Filme do Dia: Mãe Solteira (1949), Ida Lupino & Elmer Clifton
Mãe Solteira (Not Wanted, EUA, 1949).
Direção Ida Lupino & Elmer Clifton. Rot. Original Paul Jarrico & Ida
Lupino, a partir de um argumento de Jarrico & Malvin Wald. Música Leith
Stevens. Montagem William H. Ziegler. Dir. de arte Charles D. Hall. Cenografia
Murray Waite. Figurinos Jerry Boss. Com Sally Forrest, Keefe Braselle, Leo Penn,
Dorothy Adams, Wheaton Chambers, Rita Lupino, Audrey Farr, Carole Donne.
Sally Kelton (Forrest) tem uma relação
problemática com os pais, não compartilhando muitos dos valores desses.
Conseguindo um emprego em um bar, apaixona-se perdidamente por Steve Ryan
(Penn), pianista decadente. A gota d’água que faz Sally fugir da casa dos pais
foi ter sido pega dirigindo um carro e sem licença de motorista. Na madrugada
ela viaja na surdina para Capital City, cidade que Steve disse que iria morar.
Porém, nos contatos que faz com ele, não sente o menor interesse por parte
desse, que pretende viajar à América do Sul. Sally consegue um emprego no posto
do homem que conhecera na viagem de ônibus, Drew Baxter (Braselle). Ele se
encontra interessado em casar com ela. Sally, no entanto, descobre-se grávida e
mais uma vez parte, buscando guarida em uma casa para mães solteiras. Drew
descobre o endereço onde se encontra, e choca-se ao saber do ocorrido com a
diretora da instituição. Sally tem a criança e a doa para uma família, pela
impossibilidade de sustenta-la. Porém, depois fica mentalmente instável e tenta
levar um bebê que encontra na rua, sendo flagrada por sua mãe e denunciada à
polícia. Presa, sua sentença, após explicado o seu caso, fica nas mãos da mãe
do bebê, que a perdoa. Quando sai do tribunal, percebe que Drew se encontra
próximo e começa uma fuga dele.
Pode-se sentir, desde os primeiros
minutos, a ânsia por temas novos – o que não a tornava diferente de toda uma
geração que projetava na tela pretensões semelhantes, como Elia Kazan, Robert
Rossen, etc – e o diferencial de ser a única mulher a dirigir em Hollywood
desde a aposentadoria, após breve carreira, de Dorothy Arzner. E, nesse último
quesito, uma tentativa de diálogo com a moral da época, sem abdicar de temas
espinhosos. E temas espinhosos relativos às mulheres (gravidez fora do
casamento, estupro em O Mundo é Culpado, bigamia em O Bìgamo). O desejo feminino é aqui retratado, por
exemplo, como é o caso da cena em que Sally (vivida por uma homônima) ensaia um
arranjo mais ousado de seu vestido, apenas para retroceder após os reclames da
mãe. Deve-se, portanto, inserir a representação de tal desejo em um ambiente
familiar típico, e Sally como uma figura romântica e sonhadora, ingenuamente
apaixonada, ao ponto de servir até para colocar o cigarro na boca de seu amado,
quando esse ensaia ao piano. Quando se pensa anacronicamente, a partir de uma
cena famosa de Titanic, aqui se teria um equivalente masculino, com a
fixação do braço de Steve no tronco da árvore, enquanto beija Sally, e depois
se seguir o cigarro jogado fora, como retrospectivamente o momento para o sexo
e a visualização do descarte que já fora citado pelo próprio Steve, de mudança
para outra cidade? Noutro momento, Sally parece ser uma versão menos
glamourizada e pronta para ser mistificada que sua masculina posterior de Juventude Transviada,
incitando a reação de um pai igualmente “fraco”. E também mais ousada, ao
arriscar perder o vínculo familiar – algo que Dean no filme de Ray nunca fará –
e ir com mala e cuia atrás do homem que acredita ser seu. E o filme, numa de
suas cenas mais inusitadas, nessa mesma viagem, faz uma rara abordagem da
intimidade entre estranhos na proximidade física do restrito espaço físico do
ônibus que leva Sally, após a atitude disruptiva tomada. É como se Lupino
armasse toda uma estrutura convencional a partir de uma argamassa
melodramática, para depois dessa erguida, apresentar sem meias palavras – aqui
ainda menos que em O Mundo é Culpado – um material estranho em meio a
tudo isso, praticamente um cavalo de Tróia composto com os mesmos tijolos que
as estruturas convencionais faziam uso. Involuntariamente Lupino estava
lançando motivos aos quais se retornaria
– como não acreditar que a bela cena em que a personagem igualmente grávida e
ainda mais jovem de Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre tem de expor sua
gravidez a uma atendente receptiva não tenha se inspirado numa cena semelhante
aqui, mesmo que não o seja? E é, no mínimo,
curioso, que Lupino tenha renunciado seu crédito à direção em um filme que é
tão próximo do que faria posteriormente, inclusive partindo de tropos similares
– suas jovens mulheres não encontram outra forma de lidar com o peso da
moralidade conservadora familiar que fugindo das mesmas literalmente, e
empreendendo uma segunda fuga dentro da fuga; no filme posterior sendo o evento
estigmatizador que impulsiona essa partida, enquanto nesse é um acúmulo de
eventos menores que a faz se sentir uma estranha em sua própria casa e que
levará ao desejo de partida, que se confundirá com a concretização do desejo
sexual que levará ao estigma. E como quase todo flashback demasiado
longo, imergimos tanto na história de Sally que é de praxe esquecermos que o
observado ocorreu no passado em relação ao início do filme. Até o momento em que a vemos
rodeada de crianças em uma calçada. Que a assinatura de doação da criança se dê
sob estado de intensa emoção, com a diretora apenas argumentando se não seria
melhor ela pensar mais é apenas um detalhe, quiçá não completamente
inverossímil à época. E se os homens que surgem diante de Sally são um jovem
emocionalmente imaturo, que brinca de trem e perdeu a mãe quando pequeno, e
ainda possui a simbolicamente relevante restrição de locomoção que o torna
ocasionalmente ainda mais vulnerável mas bom caráter e um adulto emocionalmente
imaturo, afundado em suas próprias frustrações talvez diga muito ou mais sobre
sua própria inquieta personalidade. Em nenhum momento, desde que percebeu o
quanto projetara em algo que inexistia, no caso de sua paixão, Sally se encontra
refém de qualquer homem para seguir com sua vida, mesmo sofrendo os percalços
do que acredita ser o preço de não ter um a seu lado, o maior deles não ter
ficado com seu filho. O mais belo plano do filme é o de Sally correndo por uma
passarela de pedestres, cena carregada de urgência e desespero, com Drew em sua
cola; a seu modo mais pungente que a corrida dos personagens do sofisticado e
luxuosamente fotografado Jules e Jim, de mais de uma década após. Seu
final, ainda nessa sequencia, é um recuo diante da estrutura, para que se
fizesse possível existir enquanto tal, não caindo na tragédia redentora final
nem tampouco acenando para uma Sally que se quer livre de qualquer amarra de
esteio emocional colado à instituição que, de certa forma, provocou-lhe toda a
situação, sua própria família, a seu modo tão independente quanto a própria
personalidade de Lupino. Digno de nota é a inexistência de qualquer imagem dos
pais de Sally até o final. Destaque para o momento em que Drew praticamente
torna didático, ainda que de uma forma bem humorada, o assédio a sua
subordinada no emprego. Emerald Prod.
Inc. para Film Classics. 92 minutos.

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