Filme do Dia: O Legado de Sidney Poitier (2022), Reginald Hudin
O Legado de Sidney Poitier (Sidney,
EUA, 2022). Direção Reginald Hudin. Rot. Original Jesse James Miller.
Fotografia Matthew Chavez. Música: Marcus Miller. Montagem Tony Kent. Dir. de arte Tom Brown.
Uma das primeiras coisas a chamar
atenção neste documentário hagiográfico – e aí o título brasileiro reverbera
melhor o tom do assistido - sobre
Poitier é a sobreposição de letreiros afirmando se tratar de 1927, na ilha das
Bahamas, juntamente ao áudio de Poitier afirmando nem saber da existência de
energia elétrica e imagens em bitola não profissional em cores em um pacote
único, como se se tratasse de uma visualização da referida época. E a
declaração de Poitier de nunca ter visto um espelho até chegar a Nassau, quando
já contava quase dez anos, devendo se tratar de uma fabulação confusa de
infância. Não deixa de ser surpreendente, no sentido negativo, que a produtora
deste documentário, Oprah Winfrey, seja a primeira voz a ser ouvida, seguida de
sua imagem, logo após Poitier. A descoberta do preconceito racial se dará em
uma sociedade agora, ao contrário das que viverá até então, não apenas não prioritariamente
formada por negros, mas onde estes viviam uma situação de apartheid
social dos brancos, exemplificada pelo ator quando foi efetivar uma entrega de
uma loja em Miami e se deparou com a ira da mulher que o atendeu indagando o
que estava a fazer diante da porta principal da casa. E a forma encontrada por
Poitier de fugir desta situação foi viajar para Nova York, onde encontrou uma
realidade diversa no Harlem, onde havia uma celebração da liberdade negra,
ainda que ele não comente em isolamento territorial ainda presente nos dias de
hoje, se não por lei, por fato. E foi somente quando começou a trabalhar
lavando pratos em um pequeno restaurante na Broadway que Poitier aprendeu a
ler, com ajuda de um garçom judeu. Para perder seu sotaque Poitier recorreu
sobretudo a um programa de rádio, de Norman Brockenshire, de quem admirava o
tom de voz, e tentava copiar. As tensões que acompanharam a longa vida
artística e de personalidade com Harry Belafonte se encontra expressa numa
entrevista de ambos a Dick Cavett, onde se observa um Belafonte algo ressentido
em seu discurso, sorrindo abertamente, seguida de uma entrevista de uma filha
de Poitier brincando sobre o “bromance” entre os dois, onde a profunda amizade
era intercalada por rusgas, um ocasional divórcio, etc. Poitier relembra com
orgulho sua estreia em O Ódio é Cego, de Mankiewicz, que trazia um
personagem negro a fugir dos estereótipos aos quais era sempre reservado pela
indústria cinematográfica, como médico, quando habitualmente eram apenas figuras
cômicas. A narrativa da vida de Poitier,
é prioritariamente contada por ele próprio a câmera deste documentário, com o
habitual fundo neutro, acompanhada de imagens de arquivo de entrevistas suas em
diversos programas de tv, incluindo o célebre talk show de Dick Cavett.
O tema da família e do conhecimento vem a seguir, com Sidney avisando seus pais
da exibição de O Ódio é Cego em Nassau, e a primeira vez que eles
assistiram a um filme, e Juanita Hardy, sua primeira esposa, assim como a
negação para um papel em Cidade do Vício, recusado por Poitier, mesmo
passando por dificuldades financeiras à época e esperando sua primeira filha,
por ter cenas que não achava eticamente condizente com os princípios ensinados
por seu pai. O filme de Phil Karlson possui a chocante cena da criança negra
sendo jogada de um carro, a mesma reproduzida em Uma Viagem Pessoal pelo Cinema Americano com Martin Scorsese – Parte 1. Mas voltando a dimensão
ética o filme também mostra que ela não demonstrou ser tão fácil ao longo da
carreira de Poitier, como o dele ter aceito participação em Uma Voz nas
Sombras, interpretação pela qual ironicamente ganharia o Oscar, tendo sido
recusada anteriormente por Harry Belafonte, pelo grau de
paternalismo-exploração a tratar seu personagem negro; e sobre o qual Belafonte
afirma ter sido o filme mais horrível que lhe fora ofertado, mas que Poitier o
aceitara e interpretara muito bem o papel – e aqui cabe ao ouvinte/espectador
interpretar se houve ironia em seu comentário.
E é muito interessante contrastar o comentário de Belafonte com todos os
elogios endereçados a Poitier neste filme por um comentarista branco, um dos
biógrafos de Poitier. Já sua vitória no Oscar foi considerado como um elemento
a suplantar todo o cenário cultural de uma época pré-direitos civis na
concepção de Ophra e sua fala, ao lado de uma exuberantemente sorridente Ann
Bancroft, comovente. O Macarthismo e os boatos sobre as influências políticas
de Poitier, na senda do que havia ocorrido com o abertamente comunista Paul
Robeson, estrela negra dos anos 30, que influenciara tanto ele quanto
Belafonte. Poitier afirma sua carreira ter mudado de fato, com Sangue Sobre a Terra (1957), de Richard Brooks. Bem antes do ruidoso tapa desferido em
um homem branco (e poderoso) em No Calor da Noite, Poitier já havia
impressionado à comunidade negra estadunidense (como lembra Halle Barry) com
sua assertividade perante um homem branco, vivido por Tony Curtis, em Acorrentados,
embora o filme também represente o suprassumo do sacrifício de um negro por um
amigo branco, cuja tônica impregnará boa parte dos personagens do ator, e com
ela a crítica que posteriormente lhe será feita pelos militantes. Foi o momento
de ascensão ao estrelato do ator, e a primeira indicação de um ator negro –
Curtis também foi – desde Heattie McDaniel, como lembra sua filha. E o
investimento de uma peça de sucesso estrelada por ele na Broadway adveio também
de sua então esposa, após ter devolvido o casaco de mink que este lhe havia
comprado e investido na peça. Papel que voltará a viver no cinema em O Sol
Tornará a Brilhar. Um dos depoentes afirma ser a interpretação mais
elétrica do ator, não por acaso roteirizado por um afro-americano. Paris
Vive à Noite traz um casal negro, vivido por Poitier e Dianah Carroll,
bastante sexy para Lenny Kravitz. Uma das situações mais tensas vividas por
Poitier, já após ter recebido o Oscar, foi quando viajou ao sul, a convite de
Belafonte, e foram ameaçados pela Ku Klux Klan, com a proteção policial
oferecida pelo governador não existindo, segundo Belafonte conta em outro
trecho da entrevista de ambos para Dick Cavett. A tríplice tacada do auge da
fama de Poitier: No Calor da Noite; Ao Mestre, com Carinho e Adivinhe
Quem Vem para Jantar, todos lançados em 1967. Sobre o segundo talvez surja
o comentário mais interessante, de uma das filhas do ator, afirmando nas telas
não ver o personagem, mas seu pai. Outro ponto forte do documentário é, logo
após este ápice, vir também uma espécie de cancelamento do ator, por
considera-lo uma espécie de Uncle Tom, o
personagem negro vindo a calhar em meio ao liberalismo branco americano, mas
sem nunca questionar a sociedade dominante branca, algo a ser comentado na voz
do próprio Poitier, partindo de um influente artigo publicado no New York
Times. Não menos interessantes são as imagens de Harry Belafonte chorando nos
funerais de Martin Luther King, e de Poitier saindo de um dos eventos
vinculados a morte de King, com sua esposa. E quem o saúda quando ganha o
prêmio de tributo por sua carreira no AFI foi ninguém menos que Belafonte. No final da década Poitier passa a se
relacionar com uma branca, Joanna Shimkus, com quem ficaria unido até a morte,
tendo se casado com ela em 1976. Um por Deus, Outro pelo Diabo marca a
reaproximação de Belafonte e Poitier, o primeiro chamando o segundo a fazer
parte do projeto, minimizando as rusgas surgidas desde a morte de Luther King
quatro anos antes, e com direção do próprio Poitier. Interessante como seja, e
felizmente ele melhora após um início meio chocho, este documentário possui um formato bem mais
convencional que o contemporâneo As Últimas Estrelas do Cinema, sobre
Paul Newman e Joanne Woodward, sendo que a trajetória de Newman e Poitier se
cruzaria em ao menos três importantes momentos, deixando de lado eventos como
os funerais de King, como é o caso da dupla indicação dos atores para o Oscar
vencido por Poitier, suas presenças em Paris Vive à Noite e a criação de
uma companhia pelos dois e mais Barbra Streisand, através da qual obtivessem
maior liberdade artística. E não se deve esquecer algo tão importante quanto o
fato de The Beatles: Get Back, por exemplo, ter sido produzido pelos
Beatles sobreviventes e as viúvas dos mortos, repetir-se aqui, com duas de seus
produtores-executivos sendo uma filha do ator e Joanna Shimkus. Dentre os
entrevistados não citados Denzel Washington, Spike Lee, Morgan Freeman, Louis
Gossett Jr., Lulu, Quincy Jones, Robert Redford e Katharine Houghton, a jovem
noiva de Adivinhe Quem Vem para Jantar.
Apple Studios/Digital Thunderdome/Harpo Prod./Network
Ent. para Apple+. 107 minutos.![]()

Comentários
Postar um comentário