O Dicionário Biográfico de Cinema#76: Abbas Kiarostami

 

Abbas Kiarostami, Teerã, Irã, n. 1940*

1970: Nan va Koutchech [O Pão e o Beco] (c). 1972: Zang-ze Tafrih [O Recreio] (c). 1973: Tadjrebeh [A Experiência]. 1974: Mossafer [O Viajante]. 1975: Dow Rahehal Baraye yek Massaleh [Duas Soluções Para um Problema] (c); Man Ham Mitounam (c). 1976: Rangha (c); Lebassi Baraye Arossi [The Wedding Suit]. 1977: Gozaresh [O Relatório]; Bozorgdasht-e mo'Allem (c). 1978: Solution (s); Kakh-e Jahan-nama [Jahan Nama Palace] (c). 1979: Ghazieh-e Shekl-e Aval, Ghazieh-e Shekl-e Dou Wom [Case n.1, Case n.2]. 1980: Behdash-e Dandan (c). 1981: Be Tartib ya Bedoun-e Tartib**. 1981: Be Tartib ya Bedoun-e Tartib (c). 1982: Hamsarayan [The Chorus] (c). 1983: Hamshahri. 1984: Avaliha [First Graders]. 1987: Khane-ye Doust Kodjast? [Onde Fica a Casa do Meu Amigo?]. 1989: Mashgh-e Shab. 1990: Nema-ye Nazdik [Close-Up]. 1992: Zendegi Edami Darad [E a Vida Continua]. 1994: Zire Darakhatan Zeyton [Através das Oliveiras]. 1997: Ta'm e Guilass [Gosto de Cereja]. 1999: Bad ma ra Khahaad Bord [O Vento nos Levará]; Beed-o Baad [Willow and Wind]***. 2002: Dah [Dez]. 2003: Five Dedicated to Ozu. 2004: 10 on Ten. 2005: Roads of Kiarostami (d) (c); Tickets (co-dirigido com Ken Loach). 2007: Kojast Jaye Residan (d) (c); "Where is My Romeo", episódio de Chacun son Cinéma [Cada um com Seu Cinema]. 2008: Shirin. 2010: Copie Conforme [Cópia Fiel]; No (d) (c). 2012: Like Someone in Love.

Muito de grandiloquente se tem dito em nome de Abbas Kiarostami. Laura Mulvey comparou o divisor de águas de Gosto de Cereja vencer Cannes ao surgimento de Rashomon em Veneza, em 1951. Muito precocemente, Godfrey Chesire percebeu o magistral humanismo de Kiarostami e chamou-o de "um cinema da interrogação". Phillip Lopate disse que "vivemos a Era  Kiarostami, assim como vivemos a Era Godard."

Bem, levei tudo isso à sério já que, como posso ver, sem dúvida, existe agitações no Irã que merecem a mais sensível recepção, ainda que apenas para romper com a camisa de força que muitos ocidentais aprenderam a pensar do Irã e seus vizinhos. Ao mesmo tempo, podemos notar que Gosto de Cereja tocou Cannes (não livre de dúvidas, por lidar com o suicídio) antes de tocar o Irã. E quando Kiarostami aceitou um beijo congratulatório, mas formal, de Catherine Deneauve, juntamente com a Palma de Ouro, houve sérias repercussões no Irã.

Consideremos Gosto de Cereja, geralmente tido entre suas melhores obras, senão a melhor, pelos entusiastas de Kiarostami. É sobre um homem que dirige ao redor de estradas montanhosas e sinuosas nos arredores de Teerã (eu imagino), buscando por alguém que o ajude a se suicidar. Muito dele é filmado como sendo da perspectiva do Land Rover do homem, com o som de seu motor. Não há música, pois Kiarostami suspeita dela, assim como da narrativa convencional. Possui o sentimento do neorrealismo italiano: o som e a imagem são um pouco ásperos; a atuação não profissional; e nunca descobrimos porque o homem pretende se matar - isso poderia ser demasiado "narrativo", ainda que igualmente possa impor sobre o ator um ligeiro presságio fatídico que acho monótono.  Mas talvez seja o que Kiarostami pretenda. Talvez deseja que sintamos o nível de sentimento mundano de alguém que pretende se matar. 

O olhar neorrealista, no entanto, é sutilmente escavado por um olhar muito mais formal para a beleza - especialmente nos planos sinuosos e em pontos de fuga bastante abertos da feia estrada. Nessas passagens, sente-se o calibrado olhar de Kiarostami e você acredita que ele foi primeiramente educado como pintor e artista gráfico, e que ainda consegue tomadas fotográficas bastante belas (senão artísticas) da paisagem.

O homem dá carona a diversos passageiros, e eles recusam seu pedido de ajuda. Desenvolve-se um suspense - o que acontecerá? Nos importamos? E, gradualmente, os argumentos contra a morte passam a se assemelhar a um testamento sobre a vida. E isso culmina no último passageiro, um velho, que o ajudará, mas que fala comoventemente das pequenas epifanias na vida, como o gosto das cerejas. Mas um pacto é firmado, o velho o ajudará.

Vemos então nosso protagonista se dirigir para sua tumba, à noite. Há uma nuvem sobre o local. Ele se prepara. A imagem evanesce para uma filmagem em vídeo, que bem rapidamente revela o homem como seu ator, com a equipe técnica (Kiarostami, incluso) o observando. Soldados, que marcham à distância para um plano, são alertados para relaxar. Há um som de jazz.

O final é estimulante e maravilhoso. Sentimos que a vida venceu, assim como a simples "história" a que fomos expostos é revelada como um jogo, rotineira. Vejo e aprecio se colocar junto algo como um estilo documental com a súbita revelação de que tudo tem sido um filme durante todo esse tempo. Sinto que o modernismo, a surpresa intelectual, o sentido de alguma necessidade de se voltar um passo e admitir a qualidade arcaica de histórias auto-contidas em tal época do cinema.

Mas, humildemente, sugiro que Godard e muitos outros fizeram-no, em outra época, com mais humor, intelecto, beleza e terror. Abbas Kiarostami é uma figura fascinante. Representa um país que pode estar recuperando sua imaginação. Precisamos comparecer. Mas se isso é maestria do cinema moderno, então nosso meio se foi e isso é arte funerária. 

Texto: Thomson, David. The Biographical Dictionary of Film. N. York: Alfred A. Knopf, pp. 1426-8.



(*) N. do E: Kiarostami faleceu em 2016

(**). N. do E: O imdb credita esse filme como de 1996

(***) N. do E: O imdb credita-o apenas como roteirista dessa produção. 

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