Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#42: It's All True

 

It's All True. (EUA/BRASIL/MÉXICO, 1941-3). Um dos mais celebrados filmes inacabados de todos os tempos, o projeto de "boa vizinhança" de Orson Welles para a RKO Radio e o Birô de Assuntos Inter-Americanos (OCIAA), It's All True, era dado como perdido até 1980, quando 30 mil metros de negativo em nitrato foram descobertos nos cofres da Paramount Pictures. (Os arquivos da RKO foram adquiridos pela Desilu Studios em 1957 que, por sua vez, foram comprados pelas Gulf+Western em 1967, uma companhia que incluía a Paramount). O material foi transferido para um formato "seguro" em acetato pelo American Film Institute e, em 1986, Richard Wilson, que havia sido produtor associado de Welles nos dois episódios brasileiros, começou a tarefa de pesquisar e realizar um documentário, assistido por Catherine L. Benamou, que posteriormente escreveria um livro, It's All True: Orson Welles Pan-American Odissey (2007). O filme resultante: It's All True: Based on an Unfinished Film by Orson Welles (1993),  foi co-escrito, produzido e dirigido por Wilson (que já morreu), Myron Mesiel e Bill Krohn.

O filme é lendário, ao ponto que o movimento brasileiro do Cinema Novo ter sido grandemente influenciado pelas estratégias de Welles de filmar em locações, utilizar atores não profissionais e focar em personagens não brancos e marginalizados. Além do que, o status de Welles no Brasil é grande o suficiente para que um diretor notável do movimento underground, Cinema Marginal, o falecido Rogério Sganzerla, devotasse quatro filmes ao curto período do americano no Brasil: Nem Tudo é Verdade (1986), A Linguagem de Orson Welles (1990), Tudo é Brasil (1998) e A Linguagem do Caos (2003). Tudo é Brasil combina todos os tipos de material de arquivo, inclundo fotografias e um clipe de Carmen Miranda cantando, animação e interessantes intervenções sonoras dos programas de rádio de Welles, repetindo ele dizer "Brasil tem tudo" ou "é tudo".

O projeto do documentário para a RKO se iniciou com a ideia que Orson Welles (1915-1985) teve em junho de 1941 de contar a "história do jazz" no cinema. O projeto desenvolvido era uma antologia celebrando a diversidade étnica da América do Norte: "The Captain's Chair", baseado nas prospecções do explorador/realizador Robert Flaherty, com a Hudson Bay Company, no norte do Canadá; "Love Story", para o qual um roteiro foi escrito por Joe Fante, sobre seus pais imigrantes italianos; e "My Friend Bonito", adaptado de um conto por Flaherty sobre um touro espanhol peculiar que é perdoado no "ringue" e transferido a um ambiente mexicano, onde seu "amigo" é agora uma criança. Ao final, apenas o último desses episódios foi filmado, e nunca foi concluído. Enquanto preparava The Magnificent Ambersons [Soberba], que foi confirmado para ser filmado em outubro, Welles enviou Norman Foster, que havia co-escrito o roteiro de "My Friend Bonito", com o cinegrafista Floyd Crosby, ao México, aos quais se uniu posteriormente Alex Phillips. Foster foi chamado para Hollywood em dezembro, para filmar Journey into Fear [Jornada do Pavor] para Welles, que só assim poderia realizá-lo simultaneamente com Soberba. Mas Welles foi convocado por Nelson Rockefeller e John Hay Whitney para ser embaixador especial do Birô Inter-americano no Brasil, em fevereiro de 1942, onde realizaria um documentário sobre o carnaval. Welles havia sido tocado pela história de quatro jangadeiros de Fortaleza, que navegaram em suas embarcações de seis toras até o Rio de Janeiro, mais de 2620 quilômetros, sem uma bússola, para encontrar o presidente Getúlio Vargas e uma bem sucedida petição que garantisse benefícios sociais aos jangadeiros, incluindo pensões. Portanto "Carnaval" (também conhecido como "A História do Samba") e "Jangadeiros" (também conhecido como "Quatro Homens em uma Jangada"), juntos com a história mexicana, tornariam-se a pretendida trilogia da época da guerra da Política da Boa Vizinhança (uma quarta história, sobre a conquista espanhola do Peru, "Os Andes", parece nunca sequer ter sido roteirizada).

O plano para "Carnaval" foi bastante ambicioso, com uma equipe em preto & branco liderada por Harry Wild, acompanhado por uma equipe da Technicolor. Após filmar a elaboração e as celebrações carnavalescas, os estúdios da Cinédia foram utilizados para encenar alguns episódios ficcionais em Technicolor e encenações envolvendo atores como Grande Otelo. As gravações de som síncrono foram também realizadas em estúdio. Welles, portanto, utilizou uma equipe Technicolor para filmar reencenações da chegada triunfal dos jangadeiros na Baía de Guanabara, mas antes do final desse processo um acidente ocorreu, no dia 19 de maio de 1942, com a jangada São Pedro, com quatro jangadeiros à bordo, que foi derrubada pelo barco à motor que a rebocava, resultando no afogamento do líder, Jacaré. Improvisado, e com um orçamento de somente 10 mil dólares provenientes da RKO, que se encontrava disposta a demiti-lo, Welles levou uma pequena equipe, incluindo o cinegrafista da Cinédia George Fanto, e seu assistente, para Fortaleza para filmar "Quatro Homens e uma Jangada" com uma velha câmera silenciosa Mitchell em preto&branco. Eles mudaram o roteiro para incluir a história de dois jovens apaixonados, o homem morrendo no mar, possibilibitando encenar uma elaborada cena do funeral, reminiscente das composições dramáticas de Flaherty e Sergei Eisenstein, em tributo a Jacaré. Ao longo desse episódio, Welles encorajou Fanto a ficar próximo do solo e filmar seus temas com câmeras bastante baixas, revelando seus corpos permanecendo heróica e orgulhosamente em sua beleza mestiça simples e natural, contra o céu. 

Um inventário de junho de 2000 do UCLA Film and Television Archive revelou que mais de 35 mil dos 63. 950 pés sobreviventes (ou 52 latas) de "Jangadeiros" tem sido preservados, mas antes disso, muito das imagens restauradas do filme foram dessa história, o suficiente para que Wilson e outros produzissem uma versão de 40 minutos para o documentário de 1993. Também incluíram algumas imagens de "Carnaval", mas a taxa do que sobreviveu dessa parte é desapontadora: o inventário de 1952 da RKO listou 200.000 pés de negativo em Technicolor, mas somente 5.481 pés (um rolo) do negativo em nitrato permaneceram, dos quais 2.750 pés de interpositivos salvos em cores foram processados para o filme de 1993. Acredita-se que os negativos tenham sido jogados fora no Oceano Pacífico pela Paramount em um período entre o final dos anos 60 e os idos de 70. Em todo o caso, baseado na narrativa de Benamou para a estrutura planejada de Welles para o episódio do carnaval - movendo-se do alto das favelas para os ensaios do samba, então uma análise da forma musical, a "vida noturna do Rio", seguida pelos cordões de rua e o "Grande Final Pan-Americano", terminando com a manhã da quarta-feira de cinzas, com Grande Otelo acordando na Praça Onze, o ponto de encontro dos foliões da classe trabalhadora, que está sendo desfigurada pelo governo -  é possível, que com toda a música que foi registrada e a estruturação cuidadosa do material em uma "sinfonia da cidade", Welles possa ter feito o documento cinematográfico definitivo do carnaval brasileiro.

Texto: Rist, Peter H. Historical Dictionary of South American Cinema. Plymouth: Rowman & Littlefield, 2014, pp. 340-2.

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