, que ganhará novos patamares em 1953 (com Monika e o Desejo), e aqui praticamente restrito a que Jenny conscientemente flagra Nelly com Jack e essa apresenta-se como coberta apenas pelo lençol, em uma configuração do corpo feminino mais comum a Hollywood do final da década seguinte ou idos da de 60 quando muito – Monroe no não findo Something’s Got to Give sendo exceção entre os filmes A. Que a tragédia se confunda com os risos de uma peça teatral encenada ao lado não livra seu quase final de um páthos excessivo, ou do patético. E os dez minutos que lhe sucedem não ajudam muito. É um retorno às origens, mas se pode voltar no tempo após ter se vivenciado tudo que Nelly vivenciou? Seria o comodismo de encontrar alguém que a ama, mas que sempre teve apenas como amigo, e o comodismo de Ingeborg de observar na filha adotiva o que ela própria, como Jenny, não teve na vida? E o filme volta ao início fechando em ciclo de um eterno retorno não destituído de belas imagens, proporcionadas pela magnífica fotografia granulada de Roosling, beneficiada pela restauração efetivada em 2016 de que essa cópia se beneficia; Roosling já havia fotografado o Ordet (1943), de Molander e não voltará a colaborar com o realizador. Svenskfilmindustri. 93 minutos.

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