Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#13: Filmes de Horror


 Filmes de Horror No reconhecido Horror: The Aurum Encyclopedia, de Phil Hardy, que cobre os anos de 1896 a 1992, as únicas nações sul-americanas representadas são Brasil (com o maior número de verbetes de longe), Argentina (diversos verbetes), Colômbia (dois filmes, vampiros como alegorias políticas em Pura Sangre (Luis Ospina, 1983), e sua sequencia, Carne de tu Carne (Carlos Mayolo, 1984) e Venezuela (um filme co-produzido, derivativo de Jaws [Tubarão], Bermuda: La Fossa Maledetta (Itália/Espanha/Venezuela, Theodoro Ricci, 1977). Essa escassez de filmes de horror  é um relato acurado do estado do gênero na história do cinema sul-americano: em relação aos cinemas norte-americano e europeu, o filme de horror possui importância histórica menor. As coisas estão mudando para melhor desde os anos 2000, mas iniciaremos com algum contexto histórico.

Não é coincidência que o florecimento do horror brasileiro no final dos anos 60 e anos 70 tenha sido resultado de uma figura inovadora, José Mojica Marins, que não apenas realizou o primeiro filme de horror no Brasil (À Meia-Noite Levarei Sua Alma, 1963), mas também orientou e influenciou cineastas mais jovens. Se houve um equivalente a Mojica na Argentina, seria o mestre do gênero popular Emilio Vieyra (1920-2010), ainda que houvesse uns poucos filmes notáveis do gênero anteriores a obra dele: Una Luz en la Ventana (Manuel Romero, 1942); El Estraño Caso del Hombre y la Bestia (Mario Soffici, 1951); Si Muero Ante de Despertar (Carlos Hugo Christensen, 1952); El Vampiro Negro (O Vampiro Negro, Roman Viñoly Barreto, 1953); e Obras Maestras del Terror (Enrique Carreras, 1960) (Curubeto, 1997, pp. 129-30).

O ex-assistente de Mojica, Ivan Cardoso, dirigiu uma série de comédias e sátiras de horror de baixo orçamento (O Segredo da Múmia, 1982; As Sete Vampiras, 1986; Um Lobisomem na Amazônia, 2006). No influenciado por Mojica O Macabro Dr. Scivano (Raul Calhado, Rosalvo Caçador, 1971), o Dr. Scivano é um político fracassado que se inicia na macumba, aparentemente tornando-se ele próprio um vampiro "devorando mulheres locais até ser morto e reduzido às cinzas diante de um crucifixo" (Hardy, 1993, p. 236).

Uma geração posterior, o auto-confesso discípulo mais antenado com o estilo e sensibilidade de Mojica, Dennison Ramalho, trabalhou como assistente de diretor e co-roteirista de Encarnação do Demônio. Dois dos curtas de Ramalho, Amor Só de Mãe (2003) e Ninjas (2010) carregam mais terror e medo que a maior parte dos longas de terror. Amor Só de Mãe traz a macumba de uma mulher (Formosa) lançada sobre o namorado dominado pela mãe. A fisicalidade intensa dos rituais de possessão vodu de Formosa e o subsequente assassinato induzido pelo feitiço é tão emocionalmente intenso e arrepiante quanto parece. O curta seguinte de Ramalho, Ninjas, de tinturas sociais, é um filme de horror baseado na realidade sobre uma brutal força de vigilância que distribui sua própria forma ritualística de justiça em uma favela.

Nascido na Itália, o diretor de cinema de comédias e filmes adultos Raffaele Rossi (1938-2007) dirigiu dois filmes de horror brasileiros, O Homem Lobo (1971) - que gerou uma sequencia de 1974, O Lobisomem (dir. Elyseu Visconti) - e um filme sobre adoradores de demônio, Seduzidas pelo Demônio (1975). O satanismo é também o tema de O Guru das Sete Cidades (1972), de Carlos Bini, sórdida história sobre contracultura, tornando-se má, influenciada pelos crimes  Charles Manson/Sharon Tate. Um exemplo mais notório de tentativa de capitalizar no sensacionalismo dos assassinatos  Manson/Tate é o filmado na Argentina, com capital estaduniense, Snuff (Michael e Roberta Findlay, 1971, relançado em 1976), que apresentava o slogan colonialista, "o filme que poderia ser feito somente na América do Sul - onde a vida é BARATA!". O tema do lobisomem retornou em 1974 com Quem Tem Medo do Lobisomem (Reginaldo Faria). O respeitado diretor brasileiro Walter Hugo Khouri (1929-2003) dirigiu dois filmes de horror ao longo de sua extensa carreira, o thriller psicológico O Anjo da Noite (1974) e o sobrenatural As Filhas do Fogo (1978).

Um dos formatos preferidos do horror-sul americano é o filme em episódios, o que proporcionou que o primeiro filme sul-americano distribuído nos Estados Unidos, o argentino Obras Maestras del Terror, ser baseado em três contos de Edgar Allan Poe. O filme de Carreras foi adquirido para distribuição nos Estados Unidos por Jack H. Harris, que quase cortou pela metade a metragem, removendo um dos contos, "The Tell Tale Heart" (Curubeto, 1997, p. 129). Seu sucesso gerou uma sequencia em episódios, El Demonio en la Sangre (René Mujica, 1964). Em 1968, José Mojica fez parte do filme em episódios Trilogia do Terror; um ano depois, um popular apresentador de rádio realizou outra antologia, Incrível, Fantástico, Extraordinário (Cícero Adolpho Vitorio da Costa, 1969) (Hardy, 1993, p. 207). Apropriadamente, no momento que escrevo, Mojica produz para outro filme em episódios, The Profane Exhibit.

Continuando com a Argentina, seu pioneiro realizador importante no gênero, Emilio Vieyra, teve uma bastante longa (45 anos) e prolífica carreira em vários gêneros populares. De acordo com Gerard Dapena, a obra de Vieyra tem sido injustamente subestimada pelos acadêmicos argentinos, particularmente ao se considerar a popularidade de seus filmes e o fato de diversos deles terem sido exibidos fora do país (2009, p. 87). Ao contrário de outros filmes de gêneros populares, realizados para o mercado local, os quatro filmes de horror de Vieyra "procuraram expandir o público para um cinema popular argentino além das fronteiras da nação", sendo comercializados em países de língua hispânica e nos Estados Unidos (Dapena, 2009, p. 89). Todos os filmes de horror de Vieyra foram lançados em Nova York entre janeiro de 1967 e março de 1968. O primeiro foi Placer Sangriento (1966), sobre um assassino serial, mascarado como o Fantasma da Ópera e viciado em drogas. O segundo é o mais conhecido desses filmes, La Venganza del Sexo (1967), apresentando um "cientista louco" que é um cruzamento entre Sigmund Freud, Wihelm Reich e o Dr. Moreau de H.G. Wells. 

Os direitos estadunienses de La Venganza del Sexo foram posteriormente adquiridos por Jarald Intrator, que dublou e remontou o filme com cenas de sexo adicionais, filmadas nos Estados Unidos, reintitulando-o para o mercado americano como The Curious Dr. Humpp, que tem se tornado, justificadamente, um dos títulos-chaves do panteão do "para-cinema" ("Paracinema" foi um termo cunhado pelo teórico da mídia americana Jeffrey Sconce e posteriormente elaborado pela estudiosa do horror Joan Hawkins, mas que deve seu crédito ao termo cunhado por Michael J. Weldon, nos anos 80, "cinema psicotrônico"). O paracinema é um fenômeno de subcultura que abarca qualquer cinema que se propõe a transformar noções predominantes de correção, gosto, estética e decoro social, e pode incluir o "mau cinema", os filmes B, os clássicos de drive-in, horror, ficção científica, filmes de motocicleta, filmes cult, filmes mondo, cinema exploitation e pornografia).

O terceiro filme de horror dirigido por Vieyra foi La Bestia Desnuda (1967, lançado em 1971), e o último filme do gênero dirigido pelo realizador foi Sangre de Vírgines (1967). Ainda que as incursões de Vieyra ao horror tenham sido grandemente provocadas pelo florescimento de um modernizado e voltado para adultos horror originário da Inglaterra (Hammer) e Itália (Mario Bava, Antonio Margheriti, Ricardo Fredda), Sangre de Vírgines tornou-se inovador, ao ser o primeiro filme a mesclar cenas de sexo com horror, característica que se tornaria uma marca registrada do Euro-horror dos anos 70 (Jean Rollin, Jesus Franco). 

A Argentina se tornou a nação sul-americana com a cena mais prolífica de filmes de horror contemporâneos, "a capital gore da América do Sul" (Daultrey, 2012, p.67). Esse crescimento recente do horror latino/sul-americano teve uma acolhedora vitrine no festival de cinema de horror argentino, Rojo Sangre, agora em sua décima terceira edição. Em alguns países (Argentina, Peru, Chile, Uruguai), a queda de governos militares altamente repressores, removeu as algemas da censura sobre os realizadores, abrindo-se para temas e gêneros anteriormente considerados de risco. A tecnologia digital ajudou nas restrições financeiras e reconhecidamente talentosos e jovens realizadores sul-americanos estão explorando seu ambiente político, cultural e social, junto com uma consciência das tradições do gênero europeias e amerianas (Daultrey, 2012, p. 68). Todos esses fatores - mais acessíveis e modernos equipamentos de filmagem em HD, uma crescente aceitação do horror, o fim da censura governamental - propiciou países como Chile, Peru e Uruguai a produzirem seus primeiros filmes de horror em mais de dez anos. 

O primeiro autor do gênero chileno pós-pinochet (1973-1990) é Jorge Olguín, cuja estreia em longa-metragem, Ángel Negro é uma inteligente e de baixo orçamento renovação do filme de assassinos americano e do giallo italiano, com altas doses de violência e o inexplicável desaparecimento de um personagem carregando possíveis colorações políticas dos sangrentos anos iniciais da ditadura do General Pinochet. Em seu filme seguinte, Sante Sangre+ (Sangue Eterno, 2002), Olguín mescla a subcultura gótica com a cultura dos jogos de personificação de papéis em uma mescla inebriante de tradição vampiresca, crise de identidade adolescente e maldade cósmica. Seu terceiro filme, Solos (2008) é a resposta de Olguín aos sucessos de 28 Days (28 Dias), [rec] e o surto de cinema zumbi/viral; seu último filme lançado, Caleuche: El llamado del Mar (Caleuche: O Chamado do Mar, 2012), é um filme menos agitado sobre um navio-fantasma. 

Também do Chile é um jovem realizador com inclinações experimentais e políticas, Francesc Morales Brucher. O primeiro filme de Brucher, Humanimal (2010), é um dos mais originais filmes em anos, um bizarro filme de fantasia-horror, estrelando famosos atores chilenos se expressando por mímicas em trajes felinos tamanho gigante! Brecher se refere a ele como uma "fábula de horror"que foi "demasiado estranha" para distribuição internacional (citado em Daultrey, 2012, p. 68). Seu filme seguinte, Apio Verde (2012), aborda o mais "convencional" tema conflituoso das leis de aborto do Chile. Encontra-se em fase de planejamento no momento "um filme de assassino chamado Música Libre*, que é sobre a ditadura chilena." (Daultrey, 2012, p. 69). 

Enquanto escrevo, o Peru se encontra na produção de seu primeiro filme de horror, Cementerio General, dirigido por Dorian Fernández-Moris, que bebe no folclore sobrenatural de seu próprio país em uma "coleção de histórias urbanas ambientadas no ou próxima de um cemitério na cidade de Iquitos, na floresta amazônica" (Daultrey, 2012, p. 69.). O Uruguai também testemunhou a produção de seu primeiro filme de horror, o sucesso de filme de arte/horror La Casa Muda (A Casa, Gustavo Hernández, 2010), que se destaca a si próprio ao ser filmado em um plano contínuo. Ainda que exista alguns truques ao longo do caminho, destaca o ponto de vista e a relação entre espaço on/off; talvez surpreendentemente, o uso de um único plano-sequencia foi importado (**) para seu (inevitável) remake americano, Silent House (A Casa Silenciosa, Chris Kentis, Laura Lau, 2011). O colombiano El Páramo (Jaime Osório Marquez, 2011, co-produzido com Argentina e Espanha) é um psicológico "horror de isolamento", influenciado por filmes recentes que empregam um similar contexto militar: Der Bunker (O Bunker); Airponteu (Fantasmas de Guerra); GP-506 [Posto de Guarda 506) e Stranded. Também da Colômbia é o atmosférico Al Final del Espectro (2006), dirigido por Juan Felip Orozc, que lida com o confinamento inquieto em um apartamento complexo, que pode ou não ser assombrado por um espectro feminino.

A figura mais prolífica da geração corrente argentina de diretores do horror é o nascido em Madri (em 1980) Adrián García Bogliano, que fez Habitaciones para Turistas (2004), Grité una Noche (2005), 36 Pasos (36 Passos, 2006), No Moriré Sola (2008), filme de vingança feminina e Sudor Frío (Calafrios, 2010), no subgênero pornô da tortura e co-dirigido com seu irmão mais velho Ramiró García Bogliano (n. 1975), Masacre Esta Noche (2009), Donde Duerme el Horror (2010) e Penunbra (2011). Outra prolífica equipe de realizadores argentinos é Daniel de la Vega (n. 1972) e Pablo Parés (n. 1978), que juntos já dirigiram perto de dez filmes. Parés emergiu nas luzes dos festivais com o barato e filmado em vídeo, ainda que contagioso, coquetel que mistura zumbis, comédia, ficção científica, ação, Plaga Zombie (1997) e sua duas sequencias, Plaga Zombie: Zona Mutante (2001) e Zombie Plaga Zombie: Zona Mutante: Revolución Tóxica (2011), todos co-dirigidos com Herñan Sáez. Vega e Parés se uniram para dirigir uma produção filmada na Argentina para o mercado estaduniense, Chronicle of the Raven (2003), estrelado por Faye Dunaway. Vega seguiu esse com o conto de horror sobrenatural La Muerte Conoce tu Nombre (2007).

Finalizando, uma nota de rodapé é devida ao nascido na Argentina Léon Klimovsky, que representa uma importante ponte entre o horror sul-americano e o mais conhecido e influente cânone do euro-horror. Klimovski deixou a Argentina nos anos 50 para uma carreira prolífica na Espanha, dirigindo muitos filmes importantes de horror - frequentemente com o maior ícone do horror do país, Jacinto Molina Alvarez, mais conhecido como Paul Naschy - conquistando grande reconhecimento na bastante recente (final dos anos 1990) reavaliação dos cinemas de horror europeus e do Terceiro Mundo. 


Donato Totaro

Texto: Rist, Peter H. Historical Dictionary of South American Cinema. Plymouth: Rowman & Littlefield, 2014, pp. 323-8.

(+) N. do E: Citado incorretamente, trata-se de Sangre Eterna.

(*) N. do E:  tornou-se, quando lançado, em 2016, Juego Siniestro (Jogo Sinistro).

(**) N. do E: embora mimetizando um único plano-sequencia, os realizadores admitem que foi filmado em longos planos-sequencias de cerca de dez minutos, depois sendo maquiados os cortes, ao estilo do célebre Rope (Festim Diabólico, Alfred Hitchcock, 1948). 

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