Filme do Dia: A Grande Testemunha (1966), Robert Bresson
A Grande Testemunha
(Au Hasard, Balthazar, França/Suécia,
1966). Direção e Rot. Original: Robert Bresson. Fotografia: Ghislain Cloquet. Montagem:
Raymond Lamy. Dir. de arte: Pierre Charbonnier. Com: Anne Wiazemski, François Lafarge,
Philippe Asselin, Nathalie Joyaut, Walter Green, Jean-Claude Guilbert, Pierre
Klossowski, François Sulerot.
Balthazar é
um asno de estimação da pequena Marie e do seu amigo Jacques. Porém já
crescido, após ser maltratado nos serviços do campo, refugia-se na casa de um
padeiro e serve como instrumento para a entrega dos pães, sofrendo maus-tratos
por parte do jovem padeiro. A mãe de Jacques morre, e a fazenda é entregue aos
cuidados do pai de Marie (Asselin).
Marie (Wiazemski), mesmo gostando de Balthazar, nada faz do grupo de
delinquentes liderado por Gerard (Lafarge), e não concretiza seu namoro com
o prometido amigo de infância, Jacques (Green). Acusado injustamente de roubar
do proprietário, o pai de Marie fale. Jacques tenta contornar a situação, mas é
destratado e abandona Marie. Balthazar vai parar nas mãos de um padeiro, cujo
serviçal é justamente Gerard, que volta a destratar o asno. Marie, torna-se
amante de Gerard. Sem muita esperança de recuperação, Balthazar é reivindicado
pelo alcoólatra Arnold (Guilbert), que quase nada possui na vida. Em suas
crises de fúria maltrata Balthazar e o outro asno que possui. Ambos fogem, e
Balthazar é acolhido por um circo, que o torna um dos astros de seu espetáculo.
Porém, no dia em que Arnold vai ao espetáculo, Balthazar procura fugir do
antigo dono e desgosta os proprietários do circo, que entregam-no novamente a
Arnold. Arnold recebe uma herança de um tio que o transforma num homem rico.
Porém, tal novidade não modifica sua situação de auto-destruição e morre ao
cair alcoolizado do asno. Balthazar vai a leilão e foge de seu novo proprietário
e retorna a casa de Marie. Porém, a família vivencia um momento de crise.
Marie, após a promessa de engrenar finalmente o romance com Jacques, que não se
importa com todo o processo de degradação sofrido por ela no passado, torna-se
vítima de humilhação por parte de Gerard e seu grupo, que a abandonam nua.
Ela abandona o vilarejo. Seu pai morre. Balthazar é uma das poucas coisas que
restou a sua mãe (Joyaut), porém é roubado para servir como instrumento para o
contrabando de Gerard e seus amigos, que fogem com os tiros da polícia.
Balthazar, no entanto, acaba sendo ferido mortalmente.
Bresson,
com seu habitual distanciamento do que é narrado, apresenta essa tocante fábula
na qual as vicissitudes e sofrimentos do animal que o protagoniza espelham as
próprias vicissitudes e – sobretudo sofrimento – dos seres humanos que convivem
com ele, notadamente de sua primeira dona, Marie. Vem compor, juntamente com O Processo de Joanna D´Arc e Mouchette, com o qual aliás é bastante
assemelhado, mais um retrato de sofrimento e – se é que pode ser aplicado nesse
caso – redenção pela morte. Da mesma
forma que em Mouchette, que foi
produzido logo após esse, o asno está longe de ser uma mera vítima, reagindo
como seja, quando jovem, ao trabalho estafante ou, depois de maduro, as
sevícias praticadas por seus proprietários. Porém, Bresson ainda se encontra
mais afastado do risco de cair no sentimentalismo que na personagem de
Mouchette, já que de maneira alguma ele enfatiza qualquer reação do animal que
vá além de qualquer reação típica de um animal, não o antropomorfizando da
maneira mais rasteira com que usualmente “personagens” animais o foram pelo
cinema. Nesse sentido, se se pode falar de processo de antropomorfização aqui,
tal se dá mais pela referida analogia entre os sofrimentos do animal e o dos
seres humanos que com ele convivem. Destaque para o detalhe com que são
registradas diversas situações que envolvem as mãos, ilustrando tanto a
possibilidade de amor não concretizada entre Jacques e Marie, o impulso
meramente do desejo sexual com Arnold ou atividades cotidianas ligadas ao
trabalho. Não há como não vislumbrar na recusa do antigo amor e do olhar sobre
o passado por conta de Marie menos um mero arquétipo romântico que um
contundente comentário sobre a recusa de um ser humano de seguir adiante com
seus próprios princípios, vindo a partir daí a própria degradação da
personagem. Um dos poucos comentários que o narrador se permite fazer de modo
mais incisivo, são os breves momentos nos quais a música se torna presente.
Talvez o que se torne decisivo para a força do filme seja justamente construir
seus retratos de graça e de luta contra a aspereza da vida a partir de figuras
um tanto quanto improváveis e banais, algo que sob outra chave Rossellini havia
explorado em seu episódio para o filme O
Amor. Porém, se no caso de Rossellini se busca uma representação do sublime
em uma personagem igualmente marginal, ainda o faz dentro de toda uma moldura
bastante próxima do simbolismo cristão mais explícito. Aqui, pelo contrário,
tudo se efetiva em situações e locais que pouco ou nada remetem a qualquer
evocação de transcendência. Wiazemski, descoberta para o cinema pelo cineasta,
tornar-se-ia uma figura recorrente na produção autoral da década de 1960,
trabalhando com nomes como Pasolini (em Teorema
e, principalmente, Pocilga) e Godard
(A Chinesa, Vento do Leste). Prêmio OCIC no Festival de Veneza. Argos/Athos
Film/Parc Film/Svensk Filmindustri AB/Svenska Filminstitutet. 95 minutos.
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