O Dicionário Biográfico de Cinema#296: Robert Ryan

 


Robert Ryan (1909-1973), n. Chicago

Algum tempo antes de sua luta final contra o câncer, a carreira de Robert Ryan parecia recuar. Ele chegava aos sessenta; não mais comandava papéis principais; nunca havia estabelecido grande conexão nas telas em cenas romântica - ponha-o  com uma mulher e ele parece se tornar uma ameaça. Portanto, foi triste algumas vezes observá-lo em papéis passivos ou mesmo de coadjuvante - em The Professionals [Os Profissionais] (66, Richard Brooks) ou como o oficial rídiculo em Dirty Dozen [Os Doze Condenados] (67, Robert Aldrich). Parecia velho e cansado, resistindo. No entanto, havia sido um dos mais peculiares e notáveis atores americanos, um homem verdadeiramente assustador, não tanto por uma ameaça exterior, mas pelo que pensava. Se algumas pessoas rangem os dentes, Ryan rangia os olhos. 

John Houseman chamou-o "de uma mistura perturbadora de raiva e doçura que havia conquistado o estrelato ao interpretar os papeis mais brutais e neuróticos que estavam em total desacordo com sua verdadeira natureza." Esta é uma estranha constatação, mas não é uma mistura de fúria e ternura que compreende o personagem de Ryan em On Dangerous Ground [Cinzas que Queimam] (51, Nicholas Ray, e produzido por Houseman)?

Ele é um tira de Los Angeles em Cinzas que Queimam, um homem perfeito para a era do chefe Daryl Gates. O personagem, Jim Wilson, vive solitário em um apartamento monótono. No guarda-louça observamos um crucifixo e uma estatueta, um prêmio por uma vitória no boxe. Nick Ray não era de ignorar às vidas reais de seus atores, e estes dois objetos foram muito bem escolhidos: Ryan frequentara um ginásio jesuíta antes de ir a Darthmouth, onde foi campeão de boxe.

Wilson não é um policial corrupto, mas alguém deformado pelo trabalho. O rosto tenso e sério de Ryan, sua voz levemente irritante, um tom mais lamurioso do que se esperaria de alguém assim, sua altura curvada, quase envergonhada e aqueles olhos severos são uma pista de um colapso quase iminente do personagem - e ninguém foi tão atento a tais imagens confusas de força e fraqueza quanto Ray. Wilson quase ataca o homem errado quando sai em busca do suspeito. Quando uma bela garota sorri para ele em uma drugstore, ele estremece. "O que há com você?" ela indaga e quando ele lhe diz "Não há nada comigo" é o espírito do niilismo falando. Wilson aparente ser o tira perfeito, mas um parceiro lhe afirma ser ele demasiado durão para se trabalhar o tempo inteiro. E se se observa o jeito de Ryan se portar, seu casaco como uma mortalha, seu corpo inclinado adiante do pescoço - o homem alto sempre tendo que olhar para baixo, mas como se houvesse algum peso abrasivo em sua coluna. 

Perseguindo uma liderança, Wilson questionará Myrna, uma vagabunda noir. Ela lhe mostra uma cicatiz em seu braço e diz: "Você me fará falar, vai me apertar com estes braços grandes e fortes, não vai? Em um momento, Ray constrói uma atmosfera sufocantemente sadomasoquista, que é intensificada quando a imagem evanesce.

Wilson é um sádico que sente auto-comiseração sobre sua fraqueza. Umas poucas cenas após, prepara-se para bater em um suspeito, com temerosa lamentação: "Sempre faço a escória falar! Por que me leva a isto?" Estas são cenas que muitos atores de hoje não interpretariam. Saberiam que nunca deveriam aparentar estar tão distante do bem.

No final dos 40 e idos dos 50 havia se encurralado em tais papéis. Pense somente no Montgomery de Crossfire [Rancor] (47, Edward Dmytryk), um tira transformado em soldado, um defensor rígido da ordem que quer chamar as pessoas de "senhor", mas ao mesmo tempo um valentão em busca de fraquezas. Há uma câmera baixa do Monty de Ryan próximo ao final de Rancor, enquanto avalia a proposta feita para prejudicá-lo, onde sua mandíbula se move em dúvida e preocupação, e depois se fixa em um gesto de superioridade. Pode-se chamar de uma grande atuação. Mas você não pode separar a criação cinematográfica da expressão fria do rosto de Ryan.

Rancor e Cinzas que Queimam podem ser os mais ambíguos vislumbres deste Ryan. Mas o mesmo homem é o que está em estado de choque em The Woman on the Beach [Mulher Desejada] (47), de Renoir; magnificamente ameaçador, um flagelo e terror justificados, como a vítima mancando da covardia de Van Heflin em Act of Violence [Ato de Violência] (49) - o melhor filme de Fred Zinnemann jamais feito; tão brilhantemente adepto da paranóia e enaltecimento quanto Smith Ohlrig em Caught [Coração Prisioneiro] - estivesse ou não ele sendo Howard Hughes, tivesse ou não o sardônico Hughes o treinado - que você deseja mais de Ohlrig neste filme, não importando o quão você e Max Ophüls se apaixonarão pelo gentil Dr. Quinada de James Mason; repugnante e cínico como Earl, o sedutor, em Clash by Night [Só a Mulher Peca] (52, Fritz Lang), um imbecil a pensar que está morrendo de solidão; e absolutamente aterrorizante como o faz-tudo que vem à casa de Ida Lupino em Beware, My Lovely [Escravo de Si Mesmo] (52, Harry Horner).

Para o ator, estas oportunidades foram graças mescladas. Somente dois dos filmes mencionados - Cinzas que Queimam e Só a Mulher Peca - ´possuem histórias de amor; no último Ryan é visto como mórbido e doente; enquanto Cinzas que Queimam situa o amor em uma paisagem nevada; uma metáfora para o colapso de Wilson e para a cegueira da personagem de Ida Lupino. Então a única história de amor que Ryan teve foi uma na qual ele possui um estranho refúgio psíquico: a mulher não pode vê-lo. Houve mais na RKO - Born to be Bad [Alma Sem Pudor] (50), de Ray; o gentil psiquiatra em The Boy with Green Hair [O Menino de Cabelos Verdes] (48, Joseph Losey), e talvez seu mais celebrado papel no momento inicial de sua carreira, o boxeador abandonado em The Set-Up [Punhos de Campeão] (49), de Robert Wise. Ele está bem no filme, ainda que estranhamente distante, como se soubesser ser um nobre esteréotipo em um beco sem saída. Interpretando uma vítima simplesmente boa e trágica, Ryan aparenta uma tocante superficialidade - ele precisava fazer Stoker Thompson mais vicioso, próximo de um touro enraivecido (*)?

Ryan foi contemporâneo de Burt Lancaster, Kirk Douglas e William Holden, e somente seis meses mais novo que Errol Flynn. Isto ressalta o seu fracasso em se estabelecer enquanto astro ou ator romântico. Não importa sua unicidade enquanto ator, Ryan não se adequava às emoções normais exigidas pela tela. De fato, raramente foi elencado como mero vilão, e é provável que tivesse ficado perturbado em ficar tão confinado.

Mesmo em Bad Day at Black Rock [Conspiração do Silêncio], com Borgnine e  Marvin como inequivocos capangas, o chefe do apito de Nevada de Ryan é mais complexo que o tempo disponível de filme. Conspiração, apesar de em cores e tela larga, é uma espécie de refilmagem da RKO. Seja onde for nos anos 50, Ryan tentou ser um canalha risonho em The Naked Spur [O Preço de um Homem] (53, Anthony Mann); fez maravilhas do homem rico abandonado à morte no deserto de Inferno [Rastros do Inferno] (53, Roy Baker) - que é uma modesta empreitada, prejudicado pelo 3D, mas Ryan está em seu elemento sozinho, lutando com os obstáculos e falando consigo mesmo - no qual o isolamento é revelador; foi o líder da gangue em House of Bamboo [Casa de Bambu], de Füller, um gênio com inclinações raras, quase homossexuais, em relação aos homens de seu grupo; não conseguiu realmente competir com o calor e a energia fácil de Gable em The Tall Man [Nas Garras da Ambição] (55, Raoul Walsh). Talvez o melhor filme que Ryan fez seja Men in War [Os que Sabem Morrer], de Anthony Mann (57), ainda que como oficial infeliz e implacável, não possua muito a fazer além de se contrapor ao comprometimento desinibido do sargento de Aldo Ray. No entanto, pela época de Os que Sabem Morrer, Ryan aparentava seus quarenta e oito. A dureza juvenil havia sumido de sua face, substituída pela fadiga e tristeza. 

O  sombrio de Ryan possui ao menos dois momentos memoráveis, mais sombrios pela idade. Em Odds Against Tomorrow [Homens em Fúria] (59, Robert Wise) foi um rançoso e autopiedoso racista novamente - Montgomery dez anos mais velho. Agora há uma cena com Gloria Grahame, fator decisivo na revelação da sedutora inadequação de Ryan para o romance. Não há tantos encontros que tão rapidamente  capturem a força da violência na associação sexual. Em tantos e tantos filmes Ryan desprezava as mulheres - é o modo como ele trata sua esposa, Myrna Loy, em LonelyHearts [Por um Pouco de Amor] (58, Vincent J. Donehue). É do personagem ou é a própria misoginia do ator?

Billy Budd [O Vingador dos Mares] é uma parábola na qual Peter Ustinov escolhe Ryan para interpretar Claggart, o mestre-de-armas tão afrontado pela graça e bonomia de Budd que leva Budd a matá-lo. Há um instante aterrorizante que a boa índole de Billy quase amolece Claggart, e Ryan se volta contra ele - "Você também me encantaria. Saia!" - momento em que a história de Melville ganha um tom de temor homossexual. O Vingador dos Mares poderia necessitar ser cantado; é demasiado elementar para ser fotografado? Mas o Claggart de Ryan é indelével. Quem mais teria interpretado o papel sem insinuar algum sinistro charme ou humor?

Passado seu auge, com pequenos papéis em  filmes grandiloquentes, como João Batista em King of Kings [Rei dos Reis] (61, Ray), e o desertor em Custer of the West [Os Bravos Não se Rendem] (68, Robert Siodmak). Seu papel como o disciplinador em Os Doze Condenados foi até uma humilhação: um neurótico, não um dos caras, o alvo do ridículo. Ele enfrentou a zombaria de forma honrosa; novamente, alguns atores de sua estirpe teriam recusado o papel. Então foi a figura mais solitária em The Wild Bunch [Meu Ódio Será Tua Herança] (69, Sam Peckimpah), Deke Thornton, o traidor, o homem que odeia seus novos comparsas, assim como tenta destruir seus velhos amigos. Ryan foi perfeito, ainda que tenha parecido cruel elencá-lo. 

Do início, Ryan interpreta um observador que é condenado a sobreviver. Seria o respeito de Peckinpah pelo ator, ou teria o diretor descoberto a tristeza que ajudaria a enriquecer o papel de Thornton? Na última parte do filme, o personagem de Ryan perde seu chapéu. Com cabelo malhado e melancólico bigode, Thornton parece tão seco e cinza quanto o chaparral.

Ele não estava bem. Tinha o seu próprio câncer, assim como o que matou a sua esposa. Mas foi resoluto e cético o suficiente, em 1973, de emprestar-se a Executive Action [O Assassinato de um Presidente] (David Miller), o primeiro filme sobre o assassinato de Kennedy. Vive um líder poderoso e conservador na trama, e trouxe uma grandeza impiedosa e sepulcral às melhores falas de Dalton Trumbo sobre a morte e a insignificância. 

Por fim, para o American Film Theatre e John Frankenheimer, Ryan interpretou Larry Slade em The Iceman Cometh [O Homem de Gelo] (73), de Eugene O'Neill. Parecia abatido e nunca mais humano: foi uma estranha despedida e o filme como um todo merece ser redescoberto. Ryan morreu antes que estreasse. Na Newsweek, Paul Zimmerman escreveu: "E é Robert Ryan, sua face um naufrágio de sonhos esmagados, que proporciona a dimensão trágica  que torna este Homem de Gelo uma experiência comovente e inesquecível. Ryan interpreta seu papel à sombra de sua própria morte. Ele morreu este ano, deixando para trás uma vida de papéis demasiado pequenos para seu talento."

Texto: Thomson, David. The New Biographical Dictionary of Film. N. York: Alfred A. Knopf, 2014, pp. 2330-35.

N.do T: evidente alusão ao título original do célebre filme de Martin Scorsese, de 1980, a também descrever a vida de um boxeador.

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