Filme do Dia: Let Them All Talk (2020), Steven Soderbergh

 


Let Them All Talk (EUA, 2020). Direção, Fotografia e Montagem: Steven Soderbergh. Rot. Original: Deborah Eisenberg. Música: Thomas Newman. Dir. de arte: Andy Eklund & Amie English. Figurinos: Ellen Mirojnick. Com: Meryl Streep, Candice Bergen, Gemma Chan, Dianne Wiest, Lucas Hedges, Christopher Fitzgerald, John Douglas Thompson.

A renomada escritora Alice Hughes (Streep), já premiada com o Pulitzer, encontra-se ansiosa em ir receber um prêmio que ele considera mais importante que o Pulitzer, na Inglaterra. Ela não pode, por problemas de saúde, viajar de avião. Sua agente, Karen (Chan) consegue que ela ocupe um aposento de luxo no transatlântico Queen Mary. Ela leva consigo duas ex-colegas de universidade, Roberta (Bergen) e Susan (Wiest), cada uma com uma abordagem distinta para com Alice. O sobrinho querido da autora, Tyler (Hedges) e, sem que ela saiba, também Karen.

É uma escolha sábia de título. E que brindará a quem sobreviver até próximo ao final da viagem, já que não se passa incólume a evocação de 13 dias em um navio (ainda que o navio seja um transatlântico, e não um qualquer, mas o Queen Mary), sem grandes dramas ou fantasias. Há um momento, breve em termos relativos, quase epifânico, em que o difícil equilíbrio de se dar voz a todos ocorre. E quando se fala se dar voz, essa é uma metáfora para o lema de todos possuírem suas razões, pois pensam, sentem e tiveram trajetórias de vida diferenciadas. O que nos faz lembrar de Hannah e Suas Irmãs, filme seminal na carreira de Allen por, pela primeira vez, conseguir algo próximo do tipo. Não por acaso com a mesma (e maravilhosa, aparentemente sempre vivendo a si mesma) Dianne Wiest. E envolvendo ressentimentos em relação ao mundo ficcional de um artista. Lá de uma forma mais marginal que aqui se puxa para centralidade. E em ambientes refinados, como habitualmente são os do célebre realizador nova-iorquino. Infelizmente há defecções, furos na embarcação, que se não a transformam em um Titanic, não a deixam incólume. E esses logo se seguirão a melhor cena do filme. A que Alice chama todos para jantar. E se escuta, como uma melodia dissonante, as três vozes (três, novamente como Hannah) cada uma falando linguagens distintas. A do amor, um pouco idealizado em Susan. O de uma profundidade de difícil comunicação em Alice, para quem a escrita é o passaporte no qual consegue purgar seus sentimentos, não sem antes se esforçar intensamente em lapidá-los. E o da materialidade em Roberta. Não é pouca coisa conseguir se matizar uma personagem que parecia tão absortamente auto-centrada e pedante quanto Alice. Porém o reboco cairá em excesso sobre alguém até então em equilíbrio com a respiração do filme como um todo, Roberta. E o próprio filme se desequilibra, jogando bacia e bebê juntos no oceano da travessia recém-finda. Nessa travessia há o momento das pequenas trivialidades do grupo de personagens, dos quais se chega quase a indagar a determinado momento, quase uma hora de filme transcorrido, se poderia ser trabalhado de forma mais interessante, como em alguns filmes de Altman, que também propunha personagens em uma situação espaço-temporal sintética (e sincrética). Há um segundo momento, das vozes que falam. E, quando se chega ao terceiro, imagina-se que o difícil arranjo de se trabalhar em chave dramática e cômica um tanto menor logo abraçará clichês dramáticos, dos quais tão bem havia conseguido se desviar, sobretudo em um filme dessa envergadura e custo. E aí apela-se para o mais roto deles, a morte, provocando um desequilíbrio vantajoso na “beneficiada” já de partida, mas também para uma sucessão de resoluções novelescas e chapadas, nada próximas da vida (e da representação dessa defendida pela própria Alice). Atualizações são necessárias no latifúndio da dramaturgia, então o amor romântico que emerge de Tyler não encontrará porto na mais madura Karen, desfazendo, de acordo com as sensibilidades contemporâneas, a noção da mulher fragilizada que necessita de um varão – ainda quando esse seja tão comportado e inseguro quanto, uma vez mais, vários personagens masculinos de Allen. Mas, por outro lado, renderá uma das melhores falas do filme, a de Alice sobre o amor, para o sobrinho envergonhado que lhe acabara de contar sobre a não correspondência de Karen. E, por fim, o único personagem ao qual a bussola não apresenta um norte imediato, seja a cova, seja projetos de publicação futuros. O que não deixa de ser um bom sortilégio que o imuniza das tentações novelescas ao qual as personagens femininas, em maior ou menor medida, sucumbem. Dá pena sobretudo, uma vez mais, que não se modele Roberta melhor. Que ela imponha seu ressentimento com a vida que considera insuportável de vendedora e observe tudo com olhar voltado para a possibilidade de se escafeder dessa é uma coisa. E até digna, a seu modo. Que ela prossiga nesse “modo” sem maiores inflexões, até o último minuto em que surge, com o habitual mau humor no trabalho com relação a sua chefe, bem outro. Embora Alice seja a única a falar sobre amor, ou talvez por isso mesmo – os outros geralmente se referem a sexualidade, embora seu sobrinho pareça ter herdado essa aproximação aparente com o amor romântico – não há o menor vislumbre maior sobre sua sexualidade e a pista posta pelo filme, será posteriormente desconstruída, não possuindo filhos (Tyler incorporando o filho que nunca teve) nem referências a ex-maridos.  Fotografado com grande acuidade por Soderbergh, que também monta seus filmes, usando pseudônimos em ambos casos. Extension 765/HBO Films/LS Prod./Warner Bros. para HBO Max. 113 minutos.

 

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