Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#78: José Mojica Marins

 



MARINS, José Mojica (Brasil, 1936*-). Uma das mais fascinantes figuras do cinema sul-americano, José Mojica Marins é um autodidata cuja infância transcorreu em cima do cinema de São Paulo que seus pais administravam, infância impregnada de filmes B americanos, westerns e filmes de horror da Universal. O presente de uma câmera 8mm, e eventualmente de 16mm encorajou Marins a converter sua educação em hobbie criativo de realizar filmes ambiciosos, muito além de seus meios, incluindo um épico de ficção científica que angariou a ira do padre da paróquia local, O Juízo Final (1948). O palco foi o cenário para o futuro de Marins enquanto realizador pronto a romper barreiras, a forçar sensibilidades morais (particularmente àquelas da igreja católica e dos censores brasileiros), e modificar noções de bom gosto e decoro social e político. Angariou o respeito tardio dos intelectuais brasileiros - Glauber Rocha ungiu Marins "o maior realizador do mundo", e Marins foi adotado por Rocha como um dos seus, assim como por outros diretores underground  do "cinema do lixo" do Cinema Novo brasileiro - e tornou-se um campeão inesperado dos pobres, dos desclassificados e dos privados de direitos. De acordo com o especialista em Marins, Horacio Higuchi, seu filme de 1963, À Meia-Noite Levarei Sua Alma foi o "primeiro filme de horror puro-sangue produzido no Brasil" (1993, p. 22). Os estudiosos e pesquisadores de Marins são incomensuravelmente credores do dossiê de 30 páginas de Higuchi "José Mojica Marins: A Loucura em Seu Método" que apareceu no excelente fanzine Monster! International (1993, pp. 5-35). 

Nascido em 1936, realizou 17 curtas e longas-metragens em 16mm entre 1942 e 1944, antes de realizar seu primeiro longa de 35 mm em 1959, o "primeiro filme brasileiro filmado em tela larga...muito provavelmente o primeiro western realizado no Brasil" (Higuchi, 1993, p. 22). 

No entanto, foi o terceiro filme de Marins, À Meia-Noite Levarei Sua Alma, que introduziu o personagem pelo qual é mais lembrado e, algumas vezes, confundido por: o sádico, niilista agente funerário rural Zé do Caixão. Da pequena construção, Marins fez seu personagem maior que a vida, vestindo uma capa preta de agente funerário, relógio e cartola; barba e bigode; e longas e deliciosamente enroladas unhas, uma grotesca mescla de vilão de história em quadrinhos, camelô carnavalesco e macumbeiro (uma forma de culto religioso vodu brasileiro, de inspiração africana). Quando sua esposa Lenita é incapazde proporcionar-lhe o filho que ele tão ardentemente deseja para continuar sua linhagem, Zé do Caixão sai em busca da "mulher perfeita" para procriar sua prole, uma busca que irá ocupar a sua famosa trilogia de filmes que abrange 45 anos (completada por Esta Noite Encarnarei Teu Cadáver, 1966 e Encarnação do Demônio, 2008. Em Encarnação do Demônio,o estilo de Marins é guiado pelo colaborador mais jovem (e co-escritor) Dennison Ramalho, no universo do século XXI de cores vigorosas, violência gráfica e sexo, agressivo desenho de som e elaborados cenários. Ao longo da trilogia, nada detém Zé do Caixão de conquistar sua busca, sacrificando através de assassinato e tortura vítimas inocentes, amigos e inimigos igualmente.

O que é fascinante sobre a persona de Zé do Caixão é que, ainda que seja vilão, mesmo assim torna-se o ponto focal para os espectadores, em grande parte por que não há outros personagens que remotamente preencham o espaço de heroi ou heroína. Ainda que por um lado seja um anti-herói, Zé do Caixão é também um bode expiatório para vários aspectos negativos do patriarcado e da política brasileira, proporcionando um lançamento catártico de raiva social reprimida contra o establishment (Igreja, figuras de autoridade, polícia), conformistas de têmpera fraca e fanáticos religiosos. Os filmes de Marins são, ao mesmo tempo, primais e primitivos, ainda que paradoxalmente contenham um subtexto  intelectual que ecoa Friedrich Nietzsche - sua "vontade de poder", "Superhomem", e proclamação "Deus está morto" - e o Marquês de Sade (suas teorias sobre a sexualidade e a natureza humana), para qualquer um disposto a ler, aliás, em sua contorcida filosofia). De fato, os roteiros de Marins são marcados igualmente por discursos, nos quais os personagens expressam seu ponto de vista filosófico, enquanto diálogo. 

O espectro do Zé do Caixão - que é de longe o mais popular ícone cult do horror sul-americano - é sentido não somente para além da trilogia, mas também para além do mundo do cinema. Em sua antologia em três partes O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1966), Marins estrela numa potente terceira história, "Ideologia", como professor Oaxiac Odez (Zé do Caixão ao contrário) que aparece em um programa de TV, debatendo sua teoria que o instinto sempre irá vencer sobre a razão. Odez convida um dos debatedores, um professor, juntamente com sua esposa, de volta a sua casa, aonde ele hospeda uma série de cenários sadeanos a provar sua teoria. E é, de longe, a peça cinematográfica mais chocante de Marins. O próprio Marins estrela O Ritual dos Sádicos (1969), em um falso comentário auto-promocional, onde novamente surge em um programa de televisão e defende sua arte da crítica social e moral de, entre outras coisas, distinguir entre Marins e o realizador e Zé do Caixão, seu personagem ficcional. Marins retorna mais uma vez ao personagem ficcional dentro da ficção em Delírios de um Anormal (1977), a ajudar a curar os pesadelos de um personagem (Dr. Hamilton) sobre sua jovem esposa sendo levada por José Mojica Marins. Marins compara os pesadelos do Dr. Hamilton a aqueles de seus próprios filmes, o que justifica o filme possuir 60% de sua metragem reciclada de seus filmes anteriores (Esta Noite Encarnarei Teu Cadáver, O Estranho Mundo de Zé do Caixão, O Ritual dos Sádicos, e Exorcismo Negro, 1974) (Higuchi, 1993, p. 31). Em Encarnação do Demônio, também recicla cenas anteriores de Esta Noite Encarnarei Teu Cadáver, mas acrescenta, de forma notável, recriações convincentes utilizando-se de um ator assemelhado a Marins, interpretado pela personalidade americana Raymond Castile que, numa estranha coincidência, possuía a idade exata de Marins quando fez o filme original! (Esta interessante curiosidade de produção foi revelada por Marins em uma entrevista com o autor, "Coffin Joe Returns to Montreal", Offscreen 14, n.5 [31 de maio de 2010].)

Fora do cinema, Marins extendeu a persona de Zé do Caixão para uma pletora vertiginosa de mídias correlatas, incluindo uma série de programas de televisão brasileiros, histórias em quadrinhos, fotonovelas, canções, aparições públicas, um serviço telefônico de horror e uma indústria caseira de souvenirs e subprodutos de Zé do Caixão . O próprio Marins tem sido tema de diversas homenagens e filmes documentários! No seu auge, Marins chegou a concorrer a um cargo político (para o Congresso, com o Partido dos Trabalhadores), mas aparentemente perdendo por conta da vasta maioria daqueles votarem no Zé do Caixão, ao invés de José Mojica Marins.

Marins é atualmente saudado por seu corpus único de horror de aproximadamente dez longas (os sete mencionados previamente, mas Trilogia do Terror, 1968, Inferno Carnal, 1976 e Perversão, 1978). Outro filme, Estranha Hospedaria dos Prazeres, 1976, é listado em algumas fontes como tendo sido dirigido pelo assistente de Marins, Marcelo Motta, enquanto em outras fontes de Martins como "diretor não creditado". De acordo com Higuchi, Marins completou o filme, após Motta ter abandonado o projeto (1993, p. 33) De toda forma, demonstra o repertório habitual de  membros das equipes técnicas de Marins (roteirista Luchetti, diretor de fotografia Attili) e foi o primeiro filme realizado por sua nova companhia produtora. No entanto, em sua longa carreira  trabalhou em muitos outros gêneros, por vezes por necessidade financeira (sua produção de pornografia hardcore em meados dos anos 80), incluindo filmes de aventura (O Diabo de Vila Velha, 1964; D'gajão Mata Para Se Vingar, 1971), pornochanchada (A Virgem e o Machão, 1973; Como Consolar Viúvas, 1976), alegorias (Finis Hominis - O Fim do Homem, 1971 e sua equivocada sequencia dois anos depois), comédias (A Mulher Que Põe a Pomba no Ar, 1976; 24 Horas de Sexo Ardente, 1984) e trhrillers (24 Horas do Medo, 1986).

A característica mais duradoura de José Mojica Marins é sua devoção ao poder da imaginação. Anterior à época que a tecnologia do cinema não conhecia limites, Marins perseverou sobre toda espécie de adversidades - tecnológicas, financeiras, sociais - produzindo algumas das imagens mais surreais, assombrosas e perturbadoras: a descrição unicamente bizarra repleta de cores de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, descrita por Pete Tombs como uma "combinação de Hiereonymous Bosch e o trem fantasma de um carnaval itinerante." (1997, p. 20); e a igualmente delirante sequencia do purgatório em Encarnação do Demônio; as alucinações histéricas, febris, alimentadas por drogas de Ritual dos Sádicos; a sequencia de créditos de imagens congeladas, editadas irregularmente em Finis Hominis, no qual um homem, interpretado por Marins, emerge nu do oceano e anda até um vilarejo próximo, surpreendendo os chocados transeuntes; a mistura implacável e disparatada de sua própria filmografia em Delírios de um Anormal; e a cena de uma mulher nascendo da carcaça de uma porca morta em Encarnação do Demônio. Marins permanece um verdadeiro visionário de poucos recursos, um diretor que, como seus mais respeitados colegas do Cinema Novo, empregou uma "estética da fome", não tanto por intenção, mas por necessidade.

                                                                                               ___________Donato Totaro

Texto: Rist, Peter H. Historical Dictionary of South American Cinema. Plymouth: Rowman & Littlefield,  pp. 389-92. 

(*) N. do E: falecido em 2020. 

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