O Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#17: Uruguai

 



Uruguai. O país mais politicamente estável da América do Sul na primeira metade do século XX, e o mais próspero, o Uruguai tem sido frequentemente chamado de "Suiça da América Latina". Com exceção do período que antecedeu o golpe militar de 1973, quando o país foi um centro de cinema documental ativista, o Uruguai só muito recentemente tornou-se uma verdadeira nação produtora de cinema. Seu local no mapa cinematográfico da América do Sul foi estabelecido por sua tradição de exibir todos os tipos de filmes, para públicos receptivos; para este fim, a Cinemateca Uruguaia tem sido uma instituição chave.

Como alhures, o cinema não levou tempo a chegar ao Uruguai, com os Irmãos Lumière exibindo filmes em 1896 em Montevidéu e um comerciante local, Félix Oliver, comprando equipamento deles em 1898, antes de qualquer local sul-americano. Ele abriria o primeiro estúdio de cinema do país. Henri Corbicier, residente na Argentina e de origem francesa, produziu um importante documentário sobre a paz que sobreveio ao país em 1904. Após o Uruguai conquistar sua independência, em 1828, houve uma guerra civil e ideológica, de 1839 a 1852, entre os conservadores Blancos (Brancos) e os liberais colorados (Vermelhos). Em 1852 a escravidão foi abolida. O conflito político emergiu novamente em 1855, levando a guerra da Tríplice Aliança (Argentina, Brasil e Uruguai) contra o Paraguai. Em 1870, os dois partidos finalmente chegaram a um armistício, com os Colorados controlando a capital, Montevidéu, e a região costeira, enquanto os Blancos dominavam o interior, incluindo o setor agrícola. Imigrantes, principalmente da Espanha e da Itália, incharam a população para mais de 400 mil, pelo final da década de 1870. O Uruguai permanece o menor dos oito países "latinos" sul-americanos em termos de população (e área geográfica), atingindo 2 milhões e meio em 1960 e 3.3 milhões por volta de 2008. 

Cinejornais documentais foram produzidos pela primeira vez no Uruguai em 1908 - pela companhia Adroher - e em 1913 o pioneiro argentino Max Glücksmann iniciou o seu serviço de cinejornais nacional, posteriormente administrado por seu irmão Bernardo (que também operava uma cadeia de salas de cinema). O documentário continuou o único modo de produção cinematográfico no Uruguai até 1919, quando um filme que pode ser considerado "ficção" foi realizado: Pervanche, dirigido por Leon Ibánez e financiado por uma sociedade sem fins lucrativos. No mesmo ano, o primeiro longa-metragem uruguaio, Puños y Nobleza, sobre um importante pugilista uruguaio, dirigido por Edmundo Figari, foi parcialmente filmado no estúdio Charrúa Films. Os primeiros dois longas ficcionais uruguaios também foram filmados pela Charrúa, antes do estúdio ser fechado: Almas en la Costa (1923) e La Aventura de una Parisiense en Montevideo (1927), dirigidos por dois franceses. O quinto e último longa de ficção silencioso a ser filmado no Uruguai, El Pequeño Héroe del Arroyo del Oro (1929-33), dirigido por Carlos Alonso, foi o melhor e mais bem sucedido sucesso de bilheteria do cinema uruguaio. 

Em 1930 a seleção nacional uruguaia venceu a primeira Copa do Mundo. A equipe havia deixado sua marca em 1924, ganhando a Medalha de Ouro da competição de futebol dos Jogos Olímpicos, feito que o país notavelmente repetiu em 1928, em Atenas. Essas vitórias foram notáveis porque conquistadas pela menor nação em competição, cujos jogadores haviam viajado 10 mil milhas a Europa, por terra e mar. Significativamente, o Uruguai foi o primeiro país a integrar jogadores negros em seus esquadrões, e um em particular, José Leandro Andrade, foi membro de todas as três equipes vitoriosas. Seguindo o sucesso de 1930, numerosos filmes foram realizados para celebrá-lo, dentre eles os documentários dirigidos por Justino Zavala Muniz.

Sem estúdios e com laboratórios inadequados, o som chegou tarde ao cinema uruguaio, em 1936. O primeiro estúdio sonoro, Ciclolux produziu Dos Destinos, dirigido por Juan Etchebehere. Nos próximos dois anos, mais dois laboratórios e dois estúdios sonoros foram construídos, pavimentando o caminho para a indústria cinematográfica no Uruguai. Porém, não aconteceu. Apenas 13 longas foram realizados entre 1936 e 1952, três deles, completamente musicais, em 1938. O país teve que esperar até o final da Segunda Guerra Mundial -na qual o Uruguai foi marginalmente envolvido após a Batalha do Rio da Prata (1939), quando um acordo entre investidores argentinos e uruguaios permitiu que os Estúdios Orión fossem construídos. Quatro filmes foram produzidos em um período de três anos, incluindo uma versão de Los Tres Mosqueteros (1946), dirigido pelo argentino Julio Saraceni. Seis longas mais foram realizados no Uruguai entre 1949 e 1952, incluindo comédias como, por exemplo, Detective a Contramano (1949), protagonizada pelo astro do rádio Juan Carlos Mareco (Pinocho), mas o modo documentário ainda dominava, tal como em Jose Artigas, Protector de los Pueblos Libres (1950) e a ode de Fabregat ao time vitorioso na Copa do Mundo de 1950, não menos que no Brasil - Uruguayos Campeones (1950).

Em 1951, a taxa de comparecimento aos cinemas - 11,5 vezes per capita anualmente - era uma das mais altas do mundo, e a mais alta da América Latina. O Servicio Oficial de Difusión, Radiotelevisión y Espectáculos, SODRE) apoiava a frequencia ao cinema para "filmes de arte" desde o final dos anos 40, e a mesma organização começou a planejar um festival de cinema Experimental e documentário, em 1954. Em 1952 a Cinemateca Uruguaya foi aberta, rapidamente se tornando um dos melhores arquivos de cinema e facilitador de exibições para todos os tipos de filmes. Com a própria produção de cinema do Uruguai sendo uma imitação (inferior) dos estúdios argentinos, e com o público se tornando o mais sofisticado e prolífico na região -  a determinado momento atingindo a taxa per capita de vinte idas ao cinema por ano - não é surpreendente que a produção de cinema local declinasse. Entretanto, com a introdução dos cineclubes e do festival SODRE, a produção de documentários curtos cresceu no país.

Algumas das figuras centrais foram o promotor, distribuidor e produtor Walter Achúgar e os realizadores radicais de esquerda Mario Handler e Ugo Ulive. Nos anos 60 Handler se tornou diretor do  Instituto de Cine de la Universidad de la República (ICUR), possibilitando que ele e Ulive fizesse filmes por lá. Um filme chave, co-dirigido por Handler e Ulive foi o média-metragem Elecciones (1966), sobre a inadequação dos partidos Colorado e Blanco de fazerem o país avançar. Por sua vez, Achúgar iniciou um festival apoiado pelo jornal radical Marcha. Também houve um cineclube Marcha, que evoluiu para a ainda mais à esquerda Cinemateca del Tercer Mundo, em 1969. Durante esta época, o Uruguai se tornou crescentemente polarizado entre faccões de esquerda e de direita, e em 1973 houve um golpe militar que foi o primeiro e único da história do país. Achúgar, Handler, Ulive, e muitos outros trabalhadores do cinema uruguaio partiram para o exílio. 

Durante a era repressora do regime militar nos anos 70, o único realizador uruguaio foi Eduardo Darino, que realizou diversas animações. Em 1979 um longa de ficção, El Lugar del Humo foi realizado com uma equipe em grande parte argentina, incluindo a diretora Eva Landeck, mas foi tão mal sucedido que faliu seus produtores. Em 1980 o governo uruguaio se uniu a um produtor norte-americano e contratou Darino para dirigir um longa de ação ao vivo, que apresentava uma imagem escrupulosa e bucólica do país em Gurí, de 1981; um musical, Sábado Disco, foi realizado; e então, em 1982, um projeto mais ambicioso da Cinemateca Uruguaya de produzir uma obra séria, que oferecesse aos artistas do país no campo do cinema, assim como outras disciplinas, uma oportunidade de colaborar, Mataron a Venancio Flores, dirigido por Juan Carlos Rodríguez. Mas nenhum dos três filmes foi bem sucedido nas bilheterias uruguaias, e o país teve que esperar quase vinte anos para seus primeiros sucessos em verdadeiros filmes de longa-metragem. 

Com o encarecimento dos ingressos e o declinio da economia do país, os números de público baixaram fortemente. A democracia retornou ao Uruguai em 1984, ainda que o veterano esquerdista Wilson Ferreira Adunate tenha sido banido das eleições, ato que se tornou o foco do documentário Elecciones Generales (1985), dirigido por César de Ferrari. As únicas ações fílmicas verdadeiramente bem sucedidas durante os anos 80 foram conduzidas pela Cinemateca Uruguaya, apesar de uma nova organização, o Centro de Medios Audiovisuales (CEMA), formado por um grupo de amigos incluindo o futuro diretor Esteban Schroeder e apoiado por fontes estrangeiras (a maior parte delas ligada a Igreja Católica), ter encorajado a produção de vídeos de baixo orçamento. 

Foi nos anos 90 que a produção de longas-metragens verdadeiramente se iniciou no Uruguai. O MERCOSUL, o Mercado Comum do Sul, incluindo o Uruguai, foi formado em 1991, e apesar de inicialmente não encorajar co-produções internacionais, eventualmente isso ocorreu, com iniciativas tais como a do argentino Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales (INCAA), iniciando um concurso de roteiros para países do MERCOSUL em 2000. Em 1994, o Instituto Nacional del Audiovisual (INA) foi estabelecido sobre as asas do Ministério da Educação e Cultura, para promover empreendimentos cinematográficos locais, e em 1997 esta organização favoreceu a adesão ao conjunto de financiamento cinematográfico de doze países Ibermedia. Mais imediatamente efetivo no encorajamento da realização uruguaia foi o acordo da cidade de Montevidéu com as companhias de TV a cabo para financiar realizadores através do Fondo para el Fomento y Desarollo de la Producción Audiovisual Nacional (FONA), em 1995. Desde então, 240 mil dólares por ano tem sido premiados a uma diversidade de projetos. 

Antes disso, Beatriz Flores Silva foi capaz de dirigir um impressionannte longa em vídeo com fundos do CEMA, em 1994, La Historia Casi Verdadera de Pepita la Pistolera, baseado na história de uma mulher burguesa, que estava tão desesperada por dinheiro em 1988, que roubou bancos. O sucesso desse filme abriu trilhas para um sempre crescente arranjo de longas uruguaios, que se estabilizaram numa média de quatro a seis filmes por ano. Outras produções notáveis dos anos 1990 incluem El Dirigible (1994), de Pablo Dotta, uma co-produção internacional (com Itália/França/Reino Unido/México/Cuba/Estados Unidos), sobre uma francesa visitando Montevidéu, e três filmes de 1997: Otario, de Diego (sic) Asuaga, Una Forma de Bailar, de Álvaro Buela, e o documentário (sic) Tupumaros (*), dirigido pelo alemão Rainer Hoffman e a suiça Heidi Specogna, sobre o grupo de guerrilha urbana Tupamaros, que foram suprimidos pelo golpe militar de 1973.

Muitos filmes uruguaios da primeira década do século XXI ganharam prêmios em prestigiados festivais de cinema internacionais. Estes incluem 25 Watts (2001, dirigido pelo falecido Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll), em Roterdã, no Festival Internacional del Nuevo Cine Latino (Havana), e no Buenos Aires Festival Internacional de Cine Independente (BAFICI); En la Puta Vida (2001), de Flores Silva, em Huelva (Espanha) e Havana, que reconta a história verídica de uma jovem que escapou de uma rede internacional de prostituição europeia e conseguiu o recorde doméstico de todos os tempos para um filme uruguaio (140 mil espectadores); La Espera (2002), por Aldo Garay, no Festival Internacional de Cine de Mar del Plata, Miami e Trieste; El ÚltimoTren (2002), de Arsuaga no Festival Internacional de Cinema de Montreal (três prêmios) e Valladolid; El Viaje hacia el Mar (2003), dirigido por Guillermo Casanova, em Huelva e Mar del Plata; Whisky (Rebella e Stoll, 2004), em Cannes (Un Certain Regard, dois prêmios), Havana, Huelva, Tessalônica e Tóquio; El Baño del Papa [O Baheiro do Papa] (2007), dirigido por César Charlone e Enrique Fernández, em San Sebastián, Huelva e São Paulo; e Gigante (2009), dirigido por Adrián Biniez, em Berlim (três prêmios), San Sebastián e Havana. Todos estes filmes uruguaios (e alguns mais) tem sido lançados nos maiores mercados e foram lançados no mercado de vídeo norte-americano. 

Em 2002 o Uruguai sofreu uma crise financeira extrema, com bancos fechando e desemprego crescente. Consequentemente, o FONA foi suspenso em 2003. Apesar de tudo, 2003-4 foi um grande período para o cinema uruguaio, com mais de 60 prêmios internacionais sido ganhos. Claramente, o cinema uruguaio havia chegado na cena internacional. No novo milênio, o Uruguai é também utilizado como locação para grandes produções internacionais. O resort de Atlantida fez as vezes de Havana em Miami Vice (EUA, 2006), de Michael Mann, e Montevidéu foi utilizada como várias locações ficcionais em Children of Men [Filhos da Esperança] (Reino Unido/Japão/EUA, 2006), de Alfonso Cuarón e Blindness [Ensaio Sobre a Cegueira] (Canadá/Brasil/Japão, 2008), de Fernando Meirelles. 

Em 2005, o nascido no Uruguai Jorge Drexler ganhou um Oscar por sua canção "The Other Side of the River" em Diários de Motocicleta (2004), e durante 2008 não menos que 12 novos longas ficcionais e documentários foram exibidos nos cinemas do país. Foi um período particularmente bom para documentários, com Vengo de un Avión que Cayó en las Montañas [A Sociedade da Neve](2007), sobre o famoso episódio do acidente aéreo com a equipe de rugby uruguaia em 1972, cujos sobreviventes comeram a carne de seus amigos mortos, vencendo o Prêmio Joris Ivens do prestigiado Festival Internacional de Documentário de Amsterdã, e El Círculo (2008), um perfil de Henry Engler, o líder linha dura do movimento Tupamaros, que permaneceu na prisão durante o regime militar, sendo um surpreendente sucesso de bilheteria. 

Em maio de 2008 a coalizão, em sua maior parte de esquerda, do governo liderado pelo presidente Tabaré Vásquez finalmente instituiu um fundo de um milhão de dólares, através do ICAU (Instituto para o Cinema e o Audiovisual). Desde então, La Vida Útil [A Vida Útil - Um Conto de Cinema] (2010), ganhou o prêmio Grande Coral em Havana e prêmios no BAFICI, Festival Internacional de Cine de Cartagena, Istambul e Lima, em 2011. Também no BAFICI, em 2011, Norberto Apenas Tarde (2010), de Daniel Handler recebeu uma "menção especial", enquanto La Demora, de Rodrigo Plá, ganhou dois prêmios em Berlim em 2012. Em 2013, a mostra Panorama de Berlim exibiu Tanta Agua [Tanta Água] (Uruguai/México/Holanda/Alemanha), o primeiro longa dirigido por duas mulheres uruguaias, Ana Guevara Pose e Letitia Jorge, que é uma análise interessante sobre a relação de uma adolescente com seu pai, enquanto são pegos de surpresa por uma persistente chuva durante as férias. O futuro parece bastante brilhante para o cinema do Uruguai. Ver também Adrian Caetano.

Texto: Rist, Peter H. Historical Dictionary of South American Cinema. Plymouth: Rowman & Littlefield, pp., 577-82.

N. do T: o texto original demonstra a dificuldade do autor de língua inglesa (ou seus revisores) com o espanhol, na frequencia com que grafa equivocadamente seja nomes próprios como Diego Arsuaga por Asuaga ou o movimento Tupamaros por Tupumaros, ocasionalmente acertando os mesmos. Resolvi corrigir outros erros similares encontrados como a nomeclatura incompleta de um dos festivais de cinema citados. 

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