O Dicionário Biográfico de Cinema#275: Robert Bresson


 

Robert Bresson (1907-99), n. Bromont-Lamothe, França

1934: Les Affaires Publiques (*). 1943: Les Anges du Péché [Anjos das Ruas]. 1945: Les Dames du Bois de Boulogne [As Damas do Bois de Boulugne]. 1950: Le Journal d'une Cure de Campagne [Diário de um Pároco de Aldeia]. 1956: Un Condamné à Mort S'Est Échappé [Um Condenado à Morte Escapou]. 1959: Pickpocket. 1961: Le Procès de Jeanne d'Arc [O Processo de Joana d'Arc]. 1966: Au Hasard, Balthazar [A Grande Testemunha]. 1967: Mouchette [Mouchette, a Virgem Possuída]. 1969: Une Femme Douce [Uma Mulher Delicada]. 1971: Quatre Nuits d'un Rêveur [Quatro Noites de um Sonhador]. 1974: Lancelot du Lac [Lancelot do Lago]. 1977: Le Diable Probablement [O Diabo, Provavelmente]. 1982: L'Argent.

Provavelmente a gravidade de Bresson é tão natural, sua austeridade tão tranquila, que é impróprio se atribuir sua produtividade lenta à timidez comercial de tal dificuldade. Os próprios filmes parecem inconscientes de economia ou complexidade. Transcendem quaisquer possíveis circunstâncias, dentre as quais poderiam ter sido feitos, já que são indiferentes à contemporaneidade. O universo de Bresson é um de faces, mãos, observações detalhadas da atividade humana. Ultrapassam a beleza, tanto em intenção quanto em efeito, e enfatizam a necessidade. Como uma prova de expressividade espiritual do rosto em branco, Bresson geralmente evitou atores profissionais e restringiu a "atuação". As faces nos seus filmes, são como dos espectadores, imobilizadas pela contemplação. O diretor também não apreciava a cumplicidade de seus atores; frequentemente os dirigia de forma minuciosa, insistindo em uma curiosamente plácida intensidade, mas raramente os informando do contexto ou significado de um plano. Tal método acentua a privacidade das mentes, e Bresson possui uma galeria única de orgulhosos, intratáveis,  inacessíveis criaturas - alguns monstros da maldade, alguns santos, e um burro. E ainda assim, seus filmes inconfundivelmente impressionam o espectador com a universalidade que supera a privacidade. Bresson é um realizador católico, e tanto o é que ninguém facilmente pensaria de Hitchcock como um diretor espiritual em comparação. Os filmes de Hitchcock não costumam se aproximar facilmente das pessoas. Bresson possui uma caridade tão grande que gostar parece desnecessário. Ele é um exemplo de cinema puro no sentido que fotografa rostos reservados para evocar todas as emoções mais selvagens do espírito. Ver seus filmes é maravilhar-se que os outros diretores tenham tido a ingenuidade de desenvolver tais estilos tão elaborados e, no entanto, os tenham restringido a mensagens tão superficiais. Pode ser dito que assistir Bresson é se correr o risco de se converter para longe do cinema. Seu sentido é tão claramente inspirador, e seu tratamento tão destituídamente de remorsos interiores, que parecem condenar o glamour e extravagância extrínsecas do cinema. Por esta razão sozinha, não é um diretor fácil de digerir. Ir além da admiração pode estar próximo demais da rendição. Embora haja uma qualidade objetiva em seu trabalho, a visualização concentrada revela um sentido extraordinário de paixão. É como se seus personagens mantivessem a cara séria por medo de explodirem. Estes sentimentos humanos estão em confusão com imperativos espirituais, e a luta é tão grande quanto em Dostoievski - um dos modelos de Bresson. 

Quando jovem, Bresson estudou filosofia e pintura. Mas em meados dos anos 30 trabalhou como roteirista e realizou Les Affaires Publiques, uma comédia, para a qual escreveu o roteiro. Também possui os créditos de roteirista em C'Etait un Musicien (33, Frederic Zelnic**), Les Jumeaux de Brighton (36, Claude Heyman) e Courier (***) Sud (37, Pierre Billon), e foi assistente de René Clair no incompleto Air Pur, em 1939. Após um ano em um campo de prisioneiros de guerra, começou a trabalhar como diretor. Anjos das Ruas, ambientado dentro do orfanato, foi dialogada por Jean Giraudoux. Seu brilho - fotografado por Philippe Agostini - e sua preocupação intramuros com os arrependimentos mundanos da freira pode ter parecido uma parte do escapismo durante a guerra. Mas não há dúvida sobre As Damas do Bois de Boulogne ser um marco na história do cinema. Extraído de Jacques le Fataliste, de Diderot, com diálogos de Jean Cocteau e um cenário onírico moderno, a transposição literária sendo menos importante que o primeiro e triunfante uso de Bresson da abstração em filmar pessoas. Aqui, claramente, a aparência exterior era uma casca formal para a identidade emocional e intelectual. O cenário, ainda que factual, foi irreal; o drama emocional não foi um símbolo para sentidos mais profundos, mas uma abstração deles. As Damas é ainda um filme moderno, e sua influência no cinema francês posterior está distante de ser exaurida.

Diário de um Pároco de Aldeia, roteirizado por Bresson a partir de um romance de Bernanos, foi realizado após um intervalo de cinco anos. Ostensivamente mais religioso ao seguir a vida e a morte de um jovem padre, foi um primeiro uso de Bresson de atores "desconhecidos" e o primeiro sinal de tons emocionais em sua obra. Poucos filmes sugerem tão bem o equilíbrio da auto-determinação e onisciência; a piedade e o esplendor do egoísmo e do sacrifício. Neste filme, igualmente, fez uso de um senso ainda mais peculiar do campo francês, mesmo que as imagens e sons nunca sejam meramente naturalistas. Portanto, a varredura das folhas caídas - um dos melhores efeitos sonoros de Bresson - é também uma crueldade da alma. Um Condenado é seu filme mais jubiloso, a fuga bem sucedida de um francês de um campo nazista, surpreendentemente concentrado no rosto na cela e no crescimento da fé ali. O ritual da vida prisional desvanece sutilmente em uma cerimônia religiosa, enquanto o uso da Missa em C Menor de Mozart apresenta um poder extra espiritual da fuga, cumprindo a litania inicial de colheres raspando na madeira e de pelotões de fuzilamento distantes. 

Pickpocket foi a primeira rendição a Dostoievski. E é próximo da situação de Crime e Castigo, utilizando o crime como motivo para o orgulho, e a prisão como modelo para a alma. Em todos estes filmes, foi a habilidade de Bresson de realizar seu próprio universo que foi o mais impressionante. O filme sobre Joana D'Arc foi como um retrocesso, já que sua familiaridade dissipou a atenção investigativa que Bresson demanda.

A Grande Testemunha e Mouchette foram grandes avanços, retornando a um universo provinciano rural, estranhamente invadidos por fragmentos de modernidade, mas na realidade ambientes para elegias à resignação. A destruição do jumento, Balthazar, e o eventual suicídio de Mouchette se encontram entre os mais depurados e comoventes eventos no cinema. Pela primeira vez, Bresson parece ter ido além do dogma católico. E é neste período que se torna possível visualizar uma calma mística e oriental em sua obra. Em sua narrativa do sofrimento, e da reação humana a ele, A Grande Testemunha e Mouchette aparecem hoje como suas obras maiores. 

Depois disso, Bresson utilizou cores, algo que parecia antes inimaginável. Fez dois filmes a partir de Dostoievski e ambos apresentam um interesse especial na feminilidade - Dominique Sanda em Uma Mulher Delicada é talvez a melhor interpretação da obra de Bresson, e nada pior por causa disso. Uma vez mais o tema para análise é o modo como o desgosto e a angústia na vida tem sido esclarecidos e traídos pelo suicídio.

Seu trabalho nunca relaxou: Lancelot do Lago e L'Argent são estudos magníficos de dois códigos humanos, honra e ganância, séculos distantes, mas fraternos. 

Um comentário breve sobre Bresson é uma tarefa ingrata. Ele é um grande diretor, ainda que nenhum outro grande diretor pareça tão pouco intrigado pelo próprio cinema. A simplicidade de sua obra, o senso no qual ela é cinema, vem deste lema rúnico - "existe uma única forma de filmar as pessoas: próximo e diante delas, quando você deseja saber o que lhes ocorre internamente." É esta uma descrição verdadeira de seu método? Ou talvez Bresson dividiu rigorosamente do que acontece internamente o quanto lhe interessa? Seus filmes são menos pré-concebidos e mais planejados com antecedência: o conflito de rostos neles é a montagem de uma parábola na qual cada item mensurado é parte de uma organização formal. O de Bresson é um cinema de demonstração, tão amplo em suas consequencias  que sua estreiteza mundana é tornada irrelevante. O método é luminoso e completamente metódico - um exemplo perfeito de significado interior e comportamento exterior.

Texto: Thomson, David. The New Biographical Dictionary of Film. N. York: Alfred A. Knopf, 2014, pp. 317-20.

(*) N. do E: no IMDB o título consta apenas como Affaires Publiques

(**) N. do E: no IMDB consta como co-dirigido por Maurice Gleize.

(***) N. do E: no IMDB Courrier Sud.

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