Filme do Dia: Primavera (1947), Grigoriy Aleksandrov

 


Primavera (Vesna, URSS, 1947). Direção Grigoriy Aleksandrov. Rot. Original Grigoriy Aleksandrov, Aleksandr Raskin & Moris Slobodskoy. Fotografia Yuri Yekelchik. Música Isaak Dunaevskiy. Dir. de arte Vladimir Klapunovskiy & Konstantin Yefimov. Figurinos Konstantin Yefimov. Maquiagem A. Yermolov. Com Lyubov Orlova, Nikolai Cherkasov, Nikolai Konovalov, Faina Ranevskaya, Rostislav Plyatt, Boris Petker, Mikhail Sidorkin, Rina Zelyonaya.

O cineasta Arkadi (Cherkassov) procura uma atriz para viver a sisuda cientista Irina Nikitina (Orlova). Um amigo lhe apresenta a cantora e atriz de operetas, Vera Shatrova (Orlova), bastante semelhante à cientista, embora de temperamento diverso. A ideia do filme é apresentar um mundo afastado da realidade cotidiana de cientistas como Irina e suas pesquisas dedicadas à energia solar. Para não interromper uma de suas apresentações de opereta, Shatrova combina com Irina, para que a substitua no primeiro dia de filmagem. Irina, ao ler o roteiro, não concorda com a forma demasiado séria com que é retratada, e afirma estar passando mal. A filmagem é interrompida e, em uma longa conversa e passeio pelos estúdios ao lado de Arkadi, Irina volta a ser tocada pelos sentimentos e descobre que o ofício do cinema não é vazio como imaginava e demanda bastante trabalho, dedicação e técnica. Enquanto isso, Shatrova caminha pelas ruas da cidade e, ao observar a quantidade de casais, aproxima-se de um homem que há certo tempo lhe cortejava.

Há inteligência, é evidente, nesta produção do ex-câmera de Eisenstein, mas não há como não se ressentir da ausência de liberdade estética explosiva das produções mudas de duas décadas antes quando se assiste, por exemplo, a um desfile de mulheres a cantarem loas à Revolução (algumas cenas bem poderiam ter sido incluídas no documentário Assim Dançou o Comunismo), enquanto outros operários lustram edificações da burocracia estatal soviética. Por outro lado, mesmo que involuntariamente, a dificuldade do apatetado homem a pedir indicações a torto e direito em Moscou e ser surpreendido por seguranças e impossibilidades de acesso para todos os cantos que ande não seria um retrato mais próximo da mão de ferro dos tempos stalinistas? E para quem pensa que o panfletário-ideológico monopolizava as canções de então há números de opereta voltados para o tradicional amor e a primavera e cenários e figurinos evanescentes e brancos – traduzindo: o kitsch não era exclusividade hollywoodiana. A sisudez da ciência contra o avacalho ou, ao menos, a espontaneidade dos artistas (da forma como retratada) são temas ordinários da comédia, e seriam trabalhados na década seguinte pelas chanchadas brasileiras, a também tirarem partido de outra recorrência do gênero, a duplicidade de personagens de posturas antagônicas, e a incorporação de uma da outra, e vice-versa (em um caso  mais complexo, a cientista retratada pelo filme dentro do filme busca se passar pela atriz que a representa). Dito isso, a favor de Aleksandrov pode-se perceber um movimento consciente de deixar à margem toda gororoba nacionalista que lhe devia ser imposta, relegando-a justamente à margem do que é relevante ao filme. A cena inicial, por exemplo, não está integrada na narrativa. E quando o laço romântico é formado entre o cineasta e a cientista, e eles passeiam pelos estúdios, observa-se uma cantoria ufanista com o mecanismo de projeção ao fundo. Apesar dos elogios (protocolares, digamos assim) à cena, trata-se de um outro filme, dirigido por um outro realizador! Não temos muita notícia sobre o filme dentro do filme, mas pode-se imaginar sem esforço que seria o próprio filme de Aleksandrov, cuja correção de rumos teria sido dado pela própria Irina ao diretor. É há pistas, dentro dos artifícios convencionais para isto, em diálogos próximos do final. Ou seja, o filme será uma comédia romântica leve e com números de opereta. Pode parecer fora de moda, em vários aspectos, e é, mas ainda assim há anos luz da propaganda ideológica travestida ou explícita de muitos filmes, de cujo prólogo o filme sabiamente se afasta. E quando esta emerge novamente em forma de canto, já nos despedimos da última cena. São toques de mestre de como driblar o entulho do poder, ao qual se une momentos de uma beleza estetizada, a custo de bons enquadramentos, neblina e muitas lentes, para a descrição de uma cena melancólica a consagrar o romantismo da atriz, com um parceiro conseguido de última hora e sem qualquer relevância maior a trama. Muito de sua cenografia extravagante e adereços de cena foram confiscados dos estúdios nazistas. Primeiro filme do estúdio a apresentar a logomarca que o acompanharia a partir de então por décadas. O truque da duplicação de um mesmo ator em cena consegue ser tão bem resolvida neste filme em p&b, quanto no contemporâneo britânico As Vidas e Aventuras de Nicholas Nickelby.  Prêmio de atriz no Festival de Veneza. Cherkasov, por sua vez, demonstra sua versatilidade, tendo vivido pouco antes Ivã, o Terrível.  |Mosfilm. 102 minutos.


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