Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#36: Nélson Pereira dos Santos

 

NÉLSON PEREIRA DOS SANTOS (Brasil, 1928*). Conhecido como o "pai" ou "papa" do Cinema Novo, o cinema novo brasileiro dos anos 1960, ainda continua firme na realização de filmes na faixa dos seus oitenta anos, mais recentemente um documentário sobre o grande e falecido compositor Antonio Carlos Jobim, A Música Segundo Tom Jobim, que foi exibido no Festival de Cannes. Nascido em São Paulo, quando criança Nelson foi levado regularmente ao cinema por seus pais, que eram verdadeiros cinéfilos. Na escola secundária se tornou interessado pelo empobrecido nordeste, e após ter contato com vários estudantes radicais, ingressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Na universidade estudou direito, mas seu crescente envolvimento com grupos teatrais e de cinema levou-o a Paris, onde tentou se matricular em uma escola de cinema. Em seu retorno ao Brasil, já havia completou seu serviço militar, e após se graduar realizou um documentário, Juventude (1950), sob os auspícios do PCB, mas a cópia se perdeu.

Em 1951, dos Santos trabalhou com Ruy Santos, em dois filmes, antes de se mudar para o Rio de Janeiro. Então, trabalhou como assistente de direção de Alex Viany em Agulha no Palheiro (1953), que é conhecido por ser o primeiro longa brasileiro a adaptar os princípios do neorrealismo italiano, tais como filmagens em locações, uso de atores não profissionais, e lidar com um tema popular e contemporâneo de uma maneira bastante simples, direta e não dramática. Dos Santos sempre defendeu o Neorrealismo e considerou o uso de seus princípios - que se opunham radicalmente ao modelo estilístico hollywoodiano iniciado pelas primeiras tentativas de uma indústria cinematográfica brasileira - um ato "político".

Ele pôs suas ideias radicais em prática com seu primeiro longa enquanto diretor, Rio 40 Graus (1955), no qual seguia a vida de cinco garotos favelados, que vendiam amendoins pelo Rio, tornando a cidade uma personagem no filme. Além de ser neorrealista em seus métodos de produção, o filme foi também prototipicamente cinemanovista ao ser financiado coletivamente por seu elenco e equipe técnica. Também sintomático do radicalismo do filme foi o fato de após sua produção ter sido concluída, em 1955, seu lançamento nacional foi postergado até março de 1956, após ter sido banido das telas do Rio por um censor local.

O segundo longa de Dos Santos, Rio Zona Norte (1957), destacava o astro da chanchada Grande Otelo como um compositor de sambas pobre, sendo outro importante precursor do Cinema Novo, mas essa segunda parte de uma pretendida trilogia sobre a vida e a cultura popular do Rio foi demasido onerosa e não muito bem recebida crítica ou comercialmente. Dos Santos também produziu O Grande Momento (1957) para Roberto Santos, e quando esse filme também falhou nas bilheterias, ele teve que esperar quatro anos antes que pudesse se recuperar financeiramente o suficiente para dirigr outro longa-metragem. Enquanto filmava um documentário no nordeste, teve a ideia de adaptar o romance Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos - literalmente traduzido como Dry Lives - mas choveu no sertão em 1961, então elenco e equipe técnica improvisaram um projeto completamente diferente, Mandacaru Vermelho, chamado de maneiras distintas de "western bossa nova" ou "Romeu e Julieta do sertão". Durante a realização desse filme Nelson conheceu Gláuber Rocha, e ao retornar ao Rio assumiu a montagem  do primeiro longa de Rocha, Barravento (finalizado em 1962). Depois disso, não foi senão após dirigir uma importante e controvertida, embora negligenciada, adaptação do "auto-proclamado"  reacionário escritor Nelson Rodrigues, Boca de Ouro, em 1962, que Nelson foi capaz de retornar ao nordeste para realizar seu filme de Vidas Secas. Vidas Secas foi um enorme sucesso de crítica, e ao longo dos anos veio a ser considerado como uma das grandes obras do realismo cinematográfico, obra-chave da primeira fase do Cinema Novo, e da vida no nordeste, e um dos melhores filmes sul-americanos jamais realizados. 

A despeito do sucesso de Vidas Secas, Nelson ainda se encontrava com pouco dinheiro. Voltou a trabalhar para o Jornal do Brasil e lá dirigiu dois curtas. Foi-lhe oferecido um emprego no Instituto de Comunicação de Massas da nova universidade de Brasília, e alguns de seus estudantes trabalharam em projetos documentais. O próximo longa de Nelson, El Justicero (1967), foi uma comédia de costumes, não sendo sucesso comercial ou de crítica. Deslocou-se então do que Randall Johnson chama de fase "sociológica" para uma "ideológica" com Fome de Amor (1968) e Um Azyllo Muito Louco (1970) (Johnson, 1987, pp. 184-5). Fome de Amor, em sua crítica reflexiva e anti-ilusionista da derrocada da esquerda intelectual brasileira, é também considerada como uma importante obra da segunda fase do Cinema Novo. Filmado parcialmente em Nova York em uma viagem para realizar documentários, esse filme evoca o cinema de arte europeu de Federico Fellini, Ingmar Bergman, Jean-Luc Godard e Michelangelo Antonioni, assim como outros, ao alternar decadência, alienação e análise. Azyllo Muito Louco, baseado no clássico conto brasileiro "O Alienista", de  Machado de Assis, continuou nesse tom, enquanto o nono e próximo longa-metragem do realizador, Como Era Gostoso o Meu Francês (1971), é um filme verdadeiramente tropicalista e brasileiro, na forma cômica pela qual desconstroi a prática do cinema etnográfico euro-americano, enquanto contradiz a história escrita e faz uso do "canibalismo" como metáfora. Como Era Gostoso foi o segundo filme de Nelson a ser incluído numa competição em Berlim, após Fome de Amor, e  também após uma bem sucedida exibição fora de competição em Cannes, o diretor realiza um contrato de co-produção com a França para seu filme seguinte, outra obra intelectual de contracinema, Quem é Beta? (1973). 

Com seu décimo primeiro longa, O Amuleto de Ogum (1974), dos Santos retornou à cultura do nordeste brasileiro, agora transportada para a cidade (Caxias), mas então com uma concepção de cultura popular, e talvez buscando um público mais amplo, especialmente pelo apoio de produção ganho da agência governamental Embrafilme, abraçando uma abordagem mais comercial e formal. Ainda que não tenha ganho um prêmio, O Amuleto de Ogum foi o terceiro filme do diretor a ser incluído na competição de Cannes (após Vidas Secas, em 1964, e O Alienista - o título do festival para Um Azyllo Muito Louco - em 1970, e venceu o Kikito de Ouro principal no Festival de Cinema de Gramado (Brasil), em 1975. Ele seguiu esses padrões em seu filme seguinte, Tenda dos Milagres (1977), baseado em um romance homônimo de Jorge Amado, ainda que o filme seja um tanto complexo, contendo um filme-dentro-do-filme sobre a vida de um fictício antropólogo brasileiro, Pedro Archanjo, realizado pelo poeta-jornalista Fausto Pena, uma pequena alteração do romance, no qual o personagem era um pesquisador acadêmico, e o narrador. Tenda dos Milagres é reflexivo do início ao final, com muitas referências ao filme que está sendo feito, incluindo a cena que Pena liga para Roberto Farias, chefe da Embrafilme na vida real, buscando financiamento para o documentário. Como em O Amuleto de Ogum, Nelson representa o poder mágico do candomblé tal como no romance, mesmo que minimizando a hipersexualidade desse. Na sequencia de Como Era Gostoso, o antropólogo darwiniano é grandemente criticado nesse filme, porém em uma moldura mais realista. Seguindo o romance, o projeto de Archanjo era revelar que o patriarca mais racista do Brasil era, ele próprio, mulato ou mestiço, e que a identidade da nação é quintessencialmente da mistura racial. 

O filme seguinte de Nelson, A Estrada da Vida (Milionário e José Rico) (1981), é uma narrativa ficcioinal que faz uso de dois populares violeiros nordestinos intrerpretando a si mesmos - foi vista por mais de um milhão de brasileiros quando de sua estreia - e a de menor agrado dos críticos. Após esse sucesso populista, o diretor retornou a um projeto que desejava realizar desde 1964, uma adaptação de Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, escrita quando o escritor se encontrava preso por suspeita de ser comunista durante a ditadura de Getúlio Vargas, entre 1936 e 1937, mas não publicado senão em 1953, ano no qual morreu. Mas dos Santos teve que esperar até o momento em que a ditadura militar, começasse a fazer água para realizar um filme contra ditaduras militares. Talvez o filme politicamente mais sofisticado do realizador, Memórias do Cárcere (1984), foi também o mais convencional em sua estrutura narrativa, no qual desejava introduzir uma diversidade de personagens - prisioneiros políticos, não apenas Ramos e também policiais da prisão, resultando em uma metragem extremamente longa, de mais de três horas de duração. O ritmo do filme permitiu a dos Santos focar nas minúcias de Ramos (Carlos Vereza) em sua escrita solitária diária, e Timothy Barnard argumenta que talvez o diretor estivesse sugerindo que os intelectuais ainda eram capazes de operar, mesmo com restrições sérias nos sucessivos regimes militares no Brasil (de forma não muito diversa de outros países sul-americanos). Estranhamente o filme, apesar de aceito no Festival de Cannes, não foi permitido competir por conta de sua extrema duração, ainda assim vencendo o prêmio FIPRESCI da crítica de cinema internacional. Também conquistou o prêmio principal Grande Coral no Festival Internacional del Nuevo Cine Latino (Havana), e teve eventualmente um público de mais de um milhão e meio de espectadores no Brasil, posteriormente tendo um lançamento comercial limitado na América do Norte.

Nelson nunca mais atingiria os louros críticos e comerciais vinculados aos seus filmes de Vidas Secas a Memórias do Cárcere, mas continuou a ser um diretor ativo em sucessivas épocas, exceto o período mais sombrio da história do cinema brasileiro, do desmantelamento da Embrafilme em 1990 até uma nova lei do audiovisual ser introduzida em 1993. Realizou outra adaptação de Amado, Jubiabá, em 1986, com fundos de uma co-produção com a França e esteve na dianteira da retomada, com A Terceira Margem do Rio (1994), baseado em contos de João Guimarães Rosa, estreando em Berlim. Também realizou um filme bastante interessante na celebração dos 100 anos do cinema, co-produzido pela Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM) e o British Film Institute, Cinema de Lágrimas. Nesse filme, um diretor de teatro maduro, Rodrigo (Raul Cortéz), auxiliado por um estudante, Yves (André Barros), visitam a UNAM para assistir velhos melodramas mexicanos e argentinos, como forma de descobrir porque sua mãe cometeu suicídio após assistir um filme não identificado, o que saberá muito depois, após assistir diversos filmes - dos quais são mostrados trechos - que pode ter sido Armiño Negro (1953), de Carlos Hugo Christensen. Através da visita a algumas aulas sobre cinema contemporâneo cubano e filmes brasileiros na UNAM, dos Santos foi capaz de proporcionar uma relação dialética entre os domínios do melodrama comercial dos anos 30 aos 50 e os movimentos políticos de esquerda do nuevo cinema latinoamericano e do Cinema Novo, uma forma elegante de deambular por seus continuados interesses pelo cinema. Nos últimos 15 anos, manteve-se primordialmente no modo documentário, e tem também recebido uma série de "prêmios pela carreira", incluindo o "Troféu Oscarito" do Festival de Cinema de Gramado (1998), um prêmio  do Festival Internacional de Cinema Latino de Los Angeles (2002), e um prêmio honorário na cerimônia do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de 2009. 

Texto: Rist, Peter H. Historical Dictionary of South American Cinema. Plymouth: Rowman & Littlefield, 2014, pp. 217-21. 

(*) N. do E: NPS faleceu em 2018. 

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